Magnetorrecepção: o sexto sentido
Pássaros, vacas, tubarões e até bactérias conseguem sentir o campo magnético da Terra, que usam para se orientar. E uma experiência intrigante sugere que o cérebro humano também pode ser capaz de detectá-lo de forma inconsciente.
CCher Ami já era o terceiro pombo-correio solto pelo major americano Charles White Whittlesey naquele 3 de outubro de 1918. Um grupo de 550 homens havia sido cercado na comuna de Montfaucon-d’Argonne, no nordeste da França. 194 haviam sobrevivido, mas estavam cercados por alemães e precisavam de resgate.
White estava usando os pombos para pedir socorro. O primeiro, que levava a mensagem “estamos feridos. não conseguimos escapar” num papelzinho preso à pata, foi abatido pelos inimigos. O segundo (“estamos sofrendo. podem enviar ajuda?”) também. Os alemães sabiam do que se tratava. E também acertaram Cher Ami assim que ele começou a voar. Mas não conseguiram derrubá-lo.
A bala acertou a pata direita e raspou o peito do pombo, que continuou voando por 25 minutos até chegar à base militar mais próxima, a 40 km dali, onde entregou a mensagem – que acabou por salvar os 194 homens. A pata do bicho teve de ser substituída por uma prótese de madeira. Cher Ami foi levado para os Estados Unidos, onde recebeu uma medalha por ter entregue essa e outras 11 mensagens durante a Primeira Guerra Mundial. Morreu em junho de 1919.
Desde o Egito Antigo, 3 mil anos antes de Cristo, os pombos são usados como mensageiros. Eles têm essa utilidade porque sempre sabem voltar para casa: basta criá-los em um local específico e essas aves saberão voltar até lá, partindo de qualquer ponto. O general romano Júlio César usou pombos-correio em seus esforços militares contra os gauleses. Eles também levaram mensagens na Pérsia, na Grécia Antiga, no mercado financeiro – em 1860, o inglês Paul Reuter, fundador da agência de notícias Reuters, usou pombos-correio para enviar cotações de ações entre Bruxelas, na Bélgica, e Aachen, na Alemanha. Temos uma longa história com esses bichos. Mas só recentemente começamos a entender por que eles conseguem se orientar tão bem: usando o campo magnético do planeta como GPS.
O miolo da Terra é sólido. Mas logo em volta dele há outra camada, o chamado núcleo externo, que é composto por ferro e níquel líquidos, derretidos. Uma parte do calor que eles emitem escapa para a camada seguinte, o manto, e isso faz com que o ferro e o níquel se movam.
Como eles são metais magnéticos, esse movimento e a interação entre eles gera um campo que envolve todo o planeta – na superfície terrestre, ele fica entre 30 e 60 microtesla, ou seja, é 100 vezes mais fraco do que um ímã de geladeira. E, mesmo assim, os pombos são capazes de senti-lo. Essa possibilidade chamou a atenção de ninguém menos do que Albert Einstein, que em 1949 mencionou (1) em uma carta a existência de “algum processo físico ainda desconhecido” no comportamento dos pombos-correio.
A tese foi comprovada na década de 1970, quando cientistas da Universidade Cornell prenderam um pequeno ímã no pescoço de pombos-correio (2). Ele era dez vezes mais fraco do que um de geladeira, mas foi o suficiente para desorientar completamente os bichos, que não conseguiam voar para o local correto (um segundo grupo de pombos, em cujos pescoços os cientistas colaram um pedacinho de material não magnético, se orientou perfeitamente).
Outros animais também detectam o geomagnetismo. Cientistas da Universidade de Duisburg-Essen, na Alemanha, usaram imagens do Google Earth para provar um fenômeno curioso: vacas e cervos se alinham a ele enquanto comem (3). Eles sempre mantêm o corpo longitudinal ao eixo magnético Norte-Sul (sejam quais forem o vento, o sol e a temperatura, descartando a possível influência desses elementos).
