Cabeça aberta
Nunca o cérebro esteve tão perto de desvendar a si mesmo: a ciência começa a decifrar o mistério da emoção e da consciência.
Rodrigo Cavalcante
Quem é você?
Tente responder a essa pergunta sem citar filósofos existencialistas ou dramas shakespeareanos e provavelmente lhe restará contar a história da sua vida, suas preferências, emoções, crenças, enfim, tudo aquilo que lhe faz ver o mundo de uma maneira particular. É uma espécie de filme autobiográfico que está agora mesmo em cartaz – por mais concentrado que você esteja na leitura deste artigo. São flashes do último final de semana, do sabor da sobremesa favorita, lembranças da infância mescladas com sensações de alegria, cansaço, fome. Você é capaz de sentir até o tecido da roupa que está usando agora, ou, caso esteja à vontade, a sensação de estar nu. E o mais importante: no fundo, você sabe que essas imagens e sensações são exclusivas. Ninguém, além de você, pode entrar na sua mente e assistir ao mesmo filme. Mas como essa superprodução é escrita, produzida e dirigida no seu cérebro.
Ou melhor: como um órgão com a consistência de um pudim é capaz de criar pensamentos, memória, medo, prazer e toda a complexidade que distingue o homem de outras espécies?
Se a astronomia explicou com detalhes as milhares de galáxias e a biologia mapeou nossos mais de 30 000 genes, o cérebro sempre foi uma espécie de caixa preta insondável. Como não se conhecia o interior dessa caixa, durante séculos seu estudo ficou restrito às especulações de teólogos e filósofos. Mas isso está mudando. A moderna neurologia tem revelado uma visão surpreendente do órgão mais complexo do corpo e promete deixar o século XXI conhecido como o século em que entendemos o cérebro. “Começamos a decifrar esse mistério”, diz o neurologista português António Damásio, pesquisador da Universidade de Iowa, Estados Unidos, e autor do livro O Mistério da Consciência. “Comparada com a era da corrida espacial, estamos a meio caminho de explorar esse universo chamado cérebro.”
A analogia com a astronomia não é gratuita. Há no cérebro uma constelação gigante com mais de 100 bilhões de células nervosas, os conhecidos neurônios. A conexão entre os neurônios – sinapses – controla desde as batidas do seu coração até a lembrança de um amor antigo. O número dessas conexões supera o de estrelas nas galáxias e se você resolvesse contar uma delas por segundo, apenas na região do córtex (camada externa do cérebro), precisaria de 32 milhões de anos. Enquanto nossos 100 bilhões de neurônios equivalem ao número de árvores na floresta amazônica, as sinapses seriam cada folhinha de todas essas árvores.
Isso explica por que pesando só 1,3 quilo (menos de 2,5% do peso médio de um adulto), o cérebro consome 20% do total de energia produzida no corpo – uma taxa dez vezes maior que a de outros órgãos. O combustível vem dos carboidratos dos alimentos e do oxigênio que respiramos. Por precisar de tanta energia, bastam apenas alguns minutos sem oxigênio para a temida morte cerebral – o momento em que a família tem que decidir sobre a doação dos órgãos do paciente. E mesmo que a medicina possa um dia transplantar qualquer órgão do corpo, não faria sentido receber o cérebro de outra pessoa. Ainda que isso fosse possível, seria mais correto afirmar que foi o cérebro transplantado que recebeu um novo corpo. Confuso? É que para os neurologistas, o cérebro guarda o que você é. Incluindo aí a sua personalidade.
A primeira grande prova, na medicina, de que até a personalidade pode mudar após uma mudança física no cérebro surgiu com um bizarro acidente ocorrido em 1848, no Estado de Vermont, EUA. Phineas Gage, um capataz de 25 anos que trabalhava na construção de ferrovias, foi vítima de um “acidente maravilhoso”, segundo a manchete do jornal Vermont Mercury no dia 22 de setembro daquele ano. Após uma explosão, uma barra de ferro em forma de lança entrou pelo lado esquerdo da sua face, atravessou a base do crânio e saiu como um projétil pelo topo da cabeça. Gage caiu no chão, sofreu convulsões e, logo depois, ocorreu o inesperado: recobrou a consciência e voltou a falar normalmente. Alguns meses após o acidente, os médicos e os amigos de Gage notaram que ele não era o mesmo. Segundo o relato da época, ele sofrera uma mudança abrupta no caráter.
Conhecido até então como uma pessoa amigável e trabalhadora, Gage se transformara numa pessoa insuportável, arrogante e indiferente aos outros – para alguns, ele tinha se transformado num cafajeste.
