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A outra face do macaco: a violência entre os chimpanzés

Os animais não compartilham apenas uma boa parte do DNA conosco: também usam força bruta de forma gratuita e com requintes de crueldade.

Por Gabriela Aguerre
Atualizado em 28 fev 2020, 18h54 - Publicado em 30 set 1998, 22h00

(Nota: a matéria a seguir foi publicada originalmente em 1998, e nós resgatamos as ilustrações originais).

Em Kibale, um parque nacional no sudoeste de Uganda, África, um grupo de chimpanzés atacou um macho adulto de uma comunidade vizinha que passeava desacompanhado. A vítima ficou irreconhecível. Com o corpo todo ferido, os testículos arrancados, a traquéia puxada para fora, morreu na hora.

Ataques assim são difíceis de observar. Em onze anos, foi a primeira ofensiva de morte entre chimpanzés daquela região que os cientistas conseguiram registrar. Esses fatos convenceram um dos principais estudiosos dos primatas, o antropólogo inglês Richard Wrangham, a sustentar uma ideia que até agora aparecia apenas com timidez entre os pesquisadores.

No livro O Macho Demoníaco (Editora Objetiva), Wrangham demonstra de maneira brilhante que esses animais, além de terem inteligência e sensibilidade admiráveis, são também violentos, cruéis e traiçoeiros. Para ele, os crimes aproximam ainda mais os humanos de seus primos genéticos em primeiro grau. Nem todos os cientistas concordam com Wrangham. Mas os fatos que ele descreve, como você vai ver nesta reportagem, são de arrepiar os cabelos.

A outra face do macaco: a violência entre os chimpanzés
(Cheryl Ramalho/iStock)

Lutas sangrentas de guerra e de morte

Eles preparam tudo. Desde a hora do ataque até os instrumentos que vão usar, os chimpanzés planejam a emboscada ao forasteiro

Mantendo um silêncio fora do habitual, Humphrey e sete amigos, da comunidade de Kasekela, no oeste da Tanzânia, saem em bando com destino certo: o território vizinho. Com passos firmes e decididos, atingem o limite de sua área e vêem Godi, um jovem membro de outra comunidade próxima, a de Kahama. Ao notar os intrusos, Godi não tem dúvida, sai em disparada. Os invasores seguem atrás dele. Na frente, três fortões correm juntos, em passos quase sincronizados, ombro a ombro. Não demoram em alcançá-lo. O primeiro a atacar é Humphrey, o líder, que se lança sobre o inocente e puxa-lhe a perna. Godi perde o equilíbrio. É presa fácil do grupo ávido por sangue.

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Enquanto um segura a vítima, assustada, os demais a massacram com os instrumentos que têm em mãos. Um deles morde o braço de Godi, com furor. Os demais esmurram as omoplatas e costas. Godi berra de dor, medo e sofrimento. O ataque dura 10 minutos. A equipe, julgando-se vitoriosa, vai embora, deixando a vítima estatelada no chão, ofegando até a morte.

Essa história, contada no livro de Wrangham, parece ter saído das páginas policiais dos jornais (os nomes dos macacos foram dados pelos pesquisadores que observavam aquela área). Aconteceu em 1974, no Parque Nacional de Gombe, África, onde os animais vinham sendo estudados e eram bem conhecidos à época. Foi a primeira cena de violência gratuita entre chimpanzés testemunhada por um cientista, o tanzaniano Hillali Matama, assistente da naturalista inglesa Jane Goodall, que há trinta anos pesquisa os primatas da floresta tropical.

Provas do crime

Para Wrangham, o assalto a Godi soou como um alerta. A partir daí ele passou a desconfiar de que os chimpanzés praticam um tipo de violência diferente da agressividade intuitiva que outros animais empregam, seja para caçar, para se defender e, em certos casos, durante o acasalamento. Em vez disso, entre os chimpanzés Wrangham vê uma forma de brutalidade que lembra aquela utilizada pelo humano na guerra ou nos crimes. Ela impressiona porque parece ser premeditada e executada de cabeça fria. “Entre chimpanzés, adultos matam outros adultos deliberadamente”, disse Wrangham à SUPER. “Não é uma simples reação espontânea, como se vê em outros bichos.” Em vez disso, conta o cientista, os chimpanzés matadores, como os que desfiguraram Godi, são membros de uma gangue formada com o objetivo claro de eliminar rivais de comunidades vizinhas.

De vinte anos para cá, ocorreram diversos outros crimes, em vários outros bandos estudados na África. Nem todos foram testemunhados por seres humanos, pois não é fácil seguir os passos dos chimpanzés dentro da floresta. Mas os assassinatos deixaram vestígios, como cadáveres, marcas na floresta, sangue e pedaços de pele.

