Astrônomos identificam dois dos primeiros blocos de construção da Via Láctea
Com base na velocidade, direção e composição química de estrelas idosas, foi possível identificar dois grupos de astros, chamados Shakti e Shiva, que se acoplaram à galáxia ainda em sua infância, há 12 bilhões de anos.
O mapa de uma cidade grande é uma colcha de retalhos: alguns bairros têm quarteirões perfeitamente retangulares, outros são formados por curvas tortuosas, outros têm um padrão peculiar nos nomes das ruas (povos indígenas, nomes de pássaros, imperadores romanos… você decide).
Hoje, o tecido urbano está todo emendado. Em sua origem, porém, esses bairros foram loteados por empresas diferentes, em épocas diferentes, para públicos diferentes (isso quando houve algum loteamento, e não só o crescimento espontâneo, é claro).
Analisando as características de cada um, você pode descobrir, por exemplo, que duas vizinhanças distantes são obra da mesma construtora, porque têm ruas, casas e praças parecidas.
Os astrônomos Khyati Malhan and Hans-Walter Rix, do Instituto Max Planck, acabam de fazer algo parecido com a Via Láctea. Analisando a velocidade e a direção das estrelas que formam a nossa galáxia, eles conseguiram determinar quais delas vieram de dois antigos “bairros” da periferia galáctica, batizados de Shakti e Shiva.
Os resultados do estudo foram publicados no periódico especializado The Astrophysical Journal.
Shakti e Shiva eram fragmentos proto-galáticos, ou seja: conjuntos de estrelas bastante grandes, mas que não chegavam a ter o porte de uma galáxia espiral. Eles se fundiram ao que viria a ser a Via Láctea na infância do Universo, há cerca de 12 bilhões de anos (o Big Bang rolou há 13,8 bilhões).
Essa fusão, claro, contribuiu para que a nossa galáxia atingisse sua imensa população de estrelas, estimada atualmente em 100 bilhões.
Na ilustração acima, os pontinhos verdes e roxos indicam a posição das estrelas que pertenciam a Shakti e Shiva (o mapeamento ainda não rolou na galáxia toda. É por isso que, por ora, apenas metade do disco está colorido).
O importante é perceber a uniformidade na distribuição: bilhões de anos depois, esses astros estão imperceptivelmente misturados com os demais.
“Mas Super, existem estrelas tão antigas assim?”
Sim. As estrelas de classe M (as anãs-vermelhas, menores e mais frias que o Sol) queimam seu combustível muito devagar e podem durar centenas de bilhões de anos. As que surgiram na infância do Universo, portanto, estão por aí até hoje – e continuarão estando por muito tempo.
Por outro lado, estrelas mais pesadas que o Sol (como as gigantes das classes O e B) são irritadiças e têm vida curta: acabam com seus estoques de hidrogênio em “apenas” alguns milhões de anos.
Em um estudo desse tipo, portanto, os astrônomos precisam considerar apenas as pequenas anciãs avermelhadas, que estão por aí desde antes da existência da própria Via Láctea.
O problema: a cor e o tamanho da estrela, por si só, não dizem nada. Uma anã-vermelha pode ter nascido ontem ou ter nascido há 12 bilhões de anos. O fato de que essas pequenas têm uma expectativa de vida longa não significa que todas sejam velhinhas.
Para determinar a idade de uma estrela, o primeiro passo é descobrir qual é a porcentagem de metais em sua composição. Mas há uma pegadinha aqui: no jargão de um astrônomo, “metal” significa qualquer elemento que não é hélio ou hidrogênio (ou seja, qualquer elemento com mais de dois prótons no núcleo).
Isso inclui o setor da tabela periódica com os elementos que os químicos consideram metais, é claro, como ferro ou ouro. Mas também inclui carbono e oxigênio. Não se preocupe: você não está realmente respirando um metal, essa é só uma questão de nomenclatura.
Essa divisão é útil na astronomia porque hidrogênio e hélio foram os únicos elementos formados no Big Bang – e, portanto, eram a única matéria-prima disponível no Universo primordial. Com o tempo, todos o resto da tabela precisou ser forjada, átomo por átomo, em fenômenos cósmicos como supernovas ou colisões de estrelas de nêutrons.
Ou seja: estrelas mais jovens têm muitos metais, porque se formaram com matéria-prima de um estágio mais recente da evolução do Universo. Estrelas realmente antigas, por outro lado, são feitas basicamente de hidrogênio e hélio.
“Mas Super, como eles sabem a composição química de uma estrela sem poder coletar uma amostra dela?”
Analisando a sua luz, que é a única informação a que temos acesso de tão longe. Átomos de elementos diferentes absorvem certas cores enquanto deixam outras passarem, e isso cria uma espécie de código de barras no espectro eletromagnético, que os astrônomos aprendem a ler.
O que acontece na prática, de maneira muito simplificada, é que o astrônomo usa um prisma para decompor a luz que vem da estrela em um arco-íris, e então vê quais trechos do arco-íris estão faltando.
Hoje, graças a equipamentos como o telescópio espacial Gaia, da Agência Espacial Europeia, nós mapeamos posição e uma série de outras características de 1,5 bilhão de estrelas. Ou seja: os estudos sobre nossa vizinhança cósmica não precisam coletar uma montanha de dados do zero.
Malhan e Rix usaram dados de posição do Gaia com dados de composição química gerados por uma outra pesquisa, o Sloan Digital Sky Survey. E assim encontraram dois grupos únicos de estrelas velhas, pobres em metais. Em cada um dos grupos, as estrelas se moviam com certa velocidade, em uma certa direção.
Foram esses dados sobre o movimento que permitiram inferir que, na infância da Via Láctea, havia dois bairros ou cidadezinhas menores na periferia da galáxia. Os tais fragmentos proto-galácticos, Shakti e Shiva, que depois se chocoram com a galáxia maior e foram incorporados a ela.
É claro que essas foram colisões fortuitas, frutos da dança gravitacional do Universo jovem. Mas você também ser mais poético, e pensar nessas anãs-vermelhas como jovens que vieram ganhar a vida na cidade grande – e acabaram ficando, plenamente incorporadas, mas sem nunca perder algo de fundamental sobre suas origens.