Apesar de o acidente ter ocorrido há mais de 150 anos, somente hoje os pesquisadores sabem o suficiente para afirmar que a área afetada no cérebro de Gage, o córtex pré-frontal (camada externa do cérebro logo abaixo da testa), tem um papel importante em nossa capacidade de sentir emoções. As imagens computadorizadas do crânio de Gage e a análise de pacientes que sofreram danos na mesma região mostraram que, quando essa área é afetada, os pacientes parecem incapazes de sentir emoções como antes. Com a perda dessa capacidade, tornam-se geralmente indiferentes, distantes e passam a ter dificuldades para tomar decisões em suas vidas.
Descobertas como essas vêm mudando radicalmente o estudo da mente. Até há pouco tempo, as emoções humanas eram assunto quase exclusivo do divã de um psicanalista. Cabia ao terapeuta buscar no histórico do paciente um fato que justificasse a mudança de comportamento. No caso de Gage, seria razoável prever que seu comportamento mudasse devido ao trauma psicológico sofrido. Depois de tudo que passou, ele podia ter concluído que não valia a pena ser o mesmo e mudado radicalmente seu estilo de vida. As novas pesquisas, no entanto, indicam que não foi apenas isso, reacendendo o polêmico debate sobre a relação mente e cérebro.
Encontrar no cérebro uma área responsável para cada atributo da mente sempre foi uma tarefa ingrata. No século XVIII, o médico vienense Franz Gall analisou as saliências do crânio de pessoas mortas, tentando encontrar algumas protuberâncias que pudesse associar com a descrição da personalidade dessas pessoas quando vivas. Conhecido como frenologia, esse método mapeou o crânio em 32 regiões. Uma delas, por exemplo, era responsável pela “propensão para roubar” – e se você encontrasse alguém com uma saliência grande nessa área, era melhor ficar de olho na carteira. Mas a frenologia foi para o limbo em 1861, quando o neuroanatomista e antropólogo francês Paul Broca analisou o cérebro de um paciente que tinha distúrbios na fala e acabara de morrer. A área atingida no cérebro desse paciente era completamente diferente da prevista para a fala pela frenologia.
E apesar da grande revolução na captação de imagens do cérebro no século XX, só nos últimos 20 anos os cientistas puderam ver finalmente quais áreas do cérebro estão em ação quando lemos, falamos ou estamos assustados. A técnica de Tomografia por Emissão de Posítrons mede a quantidade de energia que cada área consome em uma dessas atividades. O resultado foi o que muitos já desconfiavam: uma única tarefa requer o casamento de várias regiões, mostrando como um dano localizado pode repercutir em outra área aparentemente sem ligação com a região atingida.
Assim ficou mais fácil explicar por que a perda das emoções, por exemplo, podia ter conseqüências negativas na capacidade humana de agir racionalmente. Isso mesmo: as emoções, consideradas tradicionalmente pela ciência um entrave para a razão, são, na verdade, muito mais aliadas do que vilãs. “Imagine que você ouvisse um grunhido na floresta e não sentisse medo”, diz Dylan Evans, neurologista da Universidade de Oxford. “Esperaria racionalmente para identificar o animal e então… seria tarde”. Autor do livro Emotions – The Science of Sentiments (Emoções – A ciência dos sentimentos, ainda inédito no Brasil), Dylan diz que até a tristeza, quando não é depressão, tem um papel importante para a inteligência. “A tristeza nos obriga a repensar atitudes, mudar, evoluir”, diz. “Evitá-la a qualquer custo tomando antidepressivos como Prozac pode nos tornar frios, distantes e pessoas menos lapidadas do que poderíamos ser.”
Lembra o doutor Spock, o personagem de orelha pontiaguda da série Jornada nas Estrelas – membro de uma espécie mais inteligente por ser pura razão e zero sensibilidade? Os cientistas estão descobrindo que Spock seria, na verdade, menos inteligente que um humano médio e emotivo. “É claro que há momentos em que a emoção pode perturbar o raciocínio”, diz o neurologista António Damásio. “Mas ela agiliza nossa tomada de decisões.” Damásio diz que um de seus pacientes com danos na mesma região afetada em Gage perdia quase uma hora apenas para marcar a próxima consulta. “Sem emoções, ele tinha que enumerar lado a lado todos os argumentos a favor e contra o dia marcado”, diz. “Não conseguia sentir na pele as conseqüências de suas decisões para agir rapidamente.” Sabe aquele sentimento ruim que você já deve ter sentido na hora de decidir se vai ou não trair uma pessoa de que gosta? São as emoções lhe antecipando na pele o que pode ocorrer caso você vá em frente.
Sem o friozinho na barriga, puramente emocional, decisões como essa levariam muito mais tempo. Não é à toa que as emoções são consideradas a porta para a compreensão do maior enigma da mente: a consciência.
