A mente das abelhas
Elas sabem contar. Medem distâncias e horários, aprendem a usar ferramentas, transferem conhecimento aos descendentes – e também brincam, por puro divertimento. Podem até ser capazes da chamada metacognição: a habilidade de refletir sobre si próprio.
EEm 1914, quando tinha apenas 28 anos, o zoólogo alemão Karl von Frisch colocou sua carreira em jogo: questionou, de forma radical, o que a ciência sabia sobre as abelhas. Ele afirmou que não faria sentido existirem tantas flores, com cores tão diferentes, se isso não tivesse a função de atrair insetos polinizadores.
Von Frisch demonstrou, em um estudo pioneiro(1), que as abelhas não só enxergavam cores, como aprendiam quais delas identificavam as flores com mais néctar – a solução açucarada que é sua principal fonte de energia. Elas podiam até ser treinadas para preferir determinada cor (no teste, o cientista alemão usou azul).
Não pegou bem. Primeiro, o estudo foi ridicularizado. Depois, cientistas mais renomados tentaram repetir os experimentos, e não obtiveram os mesmos resultados. Carl von Hess, um dos maiores pesquisadores alemães da época, disse que Von Frisch não passava de uma fraude.
Em uma carta para a mãe, o jovem zoólogo chegou a admitir: “Tenho a sensação desconfortável de que agora possuo um inimigo real no mundo, alguém que pode me fazer mal”.
Só que Von Frisch estava certo, e sabia disso. Seus detratores não conseguiram repetir o experimento com as abelhas por um erro no modo como o conduziam: na versão deles, pequenos copos com mel eram colocados sobre pedaços de papel cinzentos ou coloridos, e os insetos eram liberados para escolher onde buscar seu alimento.
Só que o cheiro do mel é muito forte, e atrai as abelhas por si só. A cor se torna um elemento irrelevante. Em seu teste, Von Frisch usou algo mais próximo do que ocorre na natureza: uma solução açucarada sem odor, como o néctar. Dessa forma, as abelhas só poderiam se guiar pela cor.
Com calma, ele explicou isso aos outros cientistas, comprovou suas descobertas e, nas seis décadas seguintes, tornou-se a maior referência mundial em estudos sobre o comportamento, a percepção sensorial e a inteligência das abelhas – a ponto de ganhar o Prêmio Nobel em 1973.
O trabalho dele foi a pedra fundamental no estudo da cognição das abelhas e os mistérios do cérebro delas, que possui 1 milhão de neurônios. Não é nada comparado aos nossos 86 bilhões, mas é muito para um inseto: quatro vezes mais do que as formigas. “As abelhas estão entre os insetos mais inteligentes.
Elas lembram onde está sua casa, a uma distância de até 10 km, memorizam pontos de referência, usam o sol para se guiar e calculam o custo-benefício do esforço para obter determinada recompensa”, diz o zoólogo alemão Lars Chittka, especialista em cognição de insetos e autor do livro The Mind of a Bee (“A mente de uma abelha”, não lançado no Brasil).
Chittka foi responsável por uma das maiores descobertas sobre a inteligência das abelhas. Em 2008, logo após montar seu laboratório de pesquisa na Queen Mary University, em Londres, ele resolveu desafiar seus colegas cientistas, que estudavam o comportamento de animais.
Disse que as abelhas seriam capazes de aprender a usar uma ferramenta (no caso, puxar uma corda) para obter uma recompensa. Nem todos os bichos conseguem fazer isso – a lista de fracassos inclui alguns considerados bem inteligentes, como os papagaios.
Chittka achava que suas mamangavas (um tipo de abelha não-melífera) dariam conta. Os outros pesquisadores duvidaram muito.
Deu certo. Chittka e sua equipe conseguiram ensinar os insetos a puxar a cordinha. E algo ainda mais impressionante aconteceu(2): as abelhas passaram a transmitir essa habilidade, ensinando seus descendentes a obter a recompensa. Dessa forma, garantiam que aquele conhecimento sobreviveria a elas – algo crucial, já que uma abelha-operária vive apenas 45 dias.