Também há estudos mostrando que aves migratórias, tartarugas, tubarões, toupeiras e até abelhas se orientam pelo magnetismo do planeta. A ciência ainda não sabe exatamente como os animais fazem isso, mas já tem algumas pistas (mais sobre elas daqui a pouco). E o mais intrigante é que, como provou uma experiência recente, nós também podemos detectar o campo magnético da Terra.
TTalvez você se lembre da relação, que aprendeu nas aulas de física do colégio, entre sinais elétricos e campos magnéticos. É simples: a passagem de corrente elétrica por um condutor produz um campo magnético em torno dele. Isso também funciona ao contrário (a oscilação de um campo magnético gera corrente elétrica) e vale para qualquer condutor, dos fios que carregam eletricidade pelos postes até os neurônios que trocam sinais dentro da sua cabeça.
Por isso, o cérebro humano é naturalmente suscetível ao magnetismo. Se você gerar um campo magnético artificial em volta da cabeça de uma pessoa, usando ímãs, conseguirá interferir com a atividade elétrica entre os neurônios dela. Trata-se da estimulação magnética transcraniana, uma técnica que já é usada como tratamento para depressão no Reino Unido e nos EUA. Ela usa ímãs relativamente fortes, que precisam ficar quase encostados na cabeça do paciente.
Mas nossa sensibilidade a campos magnéticos talvez possa ir muito além disso – e funcionar como uma bússola interna, sem que percebamos, o tempo todo. A partir dos anos 1980, surgiram vários estudos sugerindo que o magnetismo pode ter algum efeito sobre o senso de orientação humano, mas eles nunca conseguiram provar nada. Isso só aconteceu em 2019, quando cientistas do Instituto de Tecnologia da Califórnia (Caltech) publicaram o primeiro trabalho demonstrando que seres humanos também podem detectar campos magnéticos fraquíssimos, como o emitido pela Terra.
Nessa experiência, 36 voluntários foram colocados, um de cada vez, numa cabine especial, totalmente isolada do geomagnetismo e de sinais eletromagnéticos (como os emitidos por celulares, antenas transmissoras de TV e outros aparelhos eletrônicos). Os cientistas tomaram precauções extremas para evitar qualquer tipo de interferência: todos os equipamentos de medição ficavam do lado de fora da cabine, conectados ao voluntário por cabos blindados, e a cadeira em que ele se sentava era de madeira, e presa ao chão com pregos e parafusos não magnéticos. O resultado foi que, dentro da cabine, realmente não havia campo magnético nenhum. Zero.
Nas paredes dela havia três conjuntos de bobinas: redes de fios que conduzem eletricidade. Com eles, os cientistas conseguiam reproduzir artificialmente o campo magnético da Terra – e também, eis aqui o ponto importante da experiência (4), rotacioná-lo. Enquanto eles faziam isso, as ondas cerebrais do voluntário eram monitoradas por 64 eletrodos de eletroencefalograma (EEG) colados na cabeça dele. Para evitar que a visão e a audição do voluntário também gerassem sinais cerebrais, o que poderia distorcer os resultados da experiência, a cabine era completamente escura e silenciosa. A ideia era que o cérebro não recebesse nenhum estímulo a não ser o magnetismo.
Ao longo de aproximadamente uma hora, dividida em sessões de 7 minutos, os cientistas produziam e rotacionavam campos magnéticos bem fracos dentro da cabine [veja infográfico abaixo]. Essa rotação reproduz o que acontece naturalmente quando andamos ou mudamos a posição do nosso corpo em relação ao campo geomagnético. Não sentimos nada diferente ao fazer isso, e com os voluntários foi a mesma coisa. Eles não perceberam nada de anormal (exceto o tédio de ficar uma hora no escuro).
