Monogamia – Monotonia?
A monogamia é uma raridade entre a maioria dos animais. Não é diferente com o homo sapiens. Ou você nunca pensou em trair, bicho?
Leandro Sarmatz
Sem ela, as novelas não teriam a menor graça – ou seriam muito menos apimentadas. Pense nas milhares de letras de tango e de bolero, nas canções cheias de dor de cotovelo de Lupicínio Rodrigues (nas quais o poeta Augusto de Campos detectou o “sentimento da cornitude”), no romantismo descabelado e crespo de Reginaldo Rossi. Ela aparece em toneladas de filmes, romances, peças de teatro, poemas. Ocupa grande parte das conversas entre vizinhos, amigos e colegas de trabalho. E pode estar dentro de você.
Ela? A infidelidade. Num livro recentemente publicado nos Estados Unidos, o psicólogo David Barash e a psiquiatra Judith Eve Lipton dedicam-se a destruir um mito laboriosamente erigido pela cultura humana: a monogamia. Escrito com enorme graça e fluência, The Myth of Monogamy: Fidelity and Infidelity in Animals and People (“O mito da monogamia: fidelidade e infidelidade em animais e pessoas”, ainda inédito no Brasil) é uma bordoada erudita na propalada idéia de que homens e mulheres seriam naturalmente predispostos a viver juntos até que a morte os separe. Barash e Lipton mostram que são outras coisas – bem distantes de coloridas certidões de casamento e de funestos atestados de óbito – que costumam unir ou desunir casais.
“A tendência à infidelidade é natural, o que não quer dizer que seres humanos não possam resistir”, diz David Barash, professor de psicologia na Universidade de Seattle, no Estado americano de Washington.
E, como exemplo da naturalidade dos instintos infiéis, Barash (ele próprio “resistindo” há mais de 20 anos em seu casamento com Judith, co-autora do livro) lembra que, entre os outros animais, a monogamia praticamente inexiste. E quando há, a incidência maior é da parte das fêmeas. “Monogamia geralmente implica exclusividade”, diz o casal de autores.
Barash e Lipton afirmam que, entre humanos, a monogamia é um mingau fervido com muitas doses de preceitos religiosos (catolicismo a granel), um bocado de pragmatismo econômico (como a necessidade de regular o direito à propriedade privada) e um toque de ingredientes sociais (reconhecimento da prole). E – claro – um punhado de comodismo. “Não é todo mundo que está disposto a freqüentar o instável e arriscado mercado de encontros”, explicam os autores. Mais: que, além desses fatores, monogamia existiria única e exclusivamente devido ao empenho isolado e contínuo de cada casal. “O mais poderoso mito que envolve a monogamia é aquele que diz que, ao encontrarmos o amor das nossas vidas, nos dedicaríamos inteiramente a ele”, afirma Barash. “A biologia mostra que há um lado irracional e animal no comportamento humano.”
A sociedade cria freios para tolher esse “lado irracional”, dizem Barash e Lipton. A condenação do adultério pelo sexto mandamento é um exemplo disso. No entanto, a Bíblia contém vários personagens que pulavam a cerca. Consta que o rei Davi mantinha seis esposas e Salomão era notório por suas 700 esposas e mais de 300 concubinas. O imperativo da monogamia, mostram os autores, surge quando as sociedades passam por processos de normatização, como criação de propriedade privada e toda a legislação ligada ao direito de herança e sucessão. O que não quer dizer que isso tenha ocorrido em todas as culturas humanas. Muitas delas, ao contrário, parecem estimular a parceria múltipla.
É o caso da seguinte história, exemplar sobre diferenças culturais. No final do século XIX, um provecto bispo britânico da Igreja anglicana visitava uma aldeia maori nos grotões mais recônditos da Nova Zelândia. Os aborígenes, contentes com a visita, promoveram grandes festividades. A certa altura, um desavisado “cacique”, querendo demonstrar hospitalidade, irrompeu em altos brados: “Uma mulher para o bispo!” Pois bem. Vendo a reação de contrariedade no rosto do prelado, o líder maori, sem pestanejar, ordenou: “Duas mulheres para o bispo!”
Desnecessário dizer que, entre os maori, a fidelidade é (como dizia o dramaturgo Nelson Rodrigues, especialista em iluminar as zonas mais esconsas da personalidade humana) uma “virtude facultativa”. Como os nativos neozelandeses, a maioria das espécies animais, assim como muitos outros agrupamentos humanos e indivíduos em geral, não são monogâmicos nem inclinados nesta direção. Segundo Barash e Lipton, o fato de não ocorrer monogamia na natureza (e de os machos serem tão volúveis e vorazes em seus apetites sexuais) pode ser explicado por uma contabilidade evolutiva. Esperma é barato, óvulos são caros. Melhor dizendo: um macho normal de qualquer espécie produz milhares de espermatozóides todos os dias e está sempre à disposição para novos intercursos sexuais, ao passo que as fêmeas ovulam bem menos e – em caso de fecundação – têm que arcar com um grande número de responsabilidades, que os pesquisadores costumam qualificar com a expressão “investimento parental”.
