Lia Diskin
A meditação traz benefícios ao corpo e à mente, mas, para chegar à transcendência, não basta concentração, é preciso ter ética, diz a fundadora da Palas Athena
Gercílio Cavalcante de Assis
As palavras de Lia Diskin, especialista em técnicas de meditação, podem soar como heresia aos carolas de espírito curto. Para ela, rezar para Deus ou meditar são caminhos diferentes para atingir o mesmo fim: o encontro consigo mesmo. Mas, diz ela, para atingir o nirvana (o encontro com Deus, a revelação ou qualquer nome que se queira dar ao evento) é preciso adquirir uma postura ética aprofundada, um respeito por todas as pessoas. Além, é claro, de um envolvimento com a oração. “A pessoa não pode estar rezando e prestando atenção em quem entra ou sai da igreja.”
Nascida na Argentina, Lia formou-se em jornalismo e especializou-se em filosofia budista na Índia, tendo o dalai-lama como um de seus professores. Hoje, aos 50 anos, Lia vive no Brasil e dedica-se a assuntos essencialmente humanitários. É co-fundadora da Associação Palas Athena, um centro de estudos filosóficos sem fins lucrativos, dedicado à educação e à assistência social. Participa ainda do Fundo Mundial para a Natureza (World Wildlife Fund) e coordena o Comitê Paulista da Década da Cultura de Paz, um programa da Unesco.
Super – Quais os benefícios da prática da meditação para a saúde, a inteligência e o equilíbrio psíquico?
A meditação reduz a ansiedade, torna a respiração equilibrada e profunda e melhora a oxigenação e a freqüência cardíaca. Seu reflexo no sono é um repouso mais tranqüilo, sem interrupções. Além disso, ela atenua enxaquecas e resfriados, acelera a recuperação no pós-operatório e auxilia a digestão alimentar. No campo psíquico, a prática mantém a pessoa num relativo estado de equilíbrio, com uma lucidez que a impede de entrar em conflitos emocionais internos, principalmente de origem afetiva. Há, por parte de quem a pratica, muito mais clareza mental, objetividade, paciência, compreensão e justiça.
A preocupação com a saúde seria o principal objetivo de quem procura a meditação?
Em grande parte, sim. Mas o que se observa no Ocidente é que as pessoas estão buscando uma conexão maior consigo mesmas. A psicanálise não se mostrou suficiente para atingir esse propósito. Foi um passo extraordinário, sem dúvida, mas não suficiente.
Qual é a relação entre atenção, concentração e meditação?
A meditação, para ser realizada, precisa da atenção e da concentração. Mas a meditação vai além, pois exige certas escolhas prévias: uma postura ética frente ao mundo e um compromisso com uma instância superior a nós mesmos, que pode ser chamada de Deus ou outros nomes. Eu não posso ter uma atitude predatória em relação ao outro. Não posso utilizar a minha vida como uma fonte de sucesso unicamente para mim, a qualquer custo. Se eu não reconheço o semelhante, não posso ser um bom praticante da meditação, porque esse praticante está inserido num universo e o que acontece a esse universo está acontecendo a ele.
Existe uma freqüência ideal para meditar?
A maioria dos grandes meditadores aconselha a prática diária, ainda que por alguns minutos. Dez minutos pela manhã e dez à tarde já são um bom começo. À medida que vamos nos familiarizando com a prática, esse tempo vai aumentando. O importante é manter a periodicidade, até que ela faça parte da nossa vida.
Quais os maiores obstáculos ao aumento da prática no Ocidente?
Segundo os textos clássicos, os maiores obstáculos são a agitação, a dispersão e a superficialidade. No Ocidente, eu me atreveria a acrescentar a preguiça. Numa sociedade que preconiza o resultado imediato, se não se verificam efeitos rapidamente, a preguiça começa a tomar conta.
Os ritos espirituais do Ocidente não tornam a tradição religiosa monótona?