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(Paulo Nilson/Superinteressante)
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Montecchios e Capuletos

Wrangham, apesar de estar há onze anos em campo, nunca assistiu a um ataque de morte. “É muito difícil seguir os chimpanzés quando eles estão fazendo as patrulhas e encontram estranhos. Esse é o motivo pelo qual nós não sabemos muito sobre isso”, afirma Christophe Boesch, cientista suíço que, junto com a esposa, Hedwige, estuda chimpanzés selvagens desde 1979, na Floresta de Taï, na Costa do Marfim. Apesar da raridade dos eventos registrados, a violência ficou documentada e chocou a comunidade científica.

No livro Uma Janela para a Vida, no qual relata suas três décadas de experiência nas selvas da Tanzânia, tornando-se uma das pioneiras da observação direta dos chimpanzés, Jane Goodall comenta sua decepção com o comportamento dos animais. “Durante muitos anos acreditei que os chimpanzés eram, no geral, bem mais legais do que nós. De repente descobri que, sob certas circunstâncias, podiam ser igualmente brutais, que também tinham em sua natureza um lado obscuro. Isso doeu.”

É de doer, mesmo. Um chimpanzé em cativeiro, em más condições físicas, tem a força de um atleta humano em plena forma multiplicada por quatro ou cinco vezes. Em Gombe, após liquidar Godi, o macaco desacompanhado, a turma de Kasekela eliminou um a um todos os integrantes do bando de Kahama. Como as famílias Montecchio e Capuleto em Romeu e Julieta, Kasekela e Kahama se enfrentaram, por três anos, por motivos aparentemente inexplicáveis.

Teoria coloca toda a culpa no social

Solteiro e solitário, mas persistente, Tiger passou meses acompanhando, de longe, o bando liderado por Nunki, com o qual dividia o território, no Parque Nacional de Kibale, na Tanzânia. Até que, um dia, aproveitando o momento em que estava na encosta de um morro, desceu desabalado e irrompeu no meio do bando. Então, desviando-se de Nunki, saltou sobre uma de suas fêmeas e roubou-lhe o bebê. Matou-o com um golpe seco.

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Os gorilas, como os chimpanzés, também cometem crimes. É o que mostra a cena acima, descrita por Wrangham em seu livro. “Meu objetivo foi mostrar que os parentes mais próximos do homem são, de modo geral, dados à violência”, escreveu ele. Mas a brutalidade dos gorilas tem características próprias. Primeiro, restringe-se ao infanticídio. Não há estupros nem a formação de gangues para liquidar vizinhos. Depois, eles não são como os chimpanzés, que parecem experimentar delírios diante da morte do inimigo. O assassinato dos pequenos gorilas, até onde se sabe, é rápido e sem maldade.

A raiz dessa diferença, diz o cientista, pode estar na forma como os animais se organizam, ou seja, em suas sociedades. Os chimpanzés agiriam de maneira mais premeditada e mais cruel porque formam bandos maiores e mais complexos do que os dos gorilas. Os primeiros se compõem de até duas dezenas de animais, com três ou quatro machos e cinco ou seis fêmeas, além dos filhotes e pré-adolescentes. Já os segundos consistem de apenas um macho com quatro ou cinco fêmeas, num total de sete ou oito membros.

A outra face do macaco: a violência entre os chimpanzés
(apagnillo/iStock)

Trama sofisticada

Basta tomar nota desses números para concluir que a sociedade dos gorilas, por ter um único macho dominante, não abre espaço para disputas internas. Enquanto que, entre chimpanzés, esse é um motivo freqüente de agressões e mortes, inclusive porque surgem coligações entre os membros do bando, que são em maior quantidade e envolvem animais com diversos graus de parentesco entre si. Resulta daí uma trama social sofisticada, que é comparável, segundo Wrangham, à sociedade humana, em pelo menos um aspecto que tem tudo a ver com a violência. Apenas os chimpanzés e o humano, entre todas as 200 espécies de macacos e milhares de mamíferos, formam um tipo de comunidade chamado de patrilinear, no qual a figura do macho é dominante. Vê-se isso entre os chimpanzés, porque os filhotes do sexo masculino sempre permanecem no bando, depois da adolescência, enquanto as garotas têm de sair e procurar outro grupo de chimpanzés para acasalar e procriar. O resultado, do ponto de vista da agressividade, é que os machos tornam-se muito unidos. Claro que eles disputam o poder entre si. Mas, uma vez estabelecida a hierarquia dentro do bando, passam a defendê-lo com unhas e dentes dos vizinhos.

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(Paulo Nilson/Superinteressante)
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Normas flexíveis

Em comparação, os gorilas têm normas muito mais flexíveis. Entre eles, as adolescentes têm liberdade para decidir se ficam ou saem, e os garotos têm que vagar pela floresta. E são esses andarilhos, em busca de fêmeas para constituir um bando, que cometem os infanticídios. De acordo com Wrangham, eles assassinam os bebês num gesto puramente simbólico: é um meio de mostrar à mãe que o macho do bando ao qual ela pertence não pode garantir a segurança de suas crias. Traumatizada, mas conformada, a fêmea geralmente aceita a demonstração de poder do pretendente.

