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Duro de matar: conheça o tardígrado, o animal “indestrutível”

Esqueça as baratas. Esse microscópico primo dos artrópodes resiste a altas doses de radiação, temperaturas extremas, seca total e até ao vácuo do espaço. Veja o que podemos aprender com as estratégias de sobrevivência desse bicho.

Por Bruno Carbinatto
Atualizado em 19 set 2024, 11h39 - Publicado em 19 set 2024, 10h00

Em abril de 2019, a nave não tripulada Beresheet tentava pousar na Lua quando uma falha crítica em seu motor ocorreu. O pequeno aterrissador se espatifou no solo do satélite a mais de 3 mil km/h. Terminava em fracasso, então, a primeira missão lunar de Israel – e US$ 100 milhões viraram pó.

O episódio voltou às manchetes alguns meses depois, porém, quando a empresa responsável pela tentativa de pouso revelou que o acidente pode ter deixado mais do que destroços de metal na superfície da nossa vizinha cósmica. A queda pode ter contaminado a Lua com vida.

É que a nave carregava milhares de tardígrados, seres microscópicos, gorduchos e de oito patas, com uma aparência digna de monstros de ficção científica. Apesar de minúsculos, esses bichos não são micróbios de uma célula só como bactérias ou protozoários, mas animais multicelulares como você.

Bem, não exatamente como você. Tardígrados são, de longe, os animais mais resistentes da Terra – deixam as baratas no chinelo. Eles podem sobreviver a temperaturas extremas, pressões muito altas ou muito baixas, falta de alimento, seca severa, doses de radiação mil vezes maiores do que a letal para humanos, pouco oxigênio e até o vácuo total. (Alguns tipos de tardígrado apresentam apenas uma ou duas dessas habilidades; outros exibem o leque quase completo.)

Se, em abril de 2019, alguns desses bichinhos sobreviveram ao impacto – o que é difícil, mas não impossível –, então os tardígrados se tornaram a décima espécie levada pelos humanos à Lua. E, talvez, a primeira que passou a habitar a superfície do astro, sem nenhum equipamento de proteção.

Tudo indica que os tardígrados aguentariam o tranco das condições hostis da Lua – onde as temperaturas variam entre -170º C  e 120º C e não há atmosfera ou campo magnético para proteger da radiação solar –, ainda que não consigam se reproduzir nessas condições e colonizar o astro.

Não é um palpite vazio. Em 2007, num experimento que se tornou icônico, cientistas europeus levaram 120 tardígrados para dar uma volta na órbita da Terra por dez dias. Quando voltaram para cá, grande parte deles havia sobrevivido ao vácuo do espaço sideral e às doses letais de radiação solar – os únicos animais com essa proeza no currículo.

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Ilustração colorida de um tardígrado. Seres microscópicos e rechonchudos, primos dos artrópodes, capazes de sobreviver no vácuo do espaço sideral.
(Tayrine Cruz/Superinteressante)

A Lua e o espaço somam-se à longa lista de lugares em que tardígrados conseguem sobreviver. Eles já foram encontrados em ambientes tão diversos quanto florestas tropicais e o frio da Antártida, o fundo do oceano e o topo de montanhas, em fontes termais extremamente quentes e provavelmente na pracinha do seu bairro ou no seu jardim, qualquer que seja o continente onde você more.

Apesar de estarem por toda parte, esses simpáticos bichinhos ainda são relativamente pouco estudados pela ciência. E isso nos leva à questão: podemos aprender a (sobre)viver melhor com eles?

Não são ETs

Tardígrados só foram descobertos em 1773, quando o zoólogo alemão J.A.E. Goeze encontrou um por acaso quando analisava uma amostra de água. Surpreso ao encontrar aquele bicho esquisito, o cientista o chamou de “pequeno urso d’água”, porque seu lento caminhar lembrava o do mamífero. O apelido é usado até hoje.

Três anos depois, o biólogo italiano Lazzaro Spallanzani batizou esses animais de tardígrados – algo como “passos lentos”, no latim. Desde então, mais de 1.400 espécies foram descobertas. Trata-se de um filo inteiro de ursinhos, um grupo complexo e bastante diverso, subdividido em várias classes, famílias e gêneros.

