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Como o Brasil se tornou referência na repatriação de fósseis contrabandeados

A Chapada do Araripe está repleta de fósseis do período Cretáceo, que frequentemente acabam nas mãos de traficantes gringos. A notícia boa é que os paleontólogos brasileiros – com uma mãozinha de tuiteiros, ministérios e do dinossauro Ubirajara – estão conseguindo trazer essas relíquias de volta.

Por Bela Lobato
Atualizado em 17 out 2024, 14h18 - Publicado em 17 out 2024, 14h00

Há mais ou menos 140 milhões de anos, onde hoje fica a Chapada do Araripe – um planalto de grande altitude na fronteira entre Pernambuco e Ceará –, viveu um peixe de nome científico Dastilbe crandalli. Esse não é um bichinho raro: seus fósseis aparecem às centenas nas rochas calcárias do local. O que o torna notável é que existem espécimes do dito-cujo também em sítios paleontológicos na Guiné Equatorial e no Gabão, dois países da costa oeste africana.

Essa é uma evidência da deriva continental: o processo em que nossos continentes mudam de posição ao longo das eras geológicas por causa do movimento das placas tectônicas. Originalmente, Brasil e África estavam grudados, e seus atuais litorais eram regiões interioranas que compartilhavam fauna e flora.

O Araripe é uma peça imprescindível desse quebra-cabeça. No começo do período Cretáceo, o local era uma região lacustre com condições químicas propícias à preservação de organismos mortos. Conforme dinossauros, pterossauros, insetos, plantas e fungos caíam na água, eles afundavam e acabavam soterrados no leito, essencialmente sem oxigênio – o que colaborou para essa preservação.

Com o tempo, a matéria orgânica desses organismos – compactada embaixo de milênios de sedimento – foi sendo substituída por minerais que infiltravam seus cadáveres. O resultado é uma rocha moldada no formato do ser vivo que havia ali. Um fóssil.

Fóssil de um inseto em uma pedra.
(MPPCN/Divulgação)

Os fósseis do Araripe, diga-se, são de excelente qualidade: penas, entranhas e até o conteúdo de alguns estômagos estão preservados. Você pode vê-los no Museu de Paleontologia Plácido Cidade Nuvens, na cidadezinha de Santana do Cariri.

A relevância científica da Chapada não é novidade. A primeira expedição europeia à região ocorreu no século 19. Desde então, fósseis cearenses começaram a pipocar mundo afora. Nos anos 1970, quando a exploração comercial de calcário na região ganhou força, essas peças emergiam do solo a torto e a direito – e sumiam no mesmo ritmo. Trabalhadores brasileiros repassavam fósseis por alguns trocados.

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Já havia uma lei de 1942 sobre o assunto. Em vigor até hoje, ela estabelece que todos os fósseis retirados de solo brasileiro são propriedade da União e não podem ser vendidos nem exportados. Apesar disso, museus, casas de leilão e colecionadores de todo o mundo ostentam fósseis de camadas do solo do Araripe que só começariam a ser exploradas trinta anos mais tarde.

Agora, felizmente, a história centenária do tráfico ilegal de fósseis no Nordeste caminha para um desfecho feliz. Nos últimos quatro anos, centenas de fósseis foram devolvidos ao Brasil, que hoje lidera uma luta mundial pela preservação do patrimônio cultural e científico de países em desenvolvimento. “Estamos vivendo uma mudança de paradigmas”, diz o paleontólogo Juan Cisneros, da Universidade Federal do Piauí.

SI_468_Fósseis_1
(MPPCN/Divulgação)

Luxo exótico

O ano era 2007, e colecionadores em uma casa de leilões norte-americana disputavam o crânio de um Tarbosaurus bataar, um primo do T-Rex do tamanho de um prédio de três andares que viveu há 70 milhões de anos na Mongólia.

O leilão não era ilegal, já que nos EUA, assim como em vários países europeus, a venda de fósseis é liberada. Mas era bem restrito, e os lances finais foram disputados entre Nicolas Cage e Leonardo DiCaprio.

