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Antilocapra, um campeão de fôlego

Pesquisadores desvendam os mistérios da fisiologia do pronghom, o antílope americano que consegue correr durante dez minutos mantendo a média horária de 65 quilômetros, alcança até 100 quilômetros por hora de velocidade máxima e está sendo considerado o atleta mais resistente entre os mamíferos terrestres.

Por Da Redação Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 31 out 2016, 18h27 - Publicado em 30 jun 1992, 22h00

Cadu Ladeira e Marcelo Affini

Um atleta esbelto, elegante e veloz, capaz de inspirar uma incrível sensação de leveza com suas carreiras através das pradarias norte-americanas. Um mestre da sobrevivência, que escapou à sanha dos predadores naturais e dos caçadores de bisões que exterminaram seus ex-companheiros de pastagem. Um vencedor, que acaba de conquistar um lugar na galeria dos grandes campeões da natureza. Se o assunto for um pequeno antílope de nome pronghorn (Antilocapra americana), qualquer das opções acima cai como uma luva. Mas é a última que traz um ar de novidade na definição desse velocista, que até algum tempo atrás só encontrava espaço para o seu nome nas listas de animais ameaçados de extinção.

O antilocapra, seu nome em português, agora virou celebridade atlética. Correndo sobre uma esteira rolante, em laboratório, ele não só alcançou a velocidade de 100 quilômetros por hora — segundo lugar entre os mais rápidos mamíferos terrestres atrás apenas da chita,o felino africano que chega a 114 quilômetros por hora —, mas revelou-se capaz de correr durante 10 minutos mantendo a impressionante média horária de 65 quilômetros. Ou seja, a mesma velocidade que um cavalo puro-sangue inglês atinge no pico de uma corrida de 5 minutos de duração. Em relação ao desempenho humano, seria até covardia: nossos melhores atletas não passam dos 38 quilômetros por hora e só conseguem manter este ritmo por, no máximo, 10 segundos.

“Ele é, sem dúvida, o campeão olímpico das provas de resistência entre os mamíferos”, garante o fisiologista Stan L. Lindstedt, pesquisador do departamento de Zoologia e Fisiologia da Universidade do Wyoming, nos Estados Unidos, e chefe da equipe de estudos que avaliou minuciosamente as potencialidades do novo recordista de quatro patas, 32 quilos de peso e altura por volta de 90 centímetros. Ele e seus colegas descobriram que o grande desempenho do antílope ao contrário do que seu delicado corpo poderia sugerir, não vinha da reveza. Em artigo publicado na revista inglesa Nature, Lindstedt revela que o dote com o qual o antilocapra desbanca o onagro — um jumento encontrado na Ásia — da condição de corredor mais resistente é a rapidez de seu metabolismo. Mais precisamente, a eficiência do funcionamento de seus músculos, donos de uma singular capacidade de absorver oxigênio (O), principal agente das reações químicas que geram energia para movimentar a maioria dos seres vivos. A teoria é simples: quanto mais oxigenado o músculo, maior o seu desempenho.

Na análise do sistema respiratório do antílope americano, o pesquisador provou que ele fornece a seus músculos nada menos do que 1 litro de oxigênio a cada 7,5 segundos. São 4,15 mililitros (mi) de oxigênio por segundo e por quilo de peso, número para superdotado nenhum botar defeito. Principalmente quando comparado com a quantidade desse gás vital consumi da por outro atleta da natureza, o cavalo de corrida, que processa no máximo 1 litro a cada 13,3 segundos (2,34 mil por segundo por quilo). Quanto ao homem, continua segurando a lanterninha: um excepcional atleta olímpico não metaboliza mais do que 1 litro a cada 45 segundos (1,45 ml por segundo, por quilo).

Que a capacidade de absorção do antilocapra seria maior que a do cavalo ou a do homem, era previsível. Em termos fisiológicos, sabe-se que quanto maior o peso do corpo, menor a quantidade de oxigênio consumida por segundo. Um grama de tecido do elefante, o maior animal terrestre, processa em um mês o mesmo volume de O2 que 1 grama de tecido do musaranho — parente do rato, de 3,5 centímetros, considerado o menor dos mamíferos — absorve em apenas um dia. A surpresa, no caso desse antílope foi ele suplantar em muito não apenas seus concorrentes, mas também a média prevista para animais do seu porte.