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Algumas características são comuns a todos os ursos d’água. Tardígrados têm corpos rechonchudos e segmentados, quatro pares de patas que geralmente terminam em garras e uma boca característica onde seria seu “rosto”. Também são revestidos por um exoesqueleto e periodicamente passam por um processo de ecdise – a troca dessa cutícula, que acontece também em cigarras ou outros insetos.

É que os tardígrados são primos distantes dos artrópodes, o grupo que também inclui aracnídeos e crustáceos. Reconstruir a árvore genealógica desses bichos, porém, é um desafio: só há quatro fósseis conhecidos, todos preservados em âmbar.

Estima-se que o grupo surgiu nos oceanos no período Cambriano, mais de 250 milhões de anos antes dos dinossauros. Desde então, esses durões microscópicos conseguiram passar ilesos por cinco eventos de extinção em massa.

A maioria dos tardígrados têm em torno de 0,5 milímetros, mas alguns são bem menores que isso. Os maiores passam de um milímetro, o que faz deles, teoricamente, visíveis a olho nu – se a luz colaborar, porque a maior parte é quase transparente.

Algumas espécies são sexuadas. Em outras, porém, há apenas partenogênese – processo em que a mãe dá à luz a uma filha, geneticamente idêntica a ela, sem a necessidade de fecundação. Nestes casos, todos os espécimes são clones do sexo feminino. O verdadeiro matriarcado.

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Também há diferenças na dieta. Enquanto muitos são herbívoros, há tardígrados carnívoros, que se alimentam de outros animais microscópicos, como os rotíferos e nemátodos, ou de micróbios como protozoários e bactérias. Alguns até se alimentam de outros tardígrados de espécies menores.

Todos os tardígrados são essencialmente aquáticos, vivendo ou no mar ou adaptados para a água doce. Alguns são encontrados em terra firme, mas só em ambientes úmidos que acumulam água – são os chamados limnoterrestres. É comum que habitem, por exemplo, pequenas porções de água nos musgos e líquens que revestem árvores ou pedras.

O fato de que precisam de água para existir parece contradizer a faceta de “animal indestrutível” que os tardígrados carregam. Mas não é bem assim. Apesar de às vezes serem chamados de extremófilos, os ursos d’água não são exatamente fãs de habitar ambientes hostis.

“Eles gostam mesmo é da sombra e água fresca”, brinca Emiliana Guidetti, mestranda em Biologia Animal da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Em abril deste ano, Guidetti descreveu uma nova espécie de tardígrado brasileiro encontrado por acaso nas árvores do campus da universidade, em Campinas.

É que, para fazer o que chamamos de “viver” – andar, comer, se reproduzir e tudo mais –, tardígrados precisam necessariamente de água e condições amigáveis no ambiente, assim como outros animais normais. Acontece que, caso o local passe por uma mudança e se torne mais hostil, esses bichos conseguem tolerar essa transformação como ninguém, até que tudo volte ao normal.

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“Eles existirem em ambientes extremos é algo secundário à sua capacidade sobreviver a mudanças ambientais muito drásticas”, resume André Garraffoni, professor do Departamento de Biologia Animal da Unicamp.

Infográfico colorido da anatomia de um tardígrado. Seres microscópicos e rechonchudos, primos dos artrópodes, capazes de sobreviver no vácuo do espaço sideral.
(Tayrine Cruz/Superinteressante)

Duro de matar

A mais famosa entre as estratégias de sobrevivência dos tardígrados é a chamada criptobiose. Em caso de seca, eles perdem quase toda a água do corpo, retraem seus membros, diminuem para um terço do seu tamanho original e entram num formato que cientistas chamam de “barril” (que, na verdade, é mais parecido com uma almofada amassada).

Mais importante que isso, porém, é que os tardígrados reduzem seu metabolismo – o conjunto de reações químicas que ocorrem dentro de um organismo – para 0,01% do normal.