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A história só veio à tona em 2015, quando Cage foi obrigado a devolver para o governo mongol a peça – pela qual havia pago o equivalente a R$ 2,2 milhões, em valores corrigidos pela inflação. O cabeção réptil voltou para a Mongólia, que provou que o material havia saído do país clandestinamente.

Apesar de chocante, o valor não chega nem perto do recorde para uma venda do tipo: em 2020, um comprador no Reino Unido pagou o equivalente a R$ 212 milhões em um T-Rex. Fósseis se transformaram em objetos de prestígio. Colecionadores, milionários e universidades de países desenvolvidos querem peças chamativas de espécies raras.

Para quem lucra com esse mercado, o Araripe é uma mina de ouro. “Lá, você abre uma pedra e acha um fóssil dentro. E não tem nada: estrutura zero, fiscalização zero, cada um entra e faz o que quiser. Completamente abandonado”, afirma o procurador da República Rafael Rayol, que esteve envolvido em vários dos processos de repatriação.

Além da lei de 1942, o Brasil assinou em 1977 um acordo internacional da Unesco que facilita a colaboração entre países em casos de disputas por fósseis. Também há um decreto presidencial de 1990, que, entre outras coisas, tornou obrigatória a participação de pelo menos uma instituição de pesquisa brasileira em trabalhos de campo realizados no País que envolvam coleta de materiais.

Esse decreto também proibiu que holótipos ficassem armazenados permanentemente fora do País. “Holótipo” é o nome que se dá ao primeiro fóssil descrito de uma espécie, utilizado para apresentá-la à comunidade científica em um artigo (a maioria dos fósseis encontrados é de espécies já conhecidas).

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Fóssil em uma pedra.
(MPPCN/Divulgação)

Justamente por se tratar de um mercado clandestino, nunca houve uma medida confiável do volume de fósseis retirados do Brasil. O assunto só ganhava atenção quando algo obviamente criminoso acontecia. Por exemplo: em 2013, autoridades portuárias francesas encontraram 998 fósseis brasileiros em um contêiner que supostamente transportava quartzo. Depois de dez anos de tramitação e briga judicial, os espécimes foram devolvidos ao Brasil em 2023.

Esse processo, assim como os anteriores, não gerou comoção midiática. A repercussão ficou restrita a alguns órgãos e paleontólogos engajados. Só muito recentemente o assunto furou a bolha, por causa de uma história que vale recapitular.

Em 2020, um novo artigo descreveu uma nova espécie de dinossauro, o Ubirajara jubatus. “No segundo que o artigo foi publicado, comecei a ler e a ficar superfeliz, porque era uma descoberta inacreditável. Era o primeiro dinossauro com penas do Hemisfério Sul, e era brasileiro!”, conta Aline Ghilardi, paleontóloga da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) e uma das protagonistas dessa história.

No entanto, conforme lia o artigo, Ghilardi foi ficando “progressivamente mais chateada”. Os autores eram todos estrangeiros. O fóssil, embora fosse um holótipo, estava armazenado na Alemanha – e nada no artigo indicava qualquer preocupação com o decreto da década de 1990. Para piorar, a lista de autores incluía um paleontólogo britânico chamado David Martill, que já havia se envolvido em uma polêmica com um fóssil brasileiro.

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“Eu, superfrustrada, fui para onde? Pro Twitter, reclamar. Eu fiz um fio súper do meu coração, desabafando sobre o que tinha acontecido”, conta Ghilardi. Ela criou a hashtag #UbirajaraBelongsToBR, ou “Ubirajara pertence ao Brasil”.

O desabafo despretensioso teve um impacto imediato, com milhares de compartilhamentos e comentários em poucas horas. O museu alemão que abrigava o Ubirajara – ao que tudo indica, ignorante da fama barraqueira do contingente brasileiro no Twitter –, resolveu comprar a briga. Resultado: seu perfil de Instagram foi tirado do ar por causa do volume de comentários simultâneos de brasileiros indignados. Enquanto isso, no Google, a página da instituição foi inundada de avaliações baixas em português.

Fósseis de peixes em duas pedras.
(MPPCN/Divulgação)

Mais tarde, a revista que havia publicado a pesquisa cedeu e retratou o artigo – o equivalente à “despublicá-lo”. As revistas e pesquisadores evitam ao máximo que isso aconteça; esse é um grande golpe na reputação do periódico e dos autores.