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Ao estabelecer, por exemplo, um paralelo entre os organismos do antilocapra e da cabra, ruminante com algumas características físicas similares às do novo campeão, Lindstedt descobriu que o antilocapra tinha pulmões mais amplos — com volume 2,5 vezes maior que o das cabras. Além disso, sua estrutura de difusão do ar nesses órgãos era mais eficiente e sua capacidade de distribuir oxigênio para os músculos mostrou-se superior: sua corrente sangüínea tem uma concentração cinco vezes superior de hemoglobina — molécula encarregada do transporte do oxigênio. No balanço final, ele demonstrou ser capaz de, no mesmo intervalo de tempo, repassar quase cinco vezes mais 02 para seus músculos.

“Outra vantagem do antilocapra é a enorme quantidade de mitocôndrias presente em sua musculatura esquelética”, acrescenta o biólogo José Eduardo WiLken Bicudo, pesquisador do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo. As mitocôndrias — órgãos microscópicos presentes nas células do corpo de qualquer animal — funcionam como verdadeiras usinas geradoras de força. É nelas que ocorre a transformação do oxigênio captado pelo organismo em energia. “Essa quantidade faz com que ele tire o máximo proveito do oxigênio do sangue alimentado por seus pulmões e bombeado por um avantajado coração” completa Bicudo, que conhece bem o trabalho realizado pelo fisiologista americano: uma de suas auxiliares, a bióloga Celina Zerbinatti, participou da equipe de Lindstedt.

Como o antilocapra tem um coração três vezes mais potente que o das cabras, ele consegue distribuir mais rapidamente o sangue saturado de O2 pelas células musculares, que por sua vez abrigam pelo menos duas vezes mais mitocôndrias. Com isso, o antilocapra libera a cada segundo 765 calorias, energia suficiente para aquecer em 1 °C cerca de 765 mililitros de água.

Por que ele chegou a tanto, é um mistério que ainda não tem resposta. Sabe-se apenas que sobrevivência, para o antilocapra, sempre foi sinônimo de fôlego. Seus principais predadores nos campos do oeste dos Estados Unidos e norte do México, por onde perambula desde o Mioceno (mais ou menos 20 milhões de anos atrás), são os lobos e os coiotes. Animais velozes, é certo, mas que não ultrapassam os 65 km/h. Ainda assim, os cientistas acreditam que foi fugindo deles que ele se transformou num recordista cheio de gás. O último representante da família dos antilocaprídeos no mundo — um grupo que já habitou a Europa em tempos remotos, mas desapareceu — continua correndo pela vida. E cada vez mais veloz.

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Para saber mais:

Toda a vida do mundo

(SUPER número 7, ano 4)

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Mistura do barulho

Imaginar um animal estranhamente mesclado, que traz em sua anatomia um pouco de tudo, é um bom começo para se entender a natureza do antilocapra. Como membro da ordem dos artiodáctilos, ele é primo distante dos bovídeos, dos cervídeos e dos girafídeos, e carrega uma mistura das marcas desse parentesco: patas semelhantes às da girafa, mamas e rabo de cabra, pêlo de veado, chifres de boi e veado combinados, olhos de gazela e estrutura de antílope. Somados os fatores, surge um velocista que vive surpreendendo. Até Lindstedt divulgou seu estudo, as estimativas mais ousadas não passavam dos 50 km/h para corridas de longo curso e 86 km/h de velocidade máxima. A caça do antilocarpra foi proibida em 1939, as manadas se recuperam rapidamente, mas alguns estados americanos já voltaram a autorizá-la.

O custo da evolução

Numa raia olímpica, a derrota seria humilhante. Desde que deixou de ser quadrúpede, o homem se tornou um perdedor comparado aos grandes corredores de quatro patas. Tudo começou há cerca de 12 milhões de anos, com as transformações geológicas que resfriaram os continentes e fizeram surgir as grandes cadeias de montanhas. Como as florestas começaram a dar lugar a vastas regiões planas de vegetação baixa, nossos remotos ancentrais se viram forçados a deixar as árvores e enfrentar os predadores em campo aberto. Longe do abrigo dos galhos, eles começaram a aprimorar a postura ereta, já que ao se elevar acima do nível do solo pressentiam de longe o inimigo.

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Resultado: há 2 milhões de anos, a posição de seu quadra foi alterada e deixou de existir a angulação de 90° entre seus membros e o tronco, exatamente aquilo que faz com que o antilocapra a chita ou o cavalo consigam obter uma extraordinária força de impulso para correr. O consolo é que, no fundo, isso não passou de uma troca inteligente. Com as mãos livres da função locomotora, o homem teve a chance que precisava para transformá-las em instrumentos de precisão capazes de realizar movimentos sofisticadíssimos. Como dedilhar com agilidade e compasso o teclado de um piano. E é justamente isso o que nos faz muito especiais. Hoje, os músculos humanos gastam boa parte de sua energia para sustentar cerca de 150 articulações que, embora não produzam impulso, criaram com delicadeza e requinte as bases da civilização.

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