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A verdade está nos bons vinhos

Um bom francês não pode repousar à luz do dia, viver agitado nem respirar demais enquanto envelhece. A ciência explica porque são dispensados tantos cuidados aos nobres líquidos tintos e brancos.

Por Da Redação Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 31 out 2016, 18h48 - Publicado em 30 nov 1990, 22h00

Fátima Cardoso

O vinho à mesa, liturgia.

Respeito silencioso paira sobre a toalha.
A garrafa espera o gesto, o saca-rolha espera
o gesto que há de ser lento e ritual.

Ergue-se o pai, grão sacerdote prende a garrafa
entre os joelhos gira regira a espira metálica
até o coração do gargalo.
Não fazesforço não enviesa não rompe a rolha
É grave, simples, de velha norma.(…)

O Vinho,
Carlos Drurnmond de Andrade

Mais do que bebida, o vinho é um ritual. Os connaisseurs o tratam como um ser vivo, que se reproduz anualmente, cada geração diferente da outra, com peculiaridades que as distinguem e as fazem mais ou menos amadas. Têm na memória os nomes das grandes marcas e das melhores safras. Deixam suas raridades repousando longe da luz e do calor, sem barulho, sem movimento. Abrem as garrafas horas antes de servi-las, para que o líquido respire; sabem a exata quantidade que devem colocar no copo, e não pode ser em qualquer copo. Não apenas o bebem, mas aspiram seu perfume, desfrutam-no. Essa profusão de ritos tem jeito de mistério, domínio exclusivo de iniciados, mas pode ser desvendada pela ciência—que tanto justifica como derruba alguns desses mitos.

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Conforme querem os connaisseurs, ou conhecedores de vinho, ele tem mesmo vida. Ao contrário dos destilados, como uísque ou vodca, que saem das destilarias prontos e acabados, o vinho carrega substâncias vivas para a garrafa, repousando em estado latente ou trabalhando muito lentamente, num processo contínuo de ligação entre os elementos químicos que o formam. Esses elementos são resultado de absolutamente tudo o que aconteceu com a uva, de todas as interferências e variáveis que sofreu, desde o momento em que brotou na videira até tornar-se vinho. Essas sutis diferenças explicam o motivo de tanta badalação em torno de um tinto de Bordeaux ou um Chablis (branco) de Bourgogne, e por que nem todo vinho fica tanto melhor quanto mais envelhece.

O bom vinho começa a nascer na terra, em solo calcáreo. Esse é o tipo de solo das grandes regiões viníferas de, países como a França e Portugal. Igual a qualquer vegetal, a videira se alimenta de compostos orgânicos contendo sobretudo nitrogênio, fósforo e potássio, e os sais minerais do solo (cálcio, magnésio, sódio, ferro). Para manter sempre a mesma qualidade, a videira recebe um tratamento espartano. “A uva precisa sofrer um pouco para dar um bom vinho”, diz o químico francês Alain Parentheon, chefe do laboratório de controle e desenvolvimento da Moët & Chandon, na região francesa de Champagne. “Em solos muito ricos, os nutrientes puxados da terra pelo pé da videira são distribuídos por muitas frutas e se diluem, dando uvas de menor qualidade”, explica ele.

A Vitis vinifera, espécie mais cultivada pelo mundo afora para a produção de vinhos finos, se vira como pode nesse regime para acumular a maior quantidade de nutrientes. É nessa hora que pesa um dos mais importantes fatores de qualidade da uva — o clima. A videira descansa durante o inverno muito frio, assim como as demais plantas que vivem nas zonas temperadas. Na primavera começa a acordar, dá as flores e depois os frutos que vão amadurecer no verão. Uvas para vinhos finos precisam estar bem maduras, e quem vai ajudar nesse trabalho é o sol. Por isso o verão do sul europeu é tão bom para elas — há muito sol e pouquíssima chuva. As uvas começam a precisar de sol quando, já crescidinhas, transformam sua casca, verde opaca em vermelho ou branco translúcido.