A celebração não é perniciosa nem comprometedora. Um fenômeno extraordinário é a celebração que acontece todos os domingos no Mosteiro de São Bento. Há 20 anos, havia 40, 50 pessoas assistindo. Hoje, num domingo, não se consegue entrar e é o mesmíssimo ritual: o canto gregoriano em latim, o estado de profunda compenetração com cada movimento. O problema não está no rito, mas na maneira como a pessoa está engajada nele ou no comprometimento do participante com a tradição religiosa. Sem isso, o rito se torna totalmente mecânico e automático. O mesmo pode ocorrer na meditação. Se o praticante não estiver atento, ele pode automatizar a prática. A mente, aparentemente, está no ato de meditar: ela percebe as respirações ou visualiza uma imagem, mas, internamente, não há uma entrega. E só o praticante sabe se houve uma inteireza de si mesmo com a prática ou só um estado medíocre. Dá para dizer que 80% das práticas são medíocres. Há ocasiões em que você termina a prática sabendo o que aconteceu, sentindo o regozijo dessa experiência. Por outro lado, há ocasiões em que você cumpriu sua meditação, mas não foi além. Atingir aquilo que se denomina ápice ou cume – se é que dá para assim chamar o estado satori nas práticas budistas, na tradição zen, ou o samadhi, nas tradições hinduístas – não acontece à vontade: eu vou sentar e vou ter um samadhi. Isso não tem nenhuma consistência.
A oração é um tipo de meditação?
Se a mente está em sintonia com as palavras, sem dúvida. Agora, se por um lado há verbalização e por outro os olhos miram quem entrou na igreja ou saiu dela, não é meditação coisíssima nenhuma.
Quem não medita imagina que, com a meditação, vai ver algo…
Na prática de visualização, sim. Mas nem toda meditação tem como fim uma visualização. Nos exercícios espirituais de Santo Inácio de Loyola, por exemplo, há um repertório de prática de visualização do Cristo a seu lado. Mas uma coisa é visualizar, outra é imaginar. Na imaginação você está se forçando a ver algo que não está vendo e você não consegue dar consistência à imagem interna. Você pode começar imaginando e, de tanto praticar, terá a visão concreta. No entanto, há técnicas meditativas que não têm por fim a visão, mas a devoção, gerar um estado de compaixão e de amorosidade internos. Outras têm por objetivo deter o fluxo dos pensamentos. Os pensamentos ocorrem, mas não há ninguém registrando esses pensamentos.
O conceito de meditação, então, não é único?
Não. A meditação é um recurso de introspecção, de experiência interna. A experiência atual, de um mundo em permanente contato intercultural, pode gerar um novo repertório de práticas. As práticas não são petrificadas: “São essas e não haverá nenhuma mais”. Não. O processo de espiritualidade acompanha a humanidade e, sem dúvida, terá contornos que hoje não imaginamos.
Nas práticas de meditação é comum a adoção de uma dieta vegetariana. Que relação há entre alimento e meditação?
A disciplina alimentar está muito mais centrada numa atitude interna de desapego ao paladar e satisfação com o necessário, do que no bem-estar físico. Comemos para viver, não o contrário. Mas cada indivíduo tem um metabolismo diferente. Em regiões de baixas temperaturas, é preciso ingerir gordura animal para se proteger do frio. Os beneditinos comem carne e nem por isso têm menos espiritualidade que um vedantino, que é vegetariano. Hitler era vegetariano e não permitia anestesia quando tratava os dentes. Era extremamente disciplinado, mas isso não o impediu de fazer as brutalidades que fez. Não é a coisa externa, o cumprimento de uma regra, que determina a qualidade de um praticante – é a sua atitude interna.
Frase
Os maiores obstáculos à meditação são a agitação, a dispersão e a superficialidade. No Ocidente, eu me atreveria a acrescentar a preguiça