O teste da cordinha não foi o único do tipo. Em 2017, num estudo célebre(3), Chittka colocou abelhas para empurrar uma bolinha na direção de um alvo, de modo a ganhar uma recompensa.
As primeiras a fazer o teste empurraram o objeto em várias direções, até entender o que precisavam fazer. Até aí, nada de novo: aprendiam na base da tentativa e erro.
O notável veio a seguir, quando os cientistas pegaram abelhas que não haviam participado do teste, mas tinham visto suas companheiras empurrando as bolinhas. Esse segundo grupo já chegou acertando logo de cara – provando que as abelhas são capazes de aprender por observação.
As experiências com bolas revelaram outra coisa surpreendente. As abelhas são capazes de um comportamento sofisticado, típico de seres cognitivamente avançados: brincar.
Instinto lúdico
Num estudo publicado em 2022, Chittka e seus colegas demonstraram(4) que as abelhas procuravam a oportunidade de brincar com bolinhas, mesmo quando não havia qualquer recompensa envolvida.
Os cientistas permitiram que 42 insetos explorassem dois compartimentos: um era vazio, mas o outro tinha bolinhas espalhadas pelo chão. As câmaras foram pintadas de cores diferentes (azul e amarelo, que as abelhas diferenciam bem) e os cientistas ensinaram os insetos, ao longo de 2 horas, a associar determinado tom com a presença das bolinhas.
Um grupo de abelhas foi ensinado a associar as bolinhas à cor azul; o outro grupo, à cor amarela. Isso foi feito para evitar que a possível preferência natural delas por uma dessas tonalidades distorcesse os resultados. As câmaras foram montadas de um jeito que as abelhas não conseguissem ver o que tinha dentro – obrigando-as a escolher pela cor, antes de entrar.
Em seguida, os cientistas deixaram os insetos livres para fazer o que preferissem. Resultado: as abelhas sempre escolhiam a cor, e a câmara, que continha bolinhas. “A ação repetida sugere que esse comportamento era recompensador”, afirma o trabalho. E as abelhas jovens giravam as bolinhas por mais tempo do que as velhas.
Elas estavam brincando? Para tirar a dúvida, os pesquisadores colaram as bolinhas no chão do compartimento – e as abelhas passaram a rejeitá-lo. Ou seja, elas realmente queriam rolar aqueles objetos, mesmo sem uma razão prática para isso.
Chittka e sua equipe foram além, e tentaram avaliar(5) a capacidade das abelhas de ter um estado emocional: o otimismo. Treinaram um grupo de 24 mamangavas para reconhecer dois cilindros de cores diferentes: um contendo uma solução açucarada e outro, apenas água.
Depois introduziram na cena um terceiro cilindro, de cor ambígua, que poderia ou não conter o líquido que as abelhas tanto desejavam. O que elas fariam? Antes de começar o teste, os pesquisadores deram uma dose de líquido doce a metade das participantes (para as demais, não).
As abelhas que haviam recebido o agrado ficaram mais corajosas: foram mais rápidas em experimentar a água do cilindro de cor ambígua.
Então os cientistas repetiram o teste, dando açúcar para metade das abelhas, antes de submetê-las a uma situação hostil – em que elas ficavam presas num espaço bem pequeno durante algum tempo. Os insetos que haviam recebido o alimento se recuperaram da experiência, e voaram para um lugar com comida, quatro vezes mais depressa que as outras.
Talvez você esteja pensando: as abelhas só agiram assim porque estavam alimentadas, de barriga cheia. O que isso teria a ver com supostas emoções? Aí veio a parte mais interessante da experiência.
Os pesquisadores passaram um creme de flufenazina, remédio que bloqueia a dopamina, nas abelhas. E o resultado foi completamente diferente: mesmo recebendo açúcar, as abelhas não ficavam mais corajosas.
Ou seja, a responsável por esse comportamento era mesmo a dopamina – um neurotransmissor que, em humanos, está ligado a emoções prazerosas. “Nossos resultados sustentam a noção de que os invertebrados têm estados que se enquadram nos critérios definidores de emoção”, afirma o estudo.