Quanto mais sol recebe, mais madura a uva fica; portanto, maior teor de açúcar e menor de ácido terá. A luz e o calor solar atravessam a pele e ativam dentro da uva as enzimas, moléculas de proteínas. Uma extremidade da enzima capta gás carbônico (CO2), outra capta água (H2O), e tem-se como resultado açúcar (frutose e glicose) e oxigênio (O2). Para funcionar direito, as enzimas devem ter metais nas extremidades, aqueles mesmos que a videira puxou do solo. O teor de açúcar é fundamental, pois é ele que vai virar álcool na fabricação do vinho. Mas a intenção da Vitis vinifera ao deixar o sol entrar não era produzir um vinho de primeira, e sim sobreviver. Essa acumulação de açúcar nada mais é do que reserva de energia para sua semente, que no outono-inverno seria largada no mundo com a missão de perpetuar a espécie.

Justamente por causa do clima, o Brasil não tem vinhos de qualidade comparável aos melhores da Europa. O verão brasileiro, ao contrário do europeu, é muito úmido e chuvoso. Cai água demais sobre a videira, causando assim a diluição do açúcar, além de a uva não chegar ao mesmo ponto de maturação das européias. O enólogo Adolfo Alberto Lona, da Martini & Rossi, demonstra as conseqüências: em 1 litro de suco de uva, cada 17 gramas de açúcar produzem 1 grau de álcool. Para se obter a gradação ideal, em torno de 11 graus, é necessário ter 187 gramas de açúcar em 1 litro de suco. No Brasil, 1 litro só tem entre 150 e 160 gramas. O que falta é completado com sacarose, o açúcar de cana.

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Colhidas as uvas, elas são levadas à prensagem para virar suco. No caso do vinho branco, o esmagamento é muito lento e cuidadoso, pois o suco mais equilibrado entre açúcar e ácido da uva concentra-se no meio da polpa, entre a região da pele e da semente, e é justamente o primeiro a ser liberado quando a uva sofre pressão. O mosto — suco da uva pronto para ser fermentado — fica depois pouco tempo em contato com a pele, pois é lá que estão as antocianinas, polifenóis responsáveis pela pigmentação vermelha. Por esse motivo é que mesmo uvas vermelhas produzem vinhos brancos — quanto menor o tempo de contato entre pele e mosto, menos antocianinas passarão para o líquido.

Com o vinho tinto o cuidado não é tão grande. Retirado o engaço, os “cabinhos” da uva, os frutos são todos esmagados com pele e semente. Para que o vinho adquira a cor vermelha, o mosto é deixado mais tempo em contato com a pele. Junto com as antocianinas passa grande quantidade de taninos, também polifenóis, que dão um sabor extremamente adstringente ao vinho. Aqui começam a se diferenciar os vinhos tintos dos brancos. Em conseqüência do maior contato com a pele e mesmo com as sementes, o tinto carregará muito mais substâncias e elementos químicos que o branco, sendo portanto de estrutura bem mais complexa e mais resistente. Tal resistência se traduzirá no tempo que o vinho agüenta na garrafa sem se deteriorar — o branco não passa de três anos. A vida do tinto será definida na maturação, a fase posterior à fermentação.

Todo o açúcar que a uva armazenou vai virar álcool na fermentação. O trabalho é feito pelas leveduras, microorganismos que são uma variedade de fungo. Elas existem pairando pelo ar, mas basicamente duas cepas foram selecionadas em laboratório para produzir os vinhos finos: Saccharomyces cerevisae e Saccharomyces bayanus. As leveduras transformam açúcar em álcool (etanol) e gás carbônico. Acontece uma primeira fermentação, chamada tumultuosa, depois uma segunda, em que o açúcar vai acabar de ser consumido. Nos vinhos brancos, a fermentação tem que ocorrer a baixa temperatura, até 15 graus Celsius, para que os aromas frutados e florais, provenientes da uva, não escapem junto com o gás carbônico. Esses aromas vêm de álcoois complexos, como terpenos, terpinos e terpenóides. Por isso, quando os apreciadores giram o copo suavemente sob o nariz, com ar embevecido, antes de tomar o primeiro gole, não estão apenas representando uma cena de ritual sem sentido; um desses terpenos, o geraniol, encontrado sobretudo nas uvas da região alemã do Reno, é a mesma substância química que dá aroma às rosas.

