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Mais que desafinados

A música já foi descrita como um "cheesecake evolutivo": prazerosa e inútil. Mas, para a minoria de pessoas neurologicamente incapazes de apreciá-la, ela está mais para óleo de fígado de bacalhau sonoro

Por Maurício Horta
Atualizado em 31 out 2016, 18h50 - Publicado em 19 Maio 2012, 22h00

Muita gente é ruim de ouvido. Destrói a roda de violão ao cantar fora do tom ou não consegue lembrar a melodia das canções, apenas a letra. Mas, para um número bem menor, a música simplesmente não existe. Cantarole a Marcha Fúnebre ou a Marcha Nupcial e elas não vão saber a diferença – por mais inteligentes que sejam e por mais que tenham ouvidos fisicamente perfeitos.

O problema dessas pessoas é a amusia – uma condição rara conhecida há tempos, que já colecionou casos folclóricos, como o de Che Guevara, o argentino-cubano que dançava mambo quando a orquestra tocava tango. Mas só recentemente a amusia foi levada a sério – o primeiro estudo científico saiu em 2002, da equipe da neurocientista Isabelle Peretz, da Universidade de Montreal.

Uma das pacientes de Peretz foi D. L., uma senhora de 76 anos que a neurologista apresentou com gosto a Oliver Sacks, autor do livro Alucinações Musicais. Embora viesse de uma família de instrumentistas, D. L. nunca soube como música soa. “Imagine que você está na cozinha e alguém joga todos os pratos e panelas no chão. É isso que eu ouço”, conta. No jardim de infância, a professora pedia que as crianças falassem seus nomes cantando, mas D. L. não conseguia sequer perceber o que os colegas faziam. Chegou até a cursar sapateado – e se deu bem, pois era boa de ritmo. Mas bastava colocar uma música para acompanhar para ela se perder.

Isso acontece porque portadores de amusia não reconhecem os “intervalos musicais” – ou seja, a diferença entre a frequência de dois sons. Essa discrepância, mesmo quando bem sutil, nos faz distinguir uma nota da outra e estabelecer relações entre elas. Tal como letras formam o alfabeto, o conjunto dessas notas forma as “escalas musicais”. Se as notas dessas escalas se relacionarem bem, seguindo regras de harmonia, formamos algo como “palavras” musicais. Se a combinação for ruim, teremos dissonâncias. Ou seja, “barulho”. E, como o amúsico é incapaz de reconhecer qualquer intervalo musical, toda música lhe soa barulhenta. Ele percebe uma canção da mesma forma como um analfabeto se perde diante de uma lista telefônica.

E como seria esse som? Pense, por exemplo, num belo piano. Ele nada mais é que uma caixa acústica em que são marteladas cordas metálias tensionadas com diferentes forças, afinadas com extrema precisão. Para a maioria das pessoas, pode soar muito bem. Se você tirar da história a relação entre esses sons, no entanto, sobram apenas ruídos metálicos martelados aleatoriamente. E canções com letra? O amúsico as reconhece, sim – mas só pelas palavras. Basta trocá-las por “lalalá” para perder o sentido.

Frustrante. E o incômodo é ainda maior quando muito da vida social gira em torno da banda que você ouve, da balada que você frequenta. Talvez do ponto de vista evolutivo a música não tenha função alguma – nas palavras do linguista americano Steven Pinker, ela é um “cheesecake auditivo”, prazeroso e inútil. Mas basta tirá-la da nossa vida para descobrir sua importância.

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Medo de música
“A vida fica de pernas para o ar quando você tira a música dela. Eu me lembro de chorar porque não podia ir às compras ou me sentar num restaurante e comer”, disse a estudante americana Stacey Gayle em uma coletiva de imprensa, após ser submetida a uma cirurgia no cérebro para tratar sua epilepsia musical.

Diferentemente de D. L., Stacey compreendia muito bem música. Até participava do coral gospel de sua igreja, em Nova York. Mas tudo mudou em 2005, quando, aos 21 anos, começou a ter misteriosas convulsões. Ela desconfiava do que poderia causar os ataques, mas não tinha coragem de contar aos médicos. Afinal, o motivo parecia bizarro demais: sempre aconteciam segundos depois de começar a ouvir a música Temperature, do rapper jamaicano Sean Paul.

Desde então, Stacey passou dois anos fazendo diversos tratamentos, nenhum com sucesso. Seus médicos decidiram colocá-la por 4 dias sob monitoramento, com eletrodos colados na cabeça, em um quarto silencioso do hospital. E nada acontecia no, como Gayle já podia prever. Quando se fartou da pasmaceira, a jovem decidiu “provocar” as convulsões. Pediu à equipe médica que a deixassem pegar seu iPod para ouvir Temperature. Na mesma noite, teve 3 ataques.

Não demorou para que sua epilepsia degringolasse e perdesse sua seletividade. Primeiro foram músicas de R&B e hip-hop, como Umbrella, de Rihanna. Depois, foi piorando, até que quase todo tipo de música causasse ataques – até ringtones de celular. Só passava incólume ao jazz e à música clássica.

