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Maternidade no Mar

Para proteger os filhotes da ameaça dos predadores, os animais marinhos recorrem a admiráveis estratégias. O resultado e um equilíbrio entre as diversas populações de dar inveja ao homem.

Por Da Redação Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 31 out 2016, 18h27 - Publicado em 31 Maio 1990, 22h00

David F. Donavel

É primavera no hemisfério norte. Nas frias águas ao largo de Nova Jersey, na costa leste dos Estados Unidos, inúmeras cavalas do Atlântico (Scomber scombrus) nadam rumo ao norte, para alcançar as águas também gélidas do Maine e das províncias canadenses, em busca de um local onde passar o verão. E, pelo caminho, quase casualmente, essas criaturas desovam. As fêmeas liberam em uma única temporada 500 mil ovos, que flutuam desamparados nas tépidas águas da superfície do mar. Em consequência desse dispêndio aparentemente descuidado e esbanjador de material reprodutivo, os ovos e os peixinhos já nascidos acabam alimentando incontáveis animais marinhos, desde plânctons predatórios a enchovas, bacalhaus e percas-listradas. Do meio milhão de ovos que uma fêmea grande libera, em média, apenas dois filhotes sobrevivem até a idade adulta.

Enquanto a principal estratégia da cavala para assegurar a sobrevivência de sua espécie é botar um número astronômico de ovos, outros animais marinhos desenvolveram meios diferentes para obter o mesmo resultado – alternativas que são, ao mesmo tempo, menos extravagantes e mais interessantes. No Golfo do Maine, enquanto as cavalas seguem seu caminho entre grandes cardumes predatórios, os humildes machos de uma espécie de peixe escorpenídeo chamado em inglês lump ou lumpfish (Cyclopterus lumpus) guardam ciosamente os ovos deixados por suas fêmeas. Os ovos formam um aglomerado viscoso, colados a materiais empilhados, rochas ou outros resíduos sólidos do fundo do mar.
Têm uma coloração rósea quando postos, mas escurecem lentamente para o marrom, passando pelo amarelo, à medida que amadurecem. Parecem-se com um pedaço de isopor quebrado.

O macho paira por perto, “soprando” constantemente água sobre eles, para aeração e limpeza, o que também ajuda a afastar predadores em potencial – estrelas-da-mar, fanecas – que sempre se aproximam demais. O lump não se alimenta durante o tempo em que os ovos estão em incubação. O jejum algumas vezes o deixa fraco e vulnerável quando a ninhada finalmente sai dos ovos e se une ao plâncton, começando a viver por conta própria. O trabalho de ser pai desse bicho não é fácil, devido à quantidade de predadores que habitam as águas do Golfo do Maine.
Infelizmente, o peixe foi contemplado recentemente com um novo problema: os vendedores de frutos do mar descobriram que os ovos do lump são um substituto aceitável e barato para o caviar do esturjão e, consequentemente, aumentaram as dificuldades de sobrevivência da espécie. Como não existem regulamentos de proteção da espécie, fica difícil prever o que lhe poderá acontecer, caso o mercado para esse “caviar de pobre” seja estimulado. Em águas tropicais, o diminuto sargentinho macho (Abudefduf saxalitis), também conhecido no Brasil como paulistinha, desempenha um papel similar ao do abnegado e assoberbado lumpfish.

Durante a maior parte do ano, o sargentinho é um sossegado comedor de plâncton, habitante de bancos de areia, preocupado apenas com sua própria vida. No entanto, quando chega a época da procriação, esse dócil animal torna-se sombrio – no sentido literal e figurado. De fato, os sargentinhos adquirem uma coloração azul-metálica – sinal para as fêmeas da área de que chegou a hora do acasalamento – e -,,_ demarcam uma superfície plana no banco de areia, a qual limpam com assiduidade e defendem com ferocidade. Nessa superfície as fêmeas depositarão seus ovos. Um macho se acasalará com qualquer fêmea que entre em seu território agressivamente vigiado e pode terminar a temporada de procriação com até quatro fragmentos de .5 centímetros cada de ovos de coloração púrpura escura.

Durante o período de incubação de uma semana, esses peixes de 18 centímetros rechaçam as fêmeas e atacam qualquer coisa que se aproxime de seus filhotes, incluindo mergulhadores. Quando não está ocupado afastando intrusos, o macho dedica-se a limpar e a soprar água sobre os ovos que, lentamente, perdem toda cor até darem vida a minúsculos e agressivos comilões de plâncton. Os peixes não são os únicos a adotar formas de proteção de seus ovos. Nas águas da Nova Inglaterra, alguns nudibrânquios, ou lesmas-do-mar, caracóis sem conchas, depositam ovos em longas malhas gelatinosas perto ou mesmo sobre hidróides ou tunicados – ambos invertebrados sésseis, isto é, sem suporte – de que os filhotes se alimentarão quando os ovos se romperem. Outras espécies de nudibrânquios programam a incubação de ovos para que o nascimento dos filhotes coincida com a procriação anual de hidróides.

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Quando esse seu alimento cresce, os ovos se quebram e as recém-nascidas larvas de nudibrânquios encontram um conveniente “jardim” de hidróides florescendo exatamente na época certa. Como a metamorfose das larvas quase sempre depende dessa colonização nudibrânquia entre os hidróides, tal coincidência é mais do que mera conveniência: é, ao mesmo tempo, crítica para a sobrevivência da espécie e um exemplo da elegante eficiência com que • os relacionamentos na natureza são muitas vezes arranjados. Com o crescimento dos filhotes de nudibrânquios, as estações passam e, com a chegada do inverno, os hidróides morrem em massa. Mas, a essa altura, os nudibrânquios já têm condições de diversificar suficientemente sua dieta de forma a assegurar sua sobrevivência.