Mas suas ondas cerebrais contavam outra história. Quando o campo magnético era girado, o eletroencefalograma mostrava uma alteração. “Nós descobrimos que rotações dos campos magnéticos da Terra podem enfraquecer, por alguns poucos segundos, as ondas cerebrais alfa”, diz o biofísico Joseph Kirschvink, autor do estudo.
As ondas alfa oscilam na frequência de 8 a 13 Hertz (vezes por segundo), e são um dos cinco tipos de onda elétrica produzida no cérebro (as outras são a delta, a theta, a beta e a gama, que juntas cobrem o espectro entre 1 e 150 Hertz). Sua função não é bem compreendida, mas elas normalmente se manifestam em duas situações: quando a pessoa está acordada e calma, com os olhos fechados, ou quando está sonhando. Elas também podem ser induzidas pela meditação.
A rotação no campo magnético interrompia esse estado. O que isso significa, ninguém sabe. Talvez o cérebro, enganado pelo magnetismo artificial, estivesse detectando movimento do corpo e entrando em estado de alerta, interrompendo as ondas alfa – mas logo depois, como não recebia a confirmação de nosso principal sensor de movimento, o sistema vestibular do ouvido interno, ele saía desse alerta.
Um detalhe interessante é que o corpo parece ter um mecanismo de “detecção de erros”. Quando os cientistas geravam campos magnéticos absurdos, que não seriam possíveis em situações reais (o corpo só os receberia se a pessoa estivesse andando de ponta-cabeça, num ângulo bizarro em relação à Terra), o cérebro simplesmente os ignorava, e não “desligava” as ondas alfa. Isso reforça a tese de que o cérebro realmente possui algum mecanismo especializado em interpretar os campos magnéticos (e não é meramente afetado por eles, como qualquer sistema elétrico).
O mecanismo biológico envolvido ainda é desconhecido. Mas há uma pista: a magnetita. Ela é um óxido de ferro (fórmula Fe3O4) bastante sensível a campos magnéticos – por isso, serve para fazer bússolas e também pode se transformar em ímã. A palavra “magnético”, aliás, vem da Magnésia, uma região da Grécia rica nesse minério. Ele é encontrado na natureza, mas também pode ser produzido por seres vivos. É o caso das bactérias magnetotáticas – que têm estruturas internas, os magnetossomas, para fabricar a própria magnetita.
Descobertos em 1963 pelo pesquisador italiano Salvatore Bellini, esses micróbios começaram a chamar a atenção da comunidade científica em meados dos anos 1970, quando um estudante de biologia chamado Richard Blakemore as colocou num microscópio e percebeu que elas reagiam a um campo magnético. Quando ele mudava a direção do campo, os micróbios imediatamente se reorientavam, mudando de posição (5).
“As bactérias magnetotáticas têm centenas de cristais magnéticos em seus corpos. Elas são os melhores ímãs do mundo. Os humanos não sabem fabricar ímãs tão bons quanto essas bactérias”, diz Stuart Gilder, geofísico da Universidade de Munique e autor de estudos sobre a Magnetobacterium bavaricum, uma bactéria do tipo descoberta em lagos da Bavária, na Alemanha.
Acredita-se que essa sensibilidade ao magnetismo seja uma adaptação evolutiva, pois permite que as bactérias se orientem e migrem para ambientes mais favoráveis, onde a concentração de oxigênio é ideal para elas (a maioria das magnetotáticas gosta de pouco oxigênio).
Em 1992, o biólogo Joseph Kirschvink (o mesmo da experiência de 2019, que citamos agora há pouco) observou tecido cerebral humano num microscópio eletrônico de alta potência e encontrou o que pareciam ser cristais de magnetita (6).
Nas décadas seguintes, outros cientistas confirmaram isso, e descobriram como a magnetita se distribui no cérebro. “Percebemos que algumas partes são mais magnetizadas. Quando mais fundo você vai no cérebro, mais magnetizado ele é”, diz Stuart Gilder, que publicou um estudo a respeito em 2018. Ele e sua equipe picotaram sete cérebros humanos (7) em 822 pedacinhos, devidamente identificados conforme a região de cada um.