A hipótese de Wrangham é boa, mas só poderá ser considerada verdadeira depois de ser comprovada por mais observações. Alguns estudiosos lembram que, embora os choques entre tropas de chimpanzés aconteçam em toda a África, eles são mais raros em alguns lugares do que em outros. “Meus chimpanzés, em Bossou, na África Ocidental, são mais pacíficos que os da África Oriental”, disse à SUPER o professor Yukimaru Sugiyama, do Instituto de Pesquisa de Primatas da Universidade de Kyoto, no Japão. Christophe Boesch faz a mesma crítica. Para ele, Wrangham baseou-se muito no que se observa em uma única região africana. “Será que a situação reflete com fidelidade o que acontece em outras populações?”, pergunta Boesch.

A salvação de todos no poder feminino

A fêmea adolescente emite sinais. Senta-se e olha fixamente a amiga, mais velha, que está a poucos metros dela, também sentada. Quando percebe que foi notada, a adolescente deita-se. Não emite nenhum ruído. Tão logo as duas se aproximam, iniciam uma rápida cerimônia afetiva e juntam seus órgãos sexuais. Ao final, ambas emitem grunhidos, que se assemelham a gritos de prazer. Esse ritual acontece com frequência entre as fêmeas bonobos.

Os bonobos, ou chimpanzés pigmeus, não são tão conhecidos quanto seus primos. É dificílimo vê-los nos zoológicos. Na prática, só foram descobertos uns setenta anos atrás e passaram a ser realmente observados há duas décadas. Separados dos chimpanzés por cerca de 3 milhões de anos, são um pouco menores que eles, têm o rosto levemente mais escuro e partem o cabelo ao meio. Acima de tudo, são pacíficos, como se tivessem encontrado um código especial para a harmonia. “A seleção natural agiu no sentido de reduzir a tendência agressiva nos bonobos”, afirma Richard Wrangham.

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A outra face do macaco: a violência entre os chimpanzés
(guenterguni/iStock)

O segredo da paz

O aspecto mais curioso de suas comunidades é o valor do sexo. Entre eles, toda hora é hora de acasalamento, e não necessariamente com o objetivo de procriar. A fêmea nem precisa estar no período fértil para despertar interesse dos machos. Mesmo porque, ao contrário dos chimpanzés, eles não sabem quando a fêmea está ovulando. Aliás, as relações convencionais são as que menos despertam interesse. Todo mundo namora todo mundo. Os dois sexos têm contatos tanto hetero quanto homossexuais, e as crianças têm relações entre si e também com adultos.

Aparece, então, o segundo traço marcante desses macacos gentis. É a ausência completa de registro de guerras grupais, estupros, surras ou infanticídios, em contraste intrigante com as comunidades de chimpanzés. Wrangham explica a diferença dizendo que o segredo da paz reside no poder das fêmeas. Em defesa dessa idéia constrói um cuidadoso raciocínio. Indo por etapas, o cientista lembra, primeiro, que esses animais ocupam regiões relativamente vazias de gorilas, os quais, em contraposição, disputam certos tipos de comida com os chimpanzés, como cascas e galhos de árvore.

Isso assegura fartura na mesa dos bonobos, composta na maior parte das vezes de frutas. A conseqüência é que as tropas não têm motivos muitos fortes para confrontos sangrentos, e os machos dentro de cada bando não formam gangues tão aguerridas e coesas como as dos chimpanzés. Em vez disso, são as fêmeas que se unem, estabelecendo laços fortes de amizade durante as buscas de alimentos, sempre disponíveis na proximidades do território que ocupam.

Sindicatos femininos

As madames chimpanzés não têm a mesma oportunidade, já que precisam procurar mais longe os petiscos escassos. Então, como não podem carregar as crias em expedições longas e cansativas, a maior parte das fêmeas — as que são mães — fica fora dos pequenos grupos encarregados de sair em busca do almoço. É inevitável que as chimpanzés tenham menos poder do que as bonobos, que formam verdadeiros sindicatos dentro das tropas. “A posição de um bonobo na hierarquia depende do status de sua mãe. Se ela não tem poder, ele também não tem”, lembra o etólogo Eduardo Bottoni, do Instituto de Psicologia Experimental da Universidade de São Paulo.

Embalados por orgias suaves, desmotivados para a guerra e para as disputas internas, os machos bonobos não exibem o lado sombrio dos chimpanzés. Então, se você estiver passeando pela floresta e encontrar uma tropa de bonobos, não bobeie: saia de fininho para não perturbar as cenas de afeto explícito entre eles.

Para saber mais

O Macho Demoníaco
Richard Wrangham e Dale Peterson, Editora Objetiva, 1998.

Good Natured: Origins of Right and Wrong in Humans and Other Animals
Frans de Waal, Harvard University Press, 1996.

Uma Janela para a Vida
Jane Goodall, Jorge Zahar Editor, 1991.

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