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No rumo das aves migratórias

Impulsionadas por fatores biológicos e ambientais, milhares de aves deixam anualmente suas áreas de reprodução e migram, percorrendo longas distancias para garantir a sobrevivência da espécie. Muitas se hospedam no Brasil

Por Paulo Piratininga
Atualizado em 1 abr 2021, 09h40 - Publicado em 31 mar 1991, 22h00

Todos os anos, o trinta-réis-ártico (Sterna paradisuea), uma avezinha preta e branca, com pouco menos de 40 centímetros, realiza um longo vôo de pólo a pólo. Durante nove meses, ele percorre mais de 20 000 quilômetros, do Circulo Polar Ártico até o limite da Antártida, e retorna, então, ao ponto de partida.

Campeão absoluto entre as aves migrantes de longo percurso, o trinta-réis é seguido de perto, nessa maratona aérea, pelo batuiruçu (PIuvialis dominica). Este viaja 12 000 quilômetros, a uma velocidade de até 90 quilômetros por hora, desde o Pólo Ártico até os pampas argentinos.

Como essas, milhares de aves de diferentes espécies deixam seus lugares de origem quando o inverno se aproxima no Hemisfério Norte, à procura de alimentos e temperaturas mais elevadas. Das cerca de 10 000 espécies que existem no mundo, mais de um terço migra, em maior ou menor grau, o que abrange dezenas de bilhões de aves em busca da sobrevivência.

Esse fenômeno é mais pronunciado no Hemisfério Norte, quando as aves cruzam a linha do Equador dirigindo-se para as áreas tropicais e subtropicais da América do Sul, África e Oceania, viajando sobre mares e desertos, picos nevados e grandes cidades, enfrentando tempestades, furacões e nevoeiros. Esse é o caso das mais de 6 milhões de andorinhas-azuis (Prognesubis) que todos os anos, no outono, batem asas do Canadá, Estados Unidos e norte do México e parte delas vem desembarcar no interior de São Paulo.

Também um número incontável de maçaricos-brancos (Calidris alba), que se reproduzem na região ártica e cumprem uma rota migratória anual rumo à Terra do Fogo, costumam parar para um merecido descanso na Ilha de Itamaracá, em Pernambuco, onde se deliciam com moluscos e pequenos crustáceos. Ou então, na Lagoa do Peixe, no Rio Grande do Sul.

Também, desde 1983, os arranha-céus paulistanos abrigam, de outubro a fevereiro, um hóspede ilustre que vem da Groenlândia: o falcão peregrino (Falco peregrinus), ave rara com menos de 1000 exemplares catalogados no mundo. Pela dimensão do território brasileiro, a chegada de diversas aves migratórias pode passar despercebida para a maioria da população, até porque as condições geográficas não favorecem grandes concentrações num único ponto. Mesmo assim, sabe-se que o país recebe todos os anos cerca de 123 espécies visitantes de longo percurso que aqui desembarcam para férias forçadas.

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Trata-se de um número expressivo se comparado com o número de espécies (1.1620) que compõem a avifauna nacional. Esses hóspedes emplumados não vêm apenas do norte. Cerca de 37% das aves que visitam o Brasil migram no sentido sul-norte. No outono, por exemplo, o andorinhão-das-tormentas (Oceanites oceanicus), deixa os ninhos no limite do continente antártico para alcançar o Norte do Canadá e nesse percurso pousa em alguns trechos do litoral verde-amarelo. Na mesma época, bandos de biguás (Phalacrocoracx olivaceus) fogem da Argentina para aterrissar no Pantanal ou nos lagos do Sul. Para a Lagoa dos Patos, no Rio Grande do Sul, convergem periodicamente mergulhões, biguás e diferentes espécies de marrecas.

Diante desse surpreendente trânsito nos céus do planeta, é de se perguntar qual o motivo de tantas idas e vindas de aves, apesar dos inúmeros perigos que enfrentam no caminho. Os cientistas atribuem o fenômeno da migração ou invernada tanto a fatores endógenos, que se originam no próprio organismo da ave, quanto exógenos, provocados pelo ambiente. Sabe-se, por exemplo, que as aves dispõem de um ritmo interno fixo, diário, por isso chamado circadiano e de um ritmo anual, denominado circanual. Tais ritmos biológicos sofrem alterações conforme a duração maior ou menor de dias e noites que varia com as estações do ano.

No inverno, por exemplo, as noites são mais longas. Em função disso, o organismo tem que passar por ajustes metabólicos, e quem os efetua é a glândula hipófise, depois de receber ordens do hipotálamo. Dessa forma, as aves sabem que o inverno se aproxima e é hora de migrar. E haja fôlego para voar milhares e milhares de quilômetros sem escalas. Isso só é possível porque a hipófise dá uma força, ativando funções hormonais que produzem uma camada de gordura debaixo da pele das aves, proporcionando-lhes o combustível necessário.

No caso das aves que fazem vôos muito longos, sem paradas (non stop), essa gordura chega a representar mais da metade do peso total de seu corpo. Os maçaricos, por exemplo, são mais resistentes que outras espécies de aves e aumentam em até 6% seu peso/dia, reabastecendo seus tanques de combustível rapidamente. Se de um lado essas gordurinhas a mais fornecem energia, de outro representam rica fonte de alimentos. Por esse motivo e porque estão cansados da longa viagem, alguns tipos de maçaricos, como os que pousam no litoral paraense, popularmente chamados de pirão gordo, acabam se transformando em presa fácil dos pescadores, que os capturam com redes como se fossem peixes.