As amostras foram colocadas num magnetômetro (aparelho que mede campos magnéticos), para gerar um resultado basal. Em seguida, foram expostas por alguns segundos a um campo magnético de 0,8 tesla – equivalente ao gerado pelo ímã de um alto-falante.
Esse campo impregnou os pedacinhos de cérebro, que então voltaram para o medidor: e aí, conforme o magnetismo emitido por cada um, foi possível deduzir a quantidade de magnetita presente nele. “O cerebelo [área quase no centro do crânio] é duas vezes mais magnetizado do que o córtex cerebral [a parte mais exterior do cérebro]”, diz Gilder.
Um dos sete cérebros picotados pertencera a um esquizofrênico – nele, a distribuição de magnetita era a mesma, mas a quantidade geral de cristais era muito maior. “Isso precisa ser confirmado. Mas sugere que o paciente de esquizofrenia recebe, ainda que inconscientemente, uma quantidade muito maior de estímulos do campo magnético da Terra”, diz Gilder.
Seria possível, um dia, tentar tratar a esquizofrenia reduzindo a exposição dos doentes a esses estímulos – ou neutralizando a magnetita de alguma forma? “Ainda não sabemos”, responde o pesquisador, “assim como não sabemos o porquê de o cérebro humano reagir a campos magnéticos”. É verdade. As pesquisas ainda estão longe de entender o que a magnetita faz no cérebro, se é que faz alguma coisa. Mas ela está lá.
“Deve existir alguma estrutura capaz de interagir com o campo magnético e, de alguma forma, levar informações às conexões cerebrais. Uma hipótese é que as estruturas que as bactérias possuem, e que existem no cérebro humano [os cristais de magnetita], façam esse papel”, diz o biólogo Daniel Acosta Avalos, do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF).“A outra teoria envolve uma molécula conhecida como criptocromo.”
O criptocromo (CRY) é uma proteína sensível à luz presente em plantas e animais. Em 2011, pesquisadores da Universidade de Massachusetts (8) fizeram uma experiência com moscas do gênero Drosophila. Elas foram escolhidas porque são capazes de sentir campos magnéticos e se orientar por eles quando voam. Os cientistas modificaram geneticamente as moscas para que elas não produzissem CRY.
Resultado: os insetos não conseguiam mais se orientar pelo magnetismo. Então os cientistas inseriram criptocromos humanos (hCRY) nas moscas – que voltaram a se orientar por campos magnéticos. Tudo indica que, além de reagir à luz, o criptocromo possui algum nível de sensibilidade ao magnetismo. Em humanos, ele está presente na retina, na parte de trás do olho.
Mas o magnetismo também pode interferir com outras partes do corpo. No começo de 2021, cientistas da Universidade de Tóquio conseguiram demonstrar, pela primeira vez, o efeito direto de campos magnéticos sobre células humanas. Eles usaram células da linhagem HeLa: o nome vem da americana Henrietta Lacks, que morreu de câncer em 1951.
Células do tumor foram colhidas por cientistas do Johns Hopkins Hospital, onde ela foi atendida, e se tornaram uma ferramenta científica: como são tumorais, as células HeLa têm a capacidade de se reproduzir indefinidamente, e por isso podem ser cultivadas em laboratório. Elas são usadas até hoje em estudos sobre vírus, genética, câncer e outros temas.
As células HeLa, assim como outros tipos de célula humana, exibem a chamada autofluorescência: se você iluminá-las, a mitocôndria (a “usina de energia” da célula) absorve e reemite essa luz, só que numa cor ligeiramente diferente. É um fenômeno natural, causado pelos fluoróforos – moléculas que absorvem e liberam os fótons (partículas de luz).
