A mata pede trégua
Para salvar a florestatropical mais ameaçada do mundo é preciso agir rápido
Maria Fernanda Vomero
O passado foi de glória. Imagine 1,3 milhão de quilômetros quadrados de massa verde, o equivalente a 15% do atual território brasileiro, numa faixa que atravessava o país. Paisagens alternavam-se de forma surpreendente e contínua: manguezais intactos, árvores enormes enfeitadas com bromélias e orquídeas, vegetação baixa no topo das serras, araucárias nas regiões mais frias. Os primeiros europeus que a conheceram ficaram boquiabertos. A muitos faltaram as palavras certas para descrevê-la. Era majestosa. Um pedacinho do Éden. Abrigava uma diversidade incalculável de animais, insetos e plantas. Durante os séculos iniciais da colonização portuguesa, ocupou o primeiríssimo lugar nas paradas de sucesso da terra do pau-brasil.
Mas 500 anos se passaram e os áureos tempos ficaram para trás. Aquela que era a segunda maior floresta brasileira, nos idos de 1500, conheceu o purgatório. A duras penas sobreviveu aos ciclos econômicos que se sucederam – a exploração do pau-brasil, as monoculturas da cana-de-açúcar e do café – e ao estabelecimento de pólos industriais. Hoje, restam pouco mais de 7% de Mata Atlântica – a exuberante cobertura verde descrita no parágrafo anterior. Mas não pense que esses 7% se referem a uma mancha contínua de vegetação. São fragmentos esparsos de floresta, ainda ameaçados pela caça ilegal, pela exploração predatória de palmito e de madeira e pela especulação imobiliária.
“Apesar de bastante degradada, a Mata Atlântica continua sendo uma das regiões mais ricas em biodiversidade do planeta”, diz o biólogo Luiz Paulo Pinto, diretor de programa da ONG Conservation International. Trata-se de um hotspot, como dizem os ambientalistas – ou seja, de uma área com uma riqueza biológica extraordinária, reduzida a 25% ou menos da sua cobertura original. E, entre os 25 hotspots identificados na pesquisa realizada pela Conservation em 1999, a Mata Atlântica está entre aqueles que merecem prioridade de ação. Para você entender a dimensão do problema, imagine um campo de futebol como o Maracanã. Segundo dados da ONG Fundação S Mata Atlântica, a cada quatro minutos trechos de floresta do tamanho de um Maracanã são destruídos. E, com eles, espécimes da fauna e da flora, alguns deles ainda não catalogados.
“Hoje, a grande ameaça à biodiversidade do bioma – o conjunto de ecossistemas que forma a floresta atlântica – é a erosão genética”, diz o ambientalista Mário Mantovani, diretor da S Mata Atlântica. Como a floresta está fragmentada, as ilhotas de mata não têm ligação umas com as outras. Portanto, as espécies animais – e mesmo as vegetais – passam a se reproduzir entre elas mesmas, diminuindo progressivamente a diversidade de genes. Isso pode significar extinção, num horizonte não muito distante. “As espécies que habitam os fragmentos já estão condenadas”, afirma Mário. “As medidas precisam ser urgentes.”
Para amenizar o problema, numa iniciativa conjunta entre a Conservation e a S Mata Atlântica foram traçadas estratégias para a criação de “corredores de biodiversidade”, também chamados de “corredores ecológicos”. São conexões, entre um fragmento e outro de floresta, formadas por uma rede de unidades de conservação, reservas, superfícies menos degradadas e parques. Tais áreas podem ser interligadas a partir de medidas simples, como a delimitação de novas reservas ou a expansão de uma zona de uso sustentável, a fim de que os animais possam ir de uma ilha de mata a outra. “Desta maneira, conseguimos manter o fluxo de espécies dentro de trechos da Mata Atlântica, permitindo o intercâmbio genético”, afirma a agrônoma Maria Cecília Wey de Brito, que coordena a parceria entre as duas ONGs. “As áreas mais promissoras, no momento, para a criação de corredores ecológicos são o sul da Bahia e a região de São Paulo, Rio de Janeiro e norte do Paraná.”