Um parente do nudibrânquio, uma espécie de caracol marinho chamado em inglês moon snail (lunatia heros), passa a vida adulta vasculhando a areia em busca de pequenos moluscos, gasterópodes e outras guloseimas. Ele deposita seus ovos na superfície interna de um delicado colar semi-elástico e translúcido. Esse colar é formado pelo caracol a partir de uma substância mucosa secretada sob as patas, que ele modela contra a parte externa de sua concha. Quem percorrer durante o verão qualquer praia arenosa da costa nordeste dos Estados Unidos encontrará frequentemente colares de areia do moon snail. Com certeza as pessoas a ficarão desapontadas ao tentar levá-los para casa, pois os colares secos se desintegram ao mais leve toque. Esses colares de areia aparentemente proporcionam uma forma de distribuição dos ovos sobre fundo arenoso, de forma a evitar o atrito e permitir uma circulação adequada. Podem também servir como camuflagem protetora.

Outro habitante comum das águas da Nova Inglaterra, o caranguejo-de-pedra do Atlântico (Cancer irroratus) se acasala quando o macho maior literalmente toma posse da fêmea. Ele a envolve em um abraço quase protetor com suas pernas e pinças. Acasalamento completado, a fêmea guarda os ovos fertilizados, carregando-os sob seu corpo, presos aos fios que crescem de uma perna abdominal. Ocasionalmente, pode-se encontrar na praia um caranguejo fêmea carregado com grande quantidade de ovos alaranjados e brilhantes a favor do oceano.

Quando os ovos estão prontos para se abrir, a fêmea se levanta apoiada em suas pernas delgadas e permanece imóvel, enquanto as larvas quase incolores deixam devagar seu corpo num movimento conjunto que parece uma fumaça na maré. Observando atentamente, a impressão que se tem é de que esses filhotes são diferentes dos caranguejos. Tanto assim que, ao serem descobertos pela primeira vez, chegou-se a pensar que se tratava de uma espécie distinta. Em pouco tempo, porém, eles se transformam em um tipo de larva claramente identificável como caranguejo e, em seguida, alcançam a fase adulta. De todos os invertebrados que habitam as águas pouco profundas da costa nordeste dos Estados Unidos, possivelmente o mais detestado é o velho e incompreendido caranguejo-ferradura (Lilmulus popyphemus). Em primeiro lugar, esse animal semelhante a um tanque, que se move lentamente, não é um caranguejo mas um aracnídeo marinho, ou seja, um tipo de aranha que se movimenta no mar, o último de sua espécie no mundo, pois todos os seus parentes já foram extintos há muito tempo. Os caranguejos-ferradura têm a reputação de serem criaturas perigosas por causa de sua cauda espinhosa, de aparência repelente. Durante décadas, em lugares como Cape Cod, no Estado de Massachusetts, foram tidos como destruidores dos ricos e lucrativos leitos de criação de vieiras. Por isso, passaram a ser rotineiramente dizimados, o que reduziu em muito sua população.

Na verdade, os caranguejos-ferradura não são nada perigosos e, em vez de colocar em risco a população de invertebrados, até contribuem para intensificá-la ao movimentar as águas do fundo do mar. Felizmente, a maneira de encarar esse tipo de caranguejo mudou e sua destruição está estancando. O acasalamento do animal acontece durante a lua cheia, em junho. As fêmeas, bem maiores do que os machos, muitas vezes aceitam mais de um parceiro durante o período que antecede a colocação dos ovos. Os machos, para se assegurar de que estão no local certo para a fertilização, prendem-se avidamente à parte posterior das conchas da fêmea com de areia com duas pinças. A fêmea carrega esses machos consigo até depositar os ovos na zona mais alta da maré; nesse momento os machos se soltam para fazer a fertilização. Os filhotes são diminutos, têm uma coloração arenosa e passam seus primeiros dias perto da praia. Aos poucos. escurecem e se dirigem para águas mais profundas. Não deveria ser surpresa, mesmo para quem estude de modo superficial o ambiente marinho, o fato de existirem estratégias de procriação tão variadas e elegantemente adaptadas às exigências ambientais para a sobrevivência das espécies. Vale também notar que, por maiores que sejam as dificuldades enfrentadas por uma determinada espécie para a proteção de seus filhotes, de modo geral nenhuma delas se sai melhor – ou pior – do que a cavala, que parece tão arrogante com relação à maternidade. A longo prazo, toda reprodução, qualquer que seja a quantidade inicial de filhotes, tende a manter a estabilidade das populações: o par que se acasala consegue assegurar a reprodução de sua espécie. Com a ameaçadora exceção de uma espécie, o Homo sapiens, o planeta conseguiu alcançar aquilo que os cientistas chamam homeóstase, isto é, o estado de equilíbrio dos organismos vivos em relação ao ambiente. Resta saber se o homem desejará ou poderá comportar-se de modo a fazer parte desse equilíbrio. A sobrevivência da espécie humana e a de grande parte do reino animal talvez dependam da resposta a essa questão.

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Para saber mais

Guia dos mamíferos marinhos, José Truda e Palasso Jr., Editora Sagra, Porto Alegre, 1988
Nossos peixes marinhos, Eurico Santos, Editora Itatiaia, Belo Horizonte, 1982

 

 

 

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