Os pesquisadores da Universidade de Tóquio fizeram esse mesmo teste (9) com as células HeLa, só que adicionando um elemento: além da luz, eles também submeteram as células a um campo magnético artificial. Quando isso acontecia, a autofluorescência ficava mais fraca. “O brilho das células muda quando elas são expostas a campos magnéticos”, explica Jonathan Woodward, especialista em magnetorrecepção e fotoquímica da Universidade de Tóquio.
“Não há dúvida de que campos magnéticos afetam sistemas biológicos, e isso inclui células humanas nos mais diferentes tecidos”, diz Margaret Ahmad, bióloga da Universidade Sorbonne e autora de vários estudos a respeito (10). A ciência ainda está começando a descobrir as possíveis consequências disso. Mas, para outros animais, a importância da magnetorrecepção é evidente.
Ela ajuda pássaros, salmões e baleias a se guiar em suas longas migrações, de milhares de quilômetros – e também serve de orientação para lagostas, baratas e formigas. Até as plantas parecem conectadas a ele: há experiências mostrando que, quando expostos a campos magnéticos artificiais, o feijão e a soja crescem mais rápido – e a cebola não se desenvolve corretamente se for isolada do magnetismo normal do planeta (11).
Ele é um elemento essencial para muitas formas de vida. Mas não é constante nem eterno. O magnetismo da Terra está ficando mais fraco, o que pode ser prenúncio de um fenômeno maior: a inversão dos polos magnéticos. Isso pode ter consequências para muitas espécies, inclusive a nossa. E já aconteceu antes.
AAlém de luz e calor, o Sol também produz o chamado vento solar: um fluxo de partículas eletricamente carregadas que se desloca a até 2,7 milhões de quilômetros por hora. Quando elas se aproximam da Terra, são desviadas pela magnetosfera – a camada mais externa do campo magnético que envolve o planeta.
Ela não é uniforme, e tem buracos (o principal é o Cinturão Van Allen, descoberto no final da década de 1950), mas funciona como um escudo que nos protege [veja infográfico abaixo]. Sem a magnetosfera, a Terra não teria atmosfera, pois os gases teriam sido varridos pelo vento solar (acredita-se que esse seja o motivo de Marte ter perdido a maior parte de sua atmosfera).
De tempos em tempos, o fluxo normal de vento solar é perturbado por explosões ou pela liberação de plasma na superfície do astro, e o resultado disso são as “tempestades solares”. A nossa magnetosfera não consegue nos proteger totalmente delas, que causam interferências em satélites e comunicações de rádio. E, como indica um novo estudo, também podem desnortear as baleias.
Pesquisadores da Universidade Duke, nos EUA, analisaram 186 encalhamentos de baleias, ocorridos ao longo de 31 anos, e constataram o seguinte: eles eram quatro vezes mais frequentes durante os períodos de tempestade solar (12).
Uma tempestade solar de grandes proporções poderia ir além, e queimar todos os tipos de equipamento elétrico. A última delas, que ficou conhecida como Evento de Carrington (pois foi registrada pelo astrônomo inglês Richard Carrington), aconteceu entre os dias 1 e 2 de setembro de 1859 – e estragou boa parte das redes de telégrafo na Europa e nos EUA.
Hoje, com a sociedade hiperconectada e dependente de sistemas eletrônicos, uma tempestade similar levaria ao caos: praticamente tudo, dos bancos ao controle de tráfego aéreo, seria afetado. “E se a internet ficasse sem funcionar por dias ou até meses?”, questiona a cientista da computação Sangeetha Abdu, da Universidade da Califórnia, num artigo a respeito (13).
As tempestades solares são extremamente difíceis de prever. Mas os cientistas têm detectado dois sinais que podem reduzir nossa proteção contra elas. O primeiro deles é o deslocamento dos polos magnéticos da Terra.
Conforme o planeta gira, os metais derretidos contidos em seu núcleo também se movimentam, e isso altera a densidade e a posição do campo magnético que eles geram. A velocidade desse fenômeno varia bastante – houve um momento, há 39 mil anos, em que o eixo geomagnético chegou a se deslocar 280 km por ano.