Números e metacognição
As abelhas também demonstraram habilidades matemáticas, como a capacidade de contar. O primeiro estudo a revelar isso foi realizado na Alemanha, em 1995, quando cientistas colocaram(6) um alimentador a 262 metros de uma colmeia – com algumas tendas coloridas no meio [veja no infográfico abaixo].
Variando a quantidade e a posição delas, os pesquisadores conseguiram demonstrar que as abelhas estavam contando a quantidade de tendas para chegar até o alimentador. Uma experiência mais sofisticada, feita na França em 2019 [veja aqui acima também], comprovou isso – e mostrou que elas também são capazes de diferenciar quantidades(7).
Mas, como as próprias abelhas já devem ter sentido nesses testes, nem tudo são flores na hora de determinar as habilidades cognitivas delas. Ainda há vários estudos com resultados contraditórios ou inconclusivos.
Sobre a capacidade desses insetos de somar, subtrair ou entender o conceito de zero(8), como apontaram experiências recentes, ainda não há consenso. “As abelhas realmente mostraram habilidades cognitivas impressionantes, mas fizeram isso em experimentos controlados”, argumenta o biólogo americano James Nieh, que estuda a inteligência desses insetos na Universidade da Califórnia.
“É essencial diferenciar entre a capacidade de executar uma tarefa [em ambiente controlado] e se as abelhas fariam isso na natureza, bem como os processos cognitivos que estão por trás disso. É essa última parte que interessa a muitos cientistas: o que esses comportamentos complexos dizem sobre a cognição das abelhas”, destaca.
Um comportamento 100% natural desses seres, e que também tem atraído a atenção da ciência, são as danças que elas usam para se comunicar. É a exibição mais clara da sua capacidade de ensinar e aprender.
Ao encontrar uma boa fonte de néctar, por exemplo, elas precisam contar isso às colegas, que irão até lá fazer o chamado forrageamento (coleta de recursos para a colônia).
As danças incluem determinadas sequências de movimentos, que indicam a direção e a distância do alvo [veja no infográfico acima]. Dessa forma, as abelhas informam umas às outras qual caminho devem seguir para forragear, e até o horário em que a tarefa será mais eficiente (a quantidade de néctar da flor pode variar durante o dia, por razões biológicas ou pela presença de outros insetos polinizadores, como as vespas).
Os melhores horários para forragear, aliás, também parecem ser um aprendizado transmitido entre gerações. Nos anos 1980, o biólogo alemão Martin Lindauer fez uma experiência que demonstrou isso(9). Ele condicionou dois grupos de abelhas, que só tiveram acesso a alimento num período bem definido.
O primeiro grupo podia se alimentar bem cedo, entre 5 e 6 horas da manhã; já o segundo, só bem mais tarde, entre 8 e 9 da noite. Em seguida, Lindauer coletou larvas dos dois grupos e as colocou numa espécie de incubadora, sem contato com outras abelhas. As larvas já nasceram preferindo forragear de manhã ou à noite – de acordo com o grupo do qual elas tinham vindo.
Ou seja, as abelhas realmente haviam transmitido aquela informação, sobre o horário de alimentação, a suas descendentes. O mecanismo por trás disso é desconhecido até hoje (Lindauer achava que talvez as larvas captassem algum tipo de vibração da colmeia nos horários de forragem).
Segundo Chittka, a habilidade de representar simbolicamente uma localização (caso das danças) só existe em dois animais: nas abelhas e nos seres humanos. Mas não está presente em todas as abelhas.
Ela só aparece em uma dúzia de espécies melíferas – sendo que existem mais de 20 mil variedades de abelha, e muitas delas sequer são sociais, ou seja, não vivem em grandes colmeias nem têm necessidade de repassar esse tipo de conhecimento.
Mesmo para as que são sociais, a transmissão de informações na maior parte das vezes se dá de formas diferentes, envolvendo movimentos mais simples ou a liberação de feromônios. “Os movimentos das abelhas sem ferrão, por exemplo, são menos específicos e não trazem essa informação de navegação tão detalhada”, explica Nieh.
Os cientistas ainda não sabem explicar por que só algumas espécies de abelha desenvolveram um método de sinalização complexo.