O museu que abrigava o Ubirajara, porém, permaneceu irredutível: dizia que o fóssil era legal, ainda que não houvesse nenhum documento comprobatório da exportação (para não falar no fato de que o Ubirajara, sendo um holótipo, não poderia ficar fora do País permanentemente, ainda que fosse legal).

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A revolta online deu resultado – hoje, o Ubirajara vive no Museu de Paleontologia Plácido Cidade Nuvens, após uma negociação que envolveu os Ministérios das Relações Exteriores (o Itamaraty), da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI), e Público Federal (MPF).

Não julgue um fóssil pela capa

O tráfico de fósseis é um problema por razões mais sutis do que o óbvio desrespeito à soberania nacional. Tudo começa quando os interceptadores filtram os fósseis encontrados nas minas de calcário. Como o critério é econômico, e não científico, esses traficantes acabam priorizando peças consideradas mais bonitas ou extravagantes.

“Alguns fósseis podem ser considerados feios, mas, cientificamente, têm muito mais relevância do que os bonitinhos”, explica Ghilardi. “Pode ser o único registro daquele organismo que a gente tem, e ele acaba simplesmente descartado por alguém sem o conhecimento adequado, ou que considere que não dá retorno financeiro.”

Outro problema é que, para a paleontologia, o solo e outros fósseis que estão ao redor de um fóssil maior são extremamente importantes. São eles que permitem, por exemplo, datar o exemplar. Para oferecer um fóssil mais “limpo”, os vendedores tiram essas informações valiosíssimas.

Muitos criminosos vão além e tentam embelezar os espécimes, destacando características mais chamativas. Foi o que aconteceu com um outro dinossauro brasileiro que acabou comprado por pesquisadores europeus.

Era um crânio lindo, enorme e completo. Na hora de analisá-lo, os cientistas constataram que era mesmo bom demais para ser verdade: grande parte havia sido adulterada com gesso. A equipe o batizou em homenagem ao sentimento que ficou no laboratório: Irritator challengeri, o dinossauro irritante.

Hoje, o Irritator está na Alemanha. Segundo o levantamento do Observatório de Repatriamento de Fósseis da Chapada do Araripe, do Museu Plácido Nuvens, cerca de 75% dos holótipos do Araripe estão lá. Veja no infográfico abaixo:

Infográfico dos países que mais armazenam fósseis.
(Arte/Superinteressante)

Esses dados são compartilhados com o MPF e o Itamaraty. As tratativas com os gringos geralmente são amistosas, sem a necessidade de apelar para a judicialização, que implica processos longos e incertos. O maior problema, na verdade, é identificar o que precisa ser devolvido. “Se tem cem holótipos, tem mil outros [fósseis], no mínimo”, diz Cisneros. “O holótipo é a melhor peça, mas está numa gaveta com vários outros que ainda não foram estudados.”

No final, os milhares de fósseis brasileiros que moram no exterior movimentam a economia, a cultura, o turismo, a produção científica e até as lembrancinhas de museu de países desenvolvidos. Enquanto isso, esses pedaços da história do nosso território ficam inacessíveis para nós, e o desenvolvimento socioeconômico do Araripe permanece amarrado à mineração e ao tráfico.

A situação é ainda pior quando os espécimes ficam em coleções particulares, já que elas não são mapeadas e as pessoas podem usá-los para o que quiserem. Alguns colecionadores até permitem o acesso de pesquisadores ao material – mas não existe garantia de que outros pesquisadores poderão acessar o material futuramente para reproduzir as análises, e a reprodutibilidade é uma parte importante do método científico.

Fóssil de uma planta em uma pedra.
(MPPCN/Divulgação)

Eternos colonizados

David Martill – o já mencionado paleontólogo britânico que participou das pesquisas sobre o Ubirajara, o Irritator e com outros fósseis brasileiros – não vê problema nas peças expatriadas.

Ele é autor de um artigo intitulado “Por que paleontólogos devem quebrar as leis”. O texto defende que, já que dá muito trabalho conferir quais fósseis são legais ou não, as restrições deveriam acabar. Sobre um outro fóssil que brasileiros reivindicavam, repetiu muitas vezes o argumento: “Que bom que ele não foi devolvido ao Museu Histórico Nacional do Rio de Janeiro, onde agora seria uma pilha de cinzas”.