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Gayle foi um dos 150 casos até hoje conhecidos de “musicolepsia”, ou “epilepsia musicogênica”. Essa condição foi descrita cientificamente pela primeira vez em 1937 num estudo de Macdonald Critchley com 11 casos, como o do operador de rádio de navio transatlântico que precisou mudar-se para um navio menor, sem orquestra a bordo, e do crítico musical que abandonou a profissão e escreveu o ensaio Medo de Música.

Por que a música pode ser tão prejudicial? Algumas epilepsias ocorrem quando há um tilt em uma rede de neurônios que trabalham juntos para realizar uma tarefa específica. No caso da epilepsia musicogênica, o problema parece acontecer nas células envolvidas na apreciação musical. Elas ficam excitadas demais, e aí vem a convulsão. Em alguns casos, o ataque é provocado por músicas mais ritmadas ou dissonantes. Mas ela também pode ser desencadeada por melodias muito marcadas na memória.

Foi o que aconteceu com Silvia N., uma imigrante italiana atendida por Sacks. Um dia, foi encontrada inconsciente no chão, depois de ter escutar um CD de músicas napolitanas que ouvia na infância. Toda vez que entrava em contato com essas canções, tinha a sensação estranha de voltar à adolescência. Em seguida, convulsionava. O pior eram as festas de casamento da família: “A banda começava a tocar, e eu saía correndo. Tinha meio minuto para me safar”.

Depois, as crises passaram a vir mesmo sem músicas, e nenhum medicamento surtia efeito. A única opção foi submeter-se a uma cirurgia para retirar a parte lesionada do cérebro. Assim, pode voltar às festas italianas sem medo de desmaiar com uns acordezinhos. O mesmo aconteceu com Gayle – que, após a retirada de um pedaço do tamanho de um pequeno ovo de seu cérebro, voltou às baladas de hip hop e ao coral na igreja.

 

Musicofilia súbita
Com o cirurgião ortopédico Tony Cicoria aconteceu o contrário. Ele nunca tinha ligado muito para música – até que, aos 42 anos, viu seu corpo deitado no chão, rodeado por curiosos, enquanto uma mulher lhe aplicava uma massagem cardiorrespiratória. Tinha acabado de ser atingido por uma descarga elétrica num orelhão – em 1994, ainda não tinha um celular para ligar para sua mãe.

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Depois de ver sua vida passar diante de si como em um filme, Tony voltou para seu corpo, todo queimado no rosto e no pé. Apesar de seu coração ter parado, o médico não sofreu nenhuma sequela aparentemente importante. Voltou a trabalhar em duas semanas. “Até que passei a sentir um desejo insaciável de ouvir música de piano”, contou a Sacks.

Umas 6 semanas após o acidente, Tony comprou discos de Chopin e encomendou partituras para estudar piano. Depois, passou a viajar para assistir a seus intérpretes preferidos. Não demoraria então para inexplicavelmente receber a inspiração para compor músicas, que vinham à mente como se caíssem do céu.

“A primeira vez foi num sonho. Estava de smoking, no palco, tocando alguma coisa de minha autoria. Acordei sobressaltado, com a música ainda na cabeça”, conta ele. Essa inspiração repentina nunca parava – era como se tivesse na cabeça uma rádio de músicas inéditas. Levantava às 4 horas da madrugada e se sentava ao piano para dar forma a esses sons imaginários até a hora de trabalhar. Chegando em casa, voltava ao piano, para o desgosto de sua mulher – que se divorciou dele 10 anos depois do acidente.

Cicoria tornou-se uma pessoa diferente, graças à sua experiência de quase-morte. Além da percepção musical, ganhou uma nova espiritualidade – coisa inédita para ele, apesar de sua criação católica. “Analisando-o de uma perspectiva neurológica, acho que seu cérebro agora deve ser muito diferente do que era antes de o raio atingi-lo”, escreve Sacks. Semanas após o acidente, seu cérebro se organizou para a musicofilia. Hoje Cicoria poderia investigar melhor o que ocorreu com ele. Mas preferiu deixar tudo daquele jeito. Estava contente com o talento adquirido aos 42 anos.

 

 

Outros mistérios musicais

Ouvido absoluto
Normalmente, reconhecemos uma nota musical em relação a outra. Por exemplo, se alguém der um dó, saberemos que o mi é a nota dois tons acima. Mas algumas pessoas conseguem reconhecer a nota sem referência alguma. Se o irmãozinho arrotar, elas vão saber se o arroto foi um si bemol, ou um lá – para a inveja de muitos músicos.

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Sinestesia
Para uma a cada 2 mil pessoas, um som não é apenas um som. Ele tem cheiro, sabor, cores. O compositor Michael Torke, por exemplo, vê o ré maior como azul, e o fá menor, como cor de terra acinzentada. Já em um caso publicado na revista Nature, o intervalo de 2a menor era azedo, o de 3a menor, salgado, e o de 3a maior, doce.

 

 

Para saber mais

Alucinações Musicais
Oliver Sacks, Companhia das Letras, 2007.

 

 

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