Uma das hipóteses é que, como a dança surgiu entre espécies originalmente tropicais, que viviam em florestas mais densas, ela foi se tornando mais sofisticada e precisa para evitar que as abelhas se perdessem ao sair da colônia. Mas essa tese ainda não foi comprovada.
Isso também vale para outra questão que tem intrigado os pesquisadores: as abelhas possuem metacognição? Trata-se da habilidade de pensar sobre si próprio. É uma característica associada à mais alta forma de inteligência – afinal, essa é uma das definições que os Homo sapiens sapiens dão a si mesmos, os “humanos que sabem que sabem”.
“É difícil identificar isso em outras espécies, pois você não pode simplesmente perguntar a elas. O jeito é fazer com métodos indiretos”, explica Chittka.
Em 2020, um grupo de cientistas da Alemanha e dos EUA demonstrou que as abelhas têm consciência do próprio corpo: elas usam o tamanho das próprias asas para julgar o espaço em obstáculos (na experiência, foram colocadas diante de frestas cada vez menores, e cada uma escolhia a fenda mais apropriada a seu tamanho).
Mas só isso não é suficiente para provar a metacognição. É preciso fazer outro teste, em que as abelhas são “convidadas” a escolher entre uma solução doce, da qual elas gostam, e um líquido amargo com quinino, que detestam.
Então, aproveitando-se da capacidade de identificar cores que Karl von Frisch comprovou há mais de um século, os cientistas vão colocando as abelhas diante de escolhas cada vez mais difíceis.
Primeiro, eles ensinam os insetos a associar uma determinada cor ao líquido doce, e aí fazem uma série de testes. No começo, um dos líquidos está sobre um papel amarelo, e o outro sobre um azul. Fácil. Qualquer abelha consegue diferenciar essas cores.
O teste vai ficando mais complexo: um líquido é colocado sobre um papel azul e o outro sobre um papel turquesa, de tonalidade bem parecida. Isso aumenta bastante a chance de que a abelha erre, e acabe bebendo o quinino amargo.
Mas aí, eis o ponto crítico, os cientistas oferecem às abelhas uma terceira alternativa, simplesmente desistir da tarefa. Resultado: quanto maior o risco de errar, maior a probabilidade de as abelhas desistirem.
“Isso sugere que elas teriam, no mínimo, a capacidade de avaliar o quanto estão seguras de seu próprio conhecimento. É o mesmo critério usado para avaliar outros animais, e nos dá confiança de que elas tenham metacognição. Mas você nunca terá 100% de certeza”, diz Chittka.
A única garantia é que, a cada nova descoberta, outro enigma se abre. “Essas são questões que certamente vão me ocupar pelo resto de minha carreira”, admite ele.
É como a metáfora usada por Karl von Frisch nos anos 1950, quando ele já se tornara uma sumidade na área, ao dizer: “A vida da abelha é como um poço mágico: quanto mais você tira, mais ele se enche de água novamente”. De novo, dá para dizer que ele acertou na mosca – ou melhor, na abelha.
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Fontes (1) Der Farbensinn und Formensinn der Biene. K Frisch, 1914. (2) Associative Mechanisms Allow for Social Learning and Cultural Transmission of String Pulling in an Insect. L Chittka e outros, 2016. (3) Bumblebees show cognitive flexibility by improving on an observed complex behavior. L Chittka e outros, 2017. (4) Do bumble bees play? L Chittka e outros, 2022.
(5) Unexpected rewards induce dopamine-dependent positive emotion–like state changes in bumblebees. C Solvi e outros, 2016. (6) Can honey bees count landmarks? L Chittka e K Geiger, 1995. (7) Surpassing the subitizing threshold: appetitive–aversive conditioning improves discrimination of numerosities in honeybees. SR Howard e outros, 2019. (8) Honey bees zero in on the empty set. A Neder, 2018.
(9) Ver The Mind of a Bee. L Chittka, 2022 (pág. 128-129). (10) Bumblebees perceive the spatial layout of their environment in relation to their body size and form to minimize inflight collisions. S Ravi e outros, 2020. (11) Honey bees selectively avoid difficult choices. C Perry e A Barron, 2013.