Em outra ocasião, procurado pelo jornal Folha de S.Paulo, declarou: “O Reino Unido é muito bom em recusar este tipo de pedidos [de repatriação]. A atitude colonial ainda é muito poderosa aqui. Nós ainda somos um império”.

Moral da história: até quem se opõe às repatriações concorda que o tráfico de fósseis é só uma versão contemporânea do tipo de exploração que metrópoles como Portugal praticaram com colônias como o Brasil ao longo de séculos. “Em paleontologia, não se conversava sobre isso [colonialismo]. O Ubirajara foi uma chance de falar de uma série de problemas envolvendo o nosso patrimônio paleontológico”, diz Cisneros.

O argumento de que os países de origem não têm direito aos fósseis porque não têm condições de cuidar deles é rasteiro: se países em desenvolvimento não têm museus tão bem equipados, é porque não tiveram tantas oportunidades de desenvolvimento científico e tecnológico quando eram colônias.

Hermínio Araújo, presidente da Sociedade Brasileira de Paleontologia, afirma que o Brasil ocupa uma posição de liderança internacional no tema, e que vários países latinos e africanos se inspiram nas nossas reivindicações. Mesmo assim, o assunto ainda gera receio: “Alguns pesquisadores alegam que a nossa luta pela descolonização na paleontologia vai acabar fazendo com que os pesquisadores estrangeiros não queiram mais dialogar conosco”.

Mas, para ele – e para outros cientistas e órgãos ouvidos pela Super –, é justamente o contrário: as reivindicações favorecem a colaboração. Um bom exemplo rolou em 2021. Depois da repercussão sobre o caso Ubirajara, uma equipe dos EUA devolveu voluntariamente uma caixa com 36 fósseis de aranhas brasileiras ao Araripe. Verdadeiros fãs do Brasil, eles até nomearam uma das espécies em homenagem à cantora Pabllo Vittar, a Cretapalpus vittari.

Devoluções amistosas como essa ocorrem sem envolver nenhum órgão judicial e diplomático, apenas as universidades. Elas devem se tornar cada vez mais comuns, já que as revistas científicas passaram a fazer novas exigências éticas para o uso de fósseis estrangeiros. As pesquisas precisam rolar em parceria com uma instituição do local de origem, e eles devem retornar para casa depois.

“O Ubirajara foi, de fato, uma revolução e abriu portas para uma forma mais madura de a gente discutir restituições. Sem a gente precisar xingar muito no Twitter”, diz Ghilardi, rindo. Vários órgãos governamentais estão envolvidos nos processos em andamento para o retorno de fósseis.

Esqueleto de um dinossauro.
(MPPCN/Divulgação)

Também é importante, claro, aumentar a fiscalização para estancar o fluxo de saída deles. Além das polícias ambientais, o principal responsável por isso é a Agência Nacional de Mineração – que, segundo ela mesma afirmou em nota, conta com um quadro minúsculo para a tarefa: são três profissionais para o País inteiro.

Em nota, o embaixador do Itamaraty Marco Antonio Nakata afirmou que “o governo federal está trabalhando na criação de um comitê interministerial para tratar desses processos de forma mais organizada e padronizada, com base na Convenção da Unesco de 1970 e no excelente relacionamento bilateral que mantemos com todos os países que detêm essas peças”.

O procurador Rayol, por exemplo, foi pessoalmente representar o MPF em uma reunião da Agência da União Europeia para a Cooperação Judiciária Penal para explicar as peculiaridades da legislação brasileira. “A partir daí tivemos uma melhora significativa, conseguimos várias decisões judiciais favoráveis”, ele conta.

O cenário é de otimismo entre todos os ouvidos pela reportagem. “Coisas que ninguém acreditava estão acontecendo”, diz Pinheiro. Desde os cientistas, passando pelos milhares de internautas engajados e pelos servidores públicos, o que dá para ver é que os fósseis brasileiros pertencem mesmo à União. Com ou sem letra maiúscula.

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