Desde o começo do século 20, o polo norte magnético está indo do Canadá para a Sibéria. Mas o processo tem acelerado: nas próximas duas décadas, o eixo deve se deslocar de 390 a 660 km, segundo uma estimativa de cientistas ingleses e dinamarqueses, que analisaram 20 anos de medições feitas por satélites (14). E o Modelo Magnético Mundial, mapa atualizado a cada quatro anos, precisou ser revisado em 2019, um ano antes do previsto.
O segundo fator é que, além de se deslocar, o campo geomagnético está ficando mais fraco: vem perdendo cerca de 5% da intensidade a cada século. E esse fenômeno costuma anteceder a inversão dos polos magnéticos.
A última delas, que aconteceu há 42 mil anos, coincide no tempo com alguns eventos ecológicos extremos: o aumento da capa de gelo sobre a América do Norte, a extinção da megafauna da Austrália (que abrigava animais como o diprotodon, um marsupial do tamanho de um hipopótamo) e até o desaparecimento dos neandertais aconteceram nessa mesma época.
Para um grupo de 33 cientistas de vários países, que em fevereiro publicaram um estudo analisando essa inversão (15), que é conhecida como Evento de Laschamps, pode haver uma relação entre as coisas: a troca dos polos teria enfraquecido temporariamente o campo magnético da Terra, fazendo com que a camada de ozônio fosse parcialmente varrida – deixando grandes áreas do planeta, e seus habitantes, desprotegidos dos raios ultravioleta. Um terror.
Mas essa tese, que se baseia em modelos matemáticos e na análise de árvores kauri (que têm milhares de anos e foram encontradas, bem preservadas, no fundo de um pântano na Nova Zelândia), tem um grau considerável de especulação. A inversão durou 440 anos, tempo suficiente para acontecer muita coisa – incluindo outros fatores que poderiam explicar as mudanças climáticas.
Também não há muito que possamos fazer para compensar um enfraquecimento abrupto da magnetosfera ou nos defender de tempestades solares. Quem sabe proteger os aparelhos eletrônicos com algum tipo de blindagem (o que já é feito nos sistemas mais críticos, como equipamentos militares). Mas não há lógica em nos preocuparmos com fenômenos magnéticos, incertos e quase impossíveis de prever, quando temos uma ameaça real e imediata batendo à nossa porta: o aquecimento global.
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Fontes
(1) Einstein, von Frisch and the honeybee: a historical letter comes to light. A Dyer e outros, 2021. (2) Magnets Interfere with Pigeon Homing. W Keeton, 1971. (3) Magnetic alignment in grazing and resting cattle and deer. S Begall e outros, 2008.
(4) Transduction of the Geomagnetic Field as Evidenced from alpha-Band Activity in the Human Brain. J. Kirschvink e outros, 2019.
(5) Magnetite in Freshwater Magnetotactic Bacteria. R Blakemore e outros, 1979. (6) Magnetite biomineralization in the human brain. J Kirschvink e outros, 1992. (7) Distribution of magnetic remanence carriers in the human brain. S Gilder e outros, 2018.
(8) Human cryptochrome exhibits light-dependent magnetosensitivity. L Foley e outros, 2011. (9) Cellular autofluorescence is magnetic field sensitive. J Woodward e N Ikeya, 2021. (10) Low-intensity electromagnetic fields induce human cryptochrome to modulate intracellular reactive oxygen species. M Ahmad e outros, 2018.
(11) Magnetic field effects on plant growth, development, and evolution. M Maffei, 2014. (12) Gray whales strand more often on days with increased levels of atmospheric radio-frequency noise. J Granger e outros, 2020. (13) Solar Superstorms: Planning for an Internet Apocalypse. S Abdu, 2021. (14) Recent north magnetic pole acceleration towards Siberia caused by flux lobe elongation. P Livermore e outros, 2020. (15) A global environmental crisis 42,000 years ago. A Cooper e outros, 2021.