Quando do açúcar só tiver ficado um pouco, entra em cena a fermentação malo-láctica, feita dessa vez por bactérias originárias da uva. Um dos dois principais ácidos existentes na fruta, o tartárico, é bem-vindo, pois é o responsável pela adstringência refrescante do vinho. Mas o outro, o ácido málico, deixa um sabor amargo na boca. Para eliminá-lo, são ativadas as bactérias que convertem ácido málico em ácido láctico, bem menos adstringente e amargo, e em glicerina, outro componente que contribui para amaciar o sabor do vinho. Terminada a fermentação, o vinho branco já estará praticamente pronto, mas o tinto ainda terá um longo caminho a percorrer. Só a quantidade de tanino que carrega basta para deixá-lo intragável. Seu destino é então o amadurecimento, um tempo de repouso e vida mansa, indispensável para que se produzam as reações químicas que aprimorarão as propriedades organolépticas da bebida, ou seja, o conjunto de cor, sabor e aroma.

Esqueça a idéia muito difundida de que o vinho amadurece em barris de carvalho para adquirir cor — isso é coisa de uísque. O carvalho entra na história por ser uma das madeiras mais porosas que existem, permitindo assim que continuamente uma pequena quantidade de oxigênio entre em contato com a bebida. É ele que vai chamar leveduras e bactérias ao trabalho, promovendo oxidações. As oxidações fazem álcool virar aldeído, aldeídos combinados com ácidos viram ésteres, todos eles compostos orgânicos cada vez menos duros ao paladar, deixando o vinho, na linguagem dos enófilos, mais “redondo”.

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Nessa fase se estabelece a diferença entre vinhos tintos jovens e maduros. Jovens são os que passam pouco tempo nos barris, no máximo um ou dois anos. Conseqüentemente, acontecem nele menos oxidações, sua estrutura será mais simples e seu sabor mais adstringente. O vinho maduro repousa entre três e cinco anos nos barris, e durante esse descanso as reações químicas entre centenas de elementos tornam sua estrutura mais complexa, seu sabor e bouquet mais sofisticados. Só resistem longos envelhecimentos em garrafas os vinhos tintos maduros, dos quais os melhores Bordeaux são um belo exemplo. Eles não só resistem como pedem envelhecimento na garrafa, para continuar vagarosamente a sofrer reações da mesma maneira que no amadurecimento, até atingir o ápice na qualidade de sabor e bouquet. Um Bordeaux ou um italiano Brunello di Montalcino levam de cinco a vinte anos para chegar lá, enquanto os jovens Beaujolais e Chianti apenas de um a três anos.

Quando entra na garrafa, o vinho é composto, nesta ordem descrescente, de água, álcool, glicerina, açúcares, ácidos, ésteres e álcoois superiores. “Além dessas, existem mais

2 000 substâncias químicas em quantidades ínfimas, mas capazes de reagir umas com as outras e alterar as propriedades organolépticas do vinho”, conta o bioquímico e enófilo Toshio Fujisaka. Enquanto viver na garrafa, repousando em adegas ou levando safanões em caminhões de transporte pela estrada afora, esse líquido sensível vai responder à altura do tratamento que receber. Eis o motivo de tantos mitos e ritos a cercar os vinhos nobres. O primeiro mandamento do enófilo reza que a garrafa deve ser conservada deitada, longe do calor, a no máximo 15 graus. Temperaturas maiores ativam as leveduras e bactérias que sobrevivem latentes no vinho; se acordarem, podem provocar uma nova fermentação, fazer ligações químicas indesejáveis, quebrar outras.

Caso a garrafa fique em pé, há o risco de a rolha secar, murchar e deixar entrar mais ar do que deveria, e nele vêm mais leveduras, bactérias e oxigênio, seu alimento preferido. O vinho também deve repousar quietinho, sem agitação, para que o pouco de ar que existe lá dentro não se incorpore ao líquido, pois um pouco de oxigênio que ali esteja causará oxidações. Mas nem sempre o vinho na presença de ar vira vinagre, como faz crer a lenda. Só vira se entrar em contato com a Acetobacter sp, cuja especialidade é transformar etanol em ácido acético (vinagre). Obviamente ela existe pelo ar e pode entrar na garrafa — ou não. Porém, quando a garrafa é aberta para a degustação, alguns enófilos até gostam que o ar se incorpore ao líquido, pois ficará mais fluido, tornando os álcoois e ésteres do bouquet mais voláteis e facilmente perceptíveis. Daí a recomendação para as garrafas serem abertas algum tempo antes de consumidas.