Aparentemente, qualquer um pode reconhecer a consciência – pelo menos quando está sóbrio e acordado. Mas você já parou para pensar como o mundo seria sem ela? Para Victor S. Johnston, professor de biopsicologia da Universidade Estadual de Novo México, o mundo não passaria de um amontoado de matéria e energia sem cores, luz, cheiro, sabor, textura. Autor do livro Why We Feel? (Por que sentimos?, inédito no Brasil) Johnston diz que nossas experiências conscientes não passam de ilusões criadas para que a espécie humana se adapte melhor ao seu meio ambiente. “O cheiro desagradável de um ovo podre não existe fora da nossa consciência”, diz o pesquisador. “Somos nós que sentimos esse cheiro para evitar que comamos algo cheio de bactérias e venhamos a morrer intoxicados.” Como tudo tem suas compensações, o prazer que experimentamos com o sexo seria o melhor lado dessa ilusão. Tudo para lembrar que você precisa cuidar para que os seus genes continuem a existir, mesmo depois da sua morte.
Assim como o prazer proporcionado pelo sexo e por sua sobremesa favorita, as emoções também não existiriam fora do cérebro. É como se o mundo não existisse – e só o que houvesse fosse nossa percepção desse mundo. “O sentimento de um belo pôr-do-sol ou de uma paixão arrebatadora só existe em nossas mentes”, diz Johnston. “Essas sensações são propriedades do cérebro humano, assim como o sistema nervoso de um urubu o programou para sentir prazer diante de um pedaço de carne podre.” Mesmo que a comparação com um urubu não seja lá das mais agradáveis, a visão das emoções como um produto do cérebro e não do mundo exterior vem ajudando os cientistas a entender mais sobre a consciência. “Enquanto a emoção é uma espécie de primeiro sinal do que está acontecendo em nosso corpo e à nossa volta, a consciência é o conjunto de emoções e de outras representações que formam o filme da mente”, diz o neurologista Henrique Del Nero, da Universidade de São Paulo.
Mas em que momento a consciência surge no cérebro? Susan Greenfield, pesquisadora da Universidade Oxford e autora de diversos livros sobre o tema , diz que tudo tem início com as conexões entre os neurônios logo após o nascimento. “É nesse momento que o mundo começa a significar alguma coisa para nós.” Daí para a frente, cada vez que escutamos um barulho, conversamos com alguém ou comemos uma torta de sabor diferente, uma imperceptível mudança ocorre no desenho dessas conexões no cérebro. “É como uma constelação que se expande e se contrai, de acordo com a quantidade de conexões que está sendo estimulada”, diz Greenfield. “Quanto mais o mundo passa a ter significado para você, mais conexões são feitas em seu cérebro.”
Apesar dos novos modelos da mente, os cientistas reconhecem que ainda falta muito para o entendimento de como essas conexões se articulam para produzir nossa capacidade de refletir sobre a própria existência. “Ainda falta um Newton na neurologia”, diz Henrique Del Nero. “Tudo o que temos são mapas provisórios que podem nos ajudar a decifrar esse universo.” Resta saber se, um dia, essa exploração poderá responder à pergunta que aflige os homens desde que o cérebro se tornou capaz de desvendar o cérebro: existe alguma forma de consciência após a nossa morte?
Até mesmo René Descartes, o filósofo francês que, no século XVI, provou que existimos pela consciência “penso, logo existo”, o cérebro era uma máquina pilotada pela alma. Descartes chegou a propor que a alma estava alojada na glândula pineal, que hoje os cientistas atribuem ao sono. “Gostaria de acreditar numa vida eterna, mas não tenho nenhuma evidência de que a consciência existe fora do corpo”, diz o neurologista António Damásio. “De qualquer forma, precisamos ser honestos para reconhecer que a neurologia não pode responder a essa pergunta hoje.” Mesmo que um dia alguém consiga “provar” que não existe nada além da morte física do cérebro, Damásio diz que a vida humana não perderá sua beleza e mistério. “O curioso é que a mesma consciência que nos faz saber que um dia morreremos, nos permite ter uma vida incrivelmente bela”, diz Damásio.
rcavalcante@abril.com.br
Para saber mais
Na livraria
O Mistério da Consciência
António Damásio, Companhia das Letras, 2000
O Erro de Descartes
António Damásio, Companhia das Letras, 2001
Como a Mente Funciona
Steven Pinker, Companhia das Letras, 1999
O Sítio da Mente
Henrique Schützer Del Nero, Collegium Cognitio, 1997
O Cérebro Humano
Susan Greeenfield, Ciência Atual Rocco, 2000
The Private Life of the Brain
Susan Greenfield, Wiley, 2000
How Brains Make Up Their Minds
Walter Freeman, Columbia University Press, 2000
Emotions: The Science of Sentiment
Dylan Evans, Oxford, 2001
Why We Feel
Victor S. Johnston, Perseus Books, 1999
A Universe of Consciousness
Gerald Edelman, Giulio Tononi, Basic Books, 2000
Uma única atividade do cérebro requer o trabalho de diversas regiões