Na prática, mal dá para chamar de vida. Nessa “hibernação”, os tardígrados não comem, não respiram, não se reproduzem, sequer envelhecem. Mas também não dá para chamar de morte. Quando a água volta a envolver o barril, a criptobiose cessa – o indivíduo se hidrata e volta a viver normalmente, como se nada tivesse acontecido.

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É na criptobiose que o tardígrado realmente ganha sua indestrutibilidade. Quando falamos que ele resiste a pressão, temperaturas extremas e o vácuo do espaço sideral, estamos falando de espécimes em barril, com metabolismo zerado e corpo em formato de bolinha, e não nos simpáticos seres que podemos observar andando no microscópio.

Não se sabe quanto tempo os tardígrados conseguem ficar no modo Bela Adormecida e ainda retornar à rotina animal. Em episódios de criptobiose induzida em laboratório por curto e médio prazo (alguns dias), as taxas de “ressuscitação” são altíssimas, passando dos 90%. Em 2016, cientistas reviveram um tardígrado que estava adormecido havia 30 anos no gelo da Antártida, e o bicho voltou a se reproduzir.

A criptobiose por falta de água é apenas um tipo de sono profundo. Ela é chamada de anidrobiose e é a versão mais comum e mais estudada, mas não é a única. Cientistas já identificaram outros quatro tipos de criptobioses realizadas por tardígrados, cada uma em resposta a um estresse ambiental diferente.

A criobiose, por exemplo, ocorre quando os tardígrados são expostos a temperaturas congelantes. Esses bichos conseguem viver meses a -200 ºC, e até por algumas horas a -270º C, temperatura muito próxima do chamado zero absoluto (-273,15 ºC).

Na anoxibiose, o gatilho é a redução do oxigênio na água do bicho. A osmobiose se refere a mudanças na salinidade (concentração de sais) no ambiente, que pode causar morte por osmose. Por fim, a quimiobiose é a presença de substâncias tóxicas. Todas essas são menos estudadas que a anidrobiose, e muitos detalhes de como ocorrem ainda são desconhecidos pela ciência.

Embora também possam envolver mudanças na forma corporal e redução metabólica, sabemos que essas outras abordagens são diferentes da resposta à falta de água – ou seja, os tardígrados contam com um verdadeiro arsenal de táticas para sobreviver, cada uma para um cenário diferente. Outros animais, como rotíferos e alguns artrópodes, até conseguem fazer criptobiose em certas condições, mas nenhum apresenta cinco tipos como os ursos d’água.

Ilustração colorida de tardígrados. Seres microscópicos e rechonchudos, primos dos artrópodes, capazes de sobreviver no vácuo do espaço sideral.
(Tayrine Cruz/Superinteressante)

Isso não significa, claro, que nada mate esses bichos. Lembra dos tardígrados na Lua? Eles estavam em criptobiose dentro da nave israelense – e, por isso, talvez sobrevivessem às condições hostis do astro por um tempo. Mas um estudo de 2021 calculou que, apesar de durões, esses bichos provavelmente sucumbiram ao impacto mecânico da queda. Dificilmente algum tardígrado escapou de ser esmagado no acidente.

Ainda que houvesse sobreviventes, porém, eles nunca chegariam a colonizar a Lua de fato. Afinal, estão em hibernação profunda, sem conseguir fazer nada até que haja água e um habitat amigável. Seria questão de tempo até os bichos em criptobiose morrerem.

Copia e cola

Acha que acabou? Nem de longe. A criptobiose não é a única carta na pata desses bichos. Mesmo no estado ativo, tardígrados apresentam algumas características únicas. É o caso da resistência à radiação.

Um dos problemas da radiação em seres vivos é que ela causa mutações no DNA. Mas os ursos d’água parecem aguentar doses anormais de ondas eletromagnéticas em comprimentos perigosos, mesmo quando não estão adormecidos.

Em 2016, pesquisadores japoneses descobriram em uma espécie de tardígrado uma proteína chamada Dsup, que parece se ligar ao DNA do bicho e protegê-lo até de raios gama, os mais heavy metal que existem. Quando expressaram a mesma proteína em células humanas em laboratório, esse “escudo” fez com que elas resistissem a maiores doses de raios X do que as células de controle, que não possuíam a Dsup.