Outra obrigação do conhecedor é deixar as garrafas ao abrigo da luz, sobretudo luz solar e de lâmpadas fluorescentes. O perigo é a radiação ultravioleta, catalisadora de reações fotoquímicas, principalmente nas instáveis antocianinas, as responsáveis pela cor do vinho. A luz quebra suas ligações moleculares e sabe-se lá aonde os componentes vão se religar; o vinho branco fica amarelado, o tinto passa a ser cor de tijolo. Mudando a cor por causa das reações químicas, é bem provável que o sabor também fique comprometido. Todas essas agruras pelas quais o vinho passa não são percebidas por qualquer leigo, mas os sentidos muito aguçados e treinados dos sommeliers os denunciam com facilidade. Por isso restaurantes de altíssima categoria mantêm um desses especialistas de plantão, só para cuidar do capítulo dos vinhos: eles indicam diferenças de safras e eventualmente provam a garrafa escolhida, antes de servi-la, para assegurar que ela não se deteriorou.

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Sendo assim tão sensíveis, podem os maravilhosos vinhos franceses, italianos ou portugueses resistir ao sofrimento de uma viagem através do oceano até o Brasil, e chegar aqui com a mesma qualidade? Não, ainda que isso não signifique tragicamente que não se possa mais bebê- los. Com o calor e a agitação sofridos durante a viagem, o vinho certamente passa pelas reações que o prejudicam. Quando se compra um bom vinho, deve-se deixá-lo repousar por um a dois meses numa adega, para que se recupere das canseiras da viagem. “Esse descanso pode reverter algumas reações indesejáveis que o vinho tenha sofrido, mas nunca a totalidade delas”, explica Orlando Zancanaro Junior, professor de Tecnologia de Fermentações na Universidade de São Paulo. Os enófilos dos trópicos, se quiserem beber o mais puro e imaculado néctar, têm que buscá- lo na fonte.

Para saber mais:

Sabor de espuma

(SUPER número 12, ano 3)


O mais fino dos sentidos

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(SUPER número 10, ano 7)

Nariz X Nariz

(SUPER número 5, ano 11)

Um exercício de sensações

Degustar um vinho é muito mais do que bebê-lo. Mesmo porque o paladar só pode dizer se ele é doce, salgado, azedo ou amargo. Para desfrutar até a última gota de sua riqueza e complexidade, os enófilos se valem também do olfato e da visão. O processo de degustação, pleno de detalhes e sutilezas, basicamente começa com o exame visual. Segura-se o copo de vinho pela haste e, contra a luz, analisam-se cor, transparência e brilho. Depois vem o exame olfativo, quando se sente o aroma (cheiro originário da uva) e o bouquet (cheiro produzido nas fases de fermentação e envelhecimento). Para isso, o copo deve ser agitado várias vezes, aspirando-se nos intervalos. Os connaisseurs, pela experiência, chegam ao luxo de distinguir odores como florais, vegetais, picantes ou balsâmicos.

A última etapa é o exame gustativo, quando se toma um grande gole de vinho deixando-o alguns segundos em contato com toda a superfície da boca. Essa cerimônia exige um copo especial, chamado tulipa, alto e de boca estreita, para evitar que o aroma e o bouquet escapem rapidamente. A capacidade de distinguir vinhos bons dos nem tanto é sobretudo um exercício de memória e comparação. O enófilo paulista Clóvis Siqueira sugere, para quem quer se iniciar na degustação, começar comparando três vinhos comuns com um de reconhecida qualidade superior, para sentir a diferença. Depois passa- se à descoberta das preferências pessoais. Pegam-se cinco garrafas de vinho produzido com a mesma uva— Cabernet Sauvignon, por exemplo — em regiões demarcadas diferentes, como Bordeaux, Rhône, Bourgogne, Rioja e Dão. Como a personalidade e a característica de cada vinho são únicas, certamente um deles agradará mais ao olhar, olfato e gosto do provador.

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