A preocupação com a saúde do bioma se justifica, principalmente, porque a Mata Atlântica apresenta altos índices de endemismo. Isso quer dizer que muitas espécies só ocorrem nessa floresta e em nenhum outro lugar. Segundo dados da Conservation, entre as 20 000 espécies de plantas que lá existem, 8 000 são endêmicas – exclusivas do bioma. Somando mamíferos, aves, répteis e anfíbios são 389 espécies endêmicas, num total de 1 807. Os Campos Sulinos, bioma independente que foi incorporado aos domínios de Mata Atlântica para fins de inventário e conservação, apresentam também suas espécies exclusivas. Dados preliminares de um estudo coordenado pelo Ministério do Meio Ambiente indicam que 17% das espécies de mamíferos que ocorrem no Brasil só aparecem na floresta atlântica.
Espécies Exclusivas
Para entender por que o endemismo é tão comum por lá, você precisa voltar no tempo, cerca de um milhão de anos atrás, na época dos períodos glaciais que atingiram a Terra. A cada vez que as geleiras avançavam, a floresta se retraía. Parte do território virava deserto e apenas algumas manchas de mata permaneciam preservadas. Nos períodos quentes e úmidos, a floresta voltava a se expandir, já um pouco diferente do que era anteriormente, porque muitas espécies animais e vegetais não sobreviviam ao impacto das mudanças climáticas. Nos bolsões de floresta que restavam, aqui e ali, a fauna e a flora evoluíam separadamente. E as espécies que habitavam tais bolsões iam se diferenciando geneticamente de suas irmãs. Por isso, existem bichos e plantas que só aparecem em pontos determinados da Mata Atlântica – como o mico-leão-dourado, que você encontra apenas em regiões do Rio de Janeiro.
“Ainda há quem diga: vocês são contra a construção de uma estrada nesse trecho da floresta por causa de dois papagaios-de-cara-roxa?”, afirma Mário Mantovani. Se forem os dois últimos, faz toda a diferença. “Justamente por terem sua área de ocorrência limitada, as espécies endêmicas são mais vulneráveis e merecem atenção especial”, diz Luiz Paulo Pinto. Segundo ele, entre os primatas ameaçados de extinção, existem quase duas dezenas de espécies endêmicas. Se desaparecerem, nossos netos e bisnetos só conhecerão o mico-leão-de-cara-dourada, por exemplo, pelos livros, como uma lembrança remota de uma espécie que a geração de seus avôs e bisavôs ajudou a extinguir. Triste, não?
Há outros dados incômodos. Acredite se quiser: das 208 espécies animais sob risco de extinção no Brasil, 171 vivem na Mata Atlântica. Mas a devastação não é o único inimigo da flora e da fauna do bioma. O tráfico ilegal de animais silvestres e de plantas ornamentais também vem contribuindo para aumentar a lista dos ameaçados de extinção. “Os grandes alvos do traficante de animais silvestres são os bichos raros”, afirma o zootécnico José Leland Barroso, chefe do Departamento de Fiscalização do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e Recursos Renováveis (Ibama), em Brasília. “Temos exercido sobre esses animais uma fiscalização cotidiana e permanente. São espécies que têm áreas de distribuição restritas. Com isso, o tráfico tem diminuído.” Mas também é preocupante o contrabando de bromélias e orquídeas – plantas que, em geral, crescem no topo das árvores e apresentam uma variedade extraordinária de espécies. Há exemplares que chegam a custar 200 reais.
Conforme a lei de crimes ambientais em vigor no Brasil, a coleta de qualquer espécie vegetal ou animal é proibida em toda a Mata Atlântica. Mas, novamente, entra em cena aquela velha mentalidade de que a natureza, se não é um obstáculo para o progresso, funciona como uma reserva inesgotável de recursos biológicos que podem ser extraídos ininterruptamente. O pior de tudo é que há casos de extração predatória de palmito e caça de animais em parques estaduais – que, teoricamente, deveriam ser as áreas mais protegidas. “Se você analisar a situação dos parques da Mata Atlântica, verá que muitos deles viraram terra de ninguém. Estão abandonados, à mercê de invasores”, diz Mário Mantovani.