O termo foi criado em 1970 por Robert L. Trivers, professor de antropologia e biologia da Universidade de Rutgers, Nova Jersey, Estados Unidos, e, desde então, faz parte do vocabulário dos pesquisadores. É uma mão na roda para elucidar algumas sinucas evolutivas ligadas ao comportamento sexual. Investimento parental explica, por exemplo, porque fêmeas da maioria das espécies são menos dadas a aventuras extraconjugais. É uma equação de tempo, energia e risco que os pais biológicos depreendem para que a gestação e o nascimento de suas crias ocorram sem maiores problemas.
Gerar uma cria, para as fêmeas, não é apenas gestá-la durante meses que parecem intermináveis ou chocar um ovo num ninho a salvo de qualquer ameaça. É alimentar o embrião, depois feto, em seguida filhote. E protegê-lo de intempéries ou da sanha de predadores, naturais ou não. “Os machos, na maioria das espécies, não têm o mesmo comprometimento”, explica Trivers, que considera os humanos menos solidários que seus parentes mamíferos.
Um bocado de gente, como Trivers, acredita que humanos são menos inclinados ao investimento parental que outros animais, o que os tornaria mais propensos à poligamia do que outras espécies. Devido ao seu baixo investimento parental, os machos tendem à volúpia e à variedade – quanto mais, melhor. E existe até um termo capcioso cunhado pelos cientistas, o chamado “efeito Coolidge”, inspirado numa passagem da vida de Calvin Coolidge (1872-1933), o trigésimo presidente dos Estados Unidos.
A história conta que o presidente Coolidge e sua mulher visitavam separados uma fazenda modelo no interior dos EUA. Quando o presidente vistoriava o galinheiro, reparou num galo solitário em meio a dezenas de galinhas. Então, o guia observou:
– A senhora Coolidge pediu-me para mostrar ao senhor que este galo pode copular várias vezes ao dia.
– Sempre com a mesma galinha? – perguntou o presidente.
– Não, senhor.
– Por favor, então mostre isso à senhora Coolidge! – teria exclamado o presidente.
Verdade ou não, o enredo da anedota que gerou o “efeito Coolidge” pode ser melhor observado em laboratório. A freqüência sexual de um hamster macho declina rapidamente quando ele dispõe de apenas uma fêmea; torna-se lento, pouco receptivo, entediado. Porém, quando se introduz mais uma fêmea no pedaço, ele volta a apresentar apetite sexual. (Alguém aí se identificou com o ratinho?)
Variedade é a palavra de ordem na natureza. A pesquisadora Regina Macedo, do Departamento de Zoologia da Universidade de Brasília, estuda o comportamento sexual das aves brasileiras. Diz que, embora as aves apresentem aquilo que os biólogos chamam de “monogamia social” (ou seja, macho une-se à fêmea durante a estação reprodutiva, constrói o ninho e ajuda na criação dos filhotes), não dá para colocar a mão no fogo pelos bicudos. “Não existe evidência de que todo acasalamento é estritamente monogâmico”, afirma Regina. “Às vezes ocorrem cópulas extra-par, que podem gerar filhotes que não pertencem ao macho do casal.”
O papel de priapo cafajeste geralmente cabe aos machos. “Claro que mulheres podem trair, mas homens dispõem de muito mais opções”, explica David Barash. Tanto que, na maioria das espécies, o que há é a prática da poliginia (o popular harém), ao passo que a poliandria (uma fêmea com muitos machos) costuma ser associada a desvio sexual. “Os homens aceitam muito mais sexo casual do que as mulheres”, afirma o psicólogo Ailton Amélio da Silva, do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo. “E onde há monogamia há traição.”
E por que simplesmente as mulheres não se dedicam à prática monogâmica? Afinal, em se tratando de humanos, não dá para reduzir a discussão a critérios biológicos. Há entre nós fatores mais complexos, como o amor. “Mulheres preferem esperar e escolher”, explica Barash. Por isso é que às mulheres pode ser atribuída a tarefa de uma seleção mais rigorosa dos parceiros, o que depura a espécie e garante a plena sobrevivência de uma linhagem saudável.
Ao contrário dos homens, cuja estratégia evolutiva é dispersar o sêmen mundo afora, as mulheres optaram por ser objetos de disputa. Não é à toa que, no vasto mundo animal, é o macho que dispõe de “armas” (penas coloridas, grandes chifres, músculos cultivados em academia), todas surgidas da competição e dos rituais de corte entre machos e fêmeas.
O que nenhuma explicação científica parece dar conta é do componente fundamental de toda relação humana: o amor. Sentimentalismos (e biologia) à parte, é o amor que sedimenta o envolvimento entre dois humanos que se gostam. O amor pode até ser uma invenção cultural – assim como a própria monogamia entre muitas sociedades –, mas o homo sapiens é formado por um feixe de elementos culturais.
“A monogamia é o mais difícil dos arranjos maritais entre humanos”, escreveu a antropóloga americana Margaret Mead. A favor da fidelidade conjugal, o máximo que os cientistas conseguiram catalogar até o momento é o caso exemplar do parasita de peixe Diplozoon paradoxum: ele encontra uma larva virgem e se funde a ela. Permanecem juntos para sempre. Até que a morte os separe.
lsarmatz@abril.com.br
Para saber mais
Na livraria: The Myth of Monogamy, David Barash e Judith Eve Lipton. Nova York, W. H. Freeman, 2001.