Mas essa não parece ser a única defesa contra a radiação dos tardígrados, nem mesmo a principal. Cientistas acreditam, e estudos recentes apontam para isso, que os rechonchudos dispõem de algum tipo de mecanismo de reparo de DNA turbinado, capaz de reconstruir a sequência de letrinhas tão rápido quanto a radiação a quebra.

Humanos também contam com algo do tipo – que atua todos os dias para corrigir milhares de falhas em nossas células. Às vezes, algum desses erros pode passar batido e resultar num tumor maligno, por exemplo. Acontece que, por razões ainda não muito compreendidas, isso é muito mais eficiente nos tardígrados.

Desvendar esse mistério é importante porque entender como esses bichos se tornaram profissionais em consertar DNA pode abrir portas para aplicações práticas – não só no tratamento e prevenção do câncer mas também para outras áreas da medicina.

Por sua aparente indestrutibilidade, tardígrados são objetos de estudo valiosos para tentarmos aplicar, em nós, seus segredos de sobrevivência. Imagine, por exemplo, conseguir colocar órgãos e tecidos inteiros num estado “dormente”, preservando-o por meses numa criptobiose artificial, e trazendo-os de volta à vida com um pouco de água. Essa seria uma bela ajuda na fila dos transplantes.

Parece um sonho distante – e é. Mas há outras áreas em que as pesquisas estão mais avançadas. Por exemplo: pesquisadores estão se inspirando nos tardígrados para melhorar a logística de distribuição de vacinas, bolsas de sangue e outros itens perecíveis importantes para a saúde pública.

Essas substâncias precisam de refrigeração durante todas as etapas de transporte e armazenamento – é o caso das vacinas contra a Covid-19, por exemplo –, e isso dificulta sua distribuição especialmente em lugares pobres, sem acesso a uma cadeia fria. Os tardígrados estão à frente nesse aspecto: já evoluíram estratégias para proteger suas proteínas durante os estados de criptobiose, que poderiam ser copiadas.

Ilustração colorida de um tardígrado sendo analisado num microscópio.
(Tayrine Cruz/Superinteressante)

Há duas substâncias específicas de tardígrados que podem servir para estabilizar proteínas presentes em vacinas e medicamentos sem a necessidade de refrigeração. Uma é trealose, um carboidrato que preenche o bichinho no lugar da água e protege suas proteínas durante a fase de barril. Outra é um gel formado por proteínas exclusivas desse filo, conhecidas coletivamente pelo acrônimo CAHS. Adicionar esses dois ingredientes a produtos biológicos é uma tentativa de usar a blindagem dos ursinhos a nosso favor.

Esses simpáticos bichos também são muito importantes no campo de pesquisa conhecido como astrobiologia, que investiga como seriam formas de vida em outros astros (os tardígrados israelenses não foram enviados ao espaço à toa). Caso haja algo vivo esperando para ser encontrado na nossa vizinhança cósmica imediata – e considerando que as condições fora da Terra, em geral, são nada amigáveis à vida como a conhecemos –, esse ser vivo deve ser tão parrudo quanto os tardígrados, e entendê-los nos ajuda a saber o que procurar.

Independentemente dos possíveis usos práticos, porém, tardígrados têm uma grande importância por si só. Na ecologia, por exemplo, são considerados animais pioneiros – justamente por sua resistência alta, conseguem chegar em ambientes antes inóspitos e começam a colonizar o local. Com isso, atraem outros seres para lá também, e, aos poucos, vão tornando o ambiente mais amigável para a vida.

Esses bichos também são considerados valiosas espécies bioindicadoras, ou seja, revelam a qualidade do ambiente em que vivem e como ela varia. “Se você coleta amostras num lago e não há nenhum tardígrado ou nenhum outro animal microscópico, algo está errado. A água deve estar muito poluída”, diz Guidetti. Pois é: se nem o animal mais resistente do mundo aguenta, a coisa tá feia.

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