Os invasores a que ele se refere não são apenas os palmiteiros – que exploraram o palmito à exaustão, transformando-o num recurso hoje praticamente escasso. Ou os caçadores de pacas, capivaras e antas. A ocupação irregular também atinge áreas protegidas. “A expansão das cidades tem empurrado a população de baixa renda para as regiões serranas do Rio de Janeiro e as áreas de manancial em São Paulo, o que gera impacto ambiental”, diz o biólogo João Paulo Capobianco, do Instituto Socioambiental, em São Paulo. “A especulação imobiliária também estimula as invasões, por meio da venda de terrenos em áreas irregulares.” A história da Mata Atlântica é uma história de ocupação. Cerca de 120 milhões de habitantes, quase dois terços da população brasileira, vive em áreas anteriormente ocupadas pela Mata Atlântica – incluindo comunidades indígenas, caiçaras e quilombolas.
Manguezais
Um dos ecossistemas agregados à Mata Atlântica que também sofre com a especulação imobiliária são os manguezais. Com uma vegetação peculiar, as áreas de mangues ocupam o trecho intermediário entre o mar e a serra. “O índice de biodiversidade nos manguezais é baixo, mas suas três espécies características são perfeitamente adaptadas ao ambiente de salinidade, insolação e inundações”, afirma a bióloga Marília Cunha Lignon, do Instituto Oceonográfico da Universidade de São Paulo (USP). “Os manguezais funcionam como um berçário para várias espécies de peixes, que lá desovam. Além disso, devido à riqueza de nutrientes trazidos pelas marés, espécies de outros ecossistemas costumam freqüentar a área para buscar alimentos.”
Mesmo sendo uma área de preservação permanente, os manguezais têm sofrido com o crescimento exagerado do turismo em suas zonas de ocorrência, como na região de Iguape, no litoral sul de São Paulo. “O lixo e a depredação causam danos graves”, diz Marília. Outra ameaça é a exploração de camarão – uma espécie que não é típica do ecossistema -, principalmente em zonas de mangues do Rio Grande do Norte. Como os manguezais formam uma espécie de reservatório, a criação do crustáceo fica mais fácil. Mas há ganho econômico somente a curto prazo. “No Equador, a indústria do camarão explorou exaustivamente os manguezais de parte do seu litoral”, diz. “Depois de alguns anos, a região tornou-se improdutiva e totalmente degradada.”
Mas nem só de más notícias vive o reino dos mangues. Marília destaca as atividades sustentáveis praticadas pelos caiçaras em diversos trechos de manguezais, com apoio de ONGs e outras instituições (veja quadro na pág. 72). O mesmo acontece com os outros ecossistemas da Mata Atlântica. Centenas de projetos estão contribuindo para a conservação de pequenas áreas de floresta. O “Quem Faz o Quê pela Mata Atlântica”, um levantamento do Instituto Socioambiental, concluído em novembro de 2001, mostrou que há cerca de 900 projetos em andamento na Mata Atlântica, desenvolvidos por órgãos públicos, empresas, escolas, universidades, sindicatos, cooperativas e institutos de pesquisa.
Universidades também estão engajadas. Na Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq), da USP, em Piracicaba, SP, por exemplo, pesquisadores trabalham com a restauração da floresta tropical. O grupo do agrônomo Flávio Bertin Gandara estuda a base genética das espécies originais da Mata Atlântica. O objetivo é fazer com que as mudas usadas na recuperação de áreas degradadas conservem a grande diversidade vegetal da floresta. “Boa parte do reflorestamento que está sendo feito apresenta baixa biodiversidade”, afirma Flávio. ” São poucas as espécies plantadas e, entre essas espécies, quase não há diversidade genética.” O resultado são trechos reflorestados com árvores quase clonadas, com o código genético muito parecido. “Se nenhuma providência for tomada, vamos ter grandes áreas replantadas com baixa qualidade e pouca diversidade biológica”, diz.
Flávio e seus colegas pesquisam a “genealogia” da espécie, o grau de diversidade genética que ela apresenta e com que freqüência aparece nos fragmentos de Mata Atlântica. A partir daí, vão para o laboratório estudar o DNA das folhas. Com essas informações, os pesquisadores sabem quais as áreas mais propícias para a coleta de sementes e quantas mudas de cada árvore devem ser plantadas em determinada região. “Nossa intenção é fazer com que os trechos reflorestados estejam bastante próximos geneticamente do que era a floresta original”, diz Flávio. “Isso se faz introduzindo biodiversidade – tanto em número de espécies, quanto na variedade dos exemplares de uma mesma espécie.”
A técnica já está sendo aplicada no ClickÁrvore, um programa de reflorestamento via internet, criado pela S Mata Atlântica. Trata-se de uma iniciativa pioneira da S, a mais antiga ONG em defesa da Mata Atlântica, com 15 anos de existência. Começou como um grupo de amigos unidos pela defesa de Lagamar, no litoral sul de São Paulo, ameaçado pelas atividades econômicas predatórias. Aquela primeira bandeira da S rendeu frutos: a criação do Pólo Ecoturístico do Lagamar – que aposta no ecoturismo como ferramenta para o desenvolvimento sustentável – conseguiu reverter o processo de degradação da região e arrebatou prêmios internacionais por sua proposta exemplar. “Começo a acreditar que a conservação dos remanescentes da floresta não é um sonho impossível”, diz Mário Mantovani, um dos fundadores da S Mata Atlântica.
A lama que dá lucro
Comunidades que extraem caranguejos e outros produtos do mangue aprendem as vantagens do manejo sustentável
Os caranguejos estavam se tornando escassos em alguns trechos dos manguezais da baía de Vitória, no Espírito Santo, no fim dos anos 1990. Os prejuízos econômicos para a comunidade de caranguejeiros – homens que vivem da coleta do crustáceo – eram crescentes. Foi quando entrou em cena o Grupo do Mangue do Espírito Santo, formado por pesquisadores da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). O objetivo do grupo era conservar os manguezais e melhorar a qualidade de vida das populações que dependiam desse ecossistema para a sobrevivência.
A partir do conhecimento empírico dos caranguejeiros, os pesquisadores identificaram a época de reprodução dos caranguejos naquelas áreas e puderam estabelecer o período em que a captura deveria ser suspensa. O estudo serviu, inclusive, como base para uma portaria do Ibama que regulamenta os meses de coleta, o que ajudou a intensificar a fiscalização.
Para evitar a pesca predatória, os próprios caranguejeiros estabeleceram entre eles um sistema de rodízio. A comunidade foi atrás da Prefeitura, que assegurou, durante o período de reprodução dos caranguejos, uma contrapartida aos coletores: um salário mínimo ou uma cesta básica. “Trata-se de um projeto inovador”, diz o biólogo Renato de Almeida, que integra o Grupo do Mangue. “Os caranguejeiros já estão percebendo um aumento na quantidade de caranguejos.” E a atividade econômica tornou-se sustentável.
O Grupo do Mangue trabalha também com paneleiras e casqueiros de um dos bairros de Vitória. Elas são as artesãs que fabricam a panela de barro na qual se prepara a famosa moqueca capixaba, prato típico do Espírito Santo. O Grupo tem a incumbência de tirar a casca de uma das espécies de mangue para extrair o tanino, uma tinta vermelha que serve para banhar as panelas. “A extração do tanino sempre foi feita retirando-se um anel de casca ao redor da árvore”, diz Renato. “Com isso, os mangues não conseguiam sobreviver.”
Para reduzir o impacto ambiental da atividade, Renato e seus colegas criaram um programa de educação ambiental. Os casqueiros aprenderam a cortar até 50% do diâmetro da casca – ou seja, metade do anel – para não matar o mangue. As paneleiras aprenderam a diluir a tinta para economizá-la e evitar o uso de mais árvores. Os resultados começam a aparecer. “Ganhamos, em 2000, um prêmio da prefeitura por causa do projeto”, diz Renato.