Estudos mostram cálculos interessantes sobre o rendimento dessas reservas de gordura. Um beija-flor americano, por exemplo, que pesa 2,5 gramas, se ganhar mais 2 gramas de gordura, é capaz de voar durante 26 horas, percorrendo uma distância de 976 a 1040 quilômetros, sem parar.

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Os pesquisadores também constataram que as gônadas nas aves (glândulas sexuais) se desenvolvem acentuadamente antes da reprodução. Isso ocorre quando é primavera no Hemisfério Norte (outono, no Sul) e esse é o sinal para que elas empreendam a viagem de volta aos locais de origem, o único lugar onde conseguem se reproduzir.

As primeiras análises sobre as migrações remontam à Grécia antiga. O célebre filósofo Aristóteles (384-322 a.C.) já constatava que espécies como os pelicanos e os grous migravam, enquanto a cotovia, o melro e a rola entravam em profundo estado de letargia invernando em refúgios escondidos. Essas observações se perpetuaram através do tempo, até que no século XVI, o ornitólogo francês Pierre Belon verificou que, com a chegada do inverno, muitas aves deixavam a França indo para o norte da África, onde meses antes não eram avistadas. A partir daí, os pesquisadores começaram a demolir a teoria da hibernação e a tentar classificar as espécies viajantes, descobrir as rotas que empreendiam e entender os fatores que provocavam o deslocamento.

Mesmo assim, restam algumas incógnitas. Uma delas é a orientação do vôo. No caso das aves que voam de dia, como as andorinhas, o falcão peregrino, cegonhas e flamingos, os estudos científicos apontam para a chamada memória da espécie, ou seja, seguem uma determinada rota orientando-se por acidentes geográficos (rios, lagos, montanhas) perfeitamente conhecidos por bandos organizados de vôo.

Mas e os maçaricos, marrecos e outras espécies que preferem voar à noite? Sabe-se apenas que é possível guiar-se pelas constelações, conforme demonstrou o ornitólogo alemão Frieder Sauer, realizando experiências no Planetário de Bremen. Ele capturou vários exemplares de currucas, pequenos pássaros europeus de cor acinzentada, e os colocou durante o período migratório em uma ampla abóbada que reproduzia artificialmente o céu noturno. Tão logo se recuperaram do susto inicial, os pássaros se alinharam a Sudeste, orientados pelas estrelas, prontos para seguir rumo aos países do Oriente Médio, onde tradicionalmente invernam. Não satisfeito, Sauer projetou na abóbada os céus da Alemanha, Tchecoslováquia, Hungria, Romênia e Turquia e, mais tarde, de Chipre. Nesse momento, as currucas mudaram de rumo em direção ao sul para alcançar o Vale do Nilo, no Egito. O ornitólogo constatou que elas se orientavam pelas constelações.

Outros estudos tendo as andorinhas da espécie Hinundo rústica como cobaia, revelaram a existência de verdadeiros instrumentos de navegação, como relógio, barômetro, emissor e receptor de infra-sons, bússola e analisador de luz polarizada em seus diminutos cérebros.Teoricamente, o relógio permitiria à ave precisar com exatidão a hora do dia e interpretar a posição do Sol e das estrelas. O barômetro, instrumento de medir a pressão atmosférica. detecta as massas de ar e as tempestades que se aproximam.

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O emissor e receptor de infra-sons permitem às andorinhas receber as vibrações sonoras características de cada zona do planeta. A bússola, por sua vez, faz com que elas verifiquem a cada instante suas posições dentro do campo magnético da Terra. Por fim, o analisador de luz polarizada possibilita a perfeita visão das tramas (invisíveis ao olho humano, como os raios infravermelhos) que, variando segundo a hora do dia, formam a luz solar ao entrar em contato com a atmosfera.

Acertadas ou não, estas particularidades ajudam a justificar fatos aparentemente inexplicáveis, como, por exemplo, o de um elevado número de andorinhas que foram levadas de avião da Alemanha para Madri, Londres e Atenas. Elas regressaram a seu destino de origem poucos dias depois, mesmo sem nunca terem frequentado aquelas regiões. Hoje, os conhecimentos que se têm sobre as aves migrantes avançaram graças a diferentes métodos de rastreamento. O mais sofisticado deles está na tentativa de acompanhá-las por meio de satélites. Basta colocar nelas um minúsculo radiotransmissor e captam-se os deslocamentos com uma margem de erro de 350 metros.

O problema é que o custo unitário dessa operação, em torno de 3.500 dólares, obriga os pesquisadores a adotar um sistema mais antigo e convencional, as clássicas anilhas de plástico ou metal, cujo peso nunca ultrapassa 1% do peso das aves. As de plástico colorido são as mais usadas, pois a cor ajuda a identificar o país de origem. A azul é a usada no Brasil.

Cada anel leva um código formado por uma letra e cinco números que nunca se repetem. Traz também o endereço da organização responsável, para, em caso de recuperação, ser avisada. No Brasil, quem realiza esse trabalho é o Cemave, Centro de Estudos de Migração de Aves, vinculado ao Ibama, Instituto Brasileiro do Meio Ambiente. A desvantagem do método é que ele não permite um completo acompanhamento dos deslocamentos. Mesmo assim, a prática do anilhamento é largamente difundida em todos os continentes, inclusive na Antártida. Quando anilha uma ave, o pesquisador deve anotar numa ficha os dados pertinentes, como data e local do anilhamento, número do anel, e medidas como o peso e o tamanho das asas. Eles serão úteis para interpretação e para conhecer o deslocamento da ave, caso ela seja recuperada.

No interior paulista, hóspedes tradicionais

Em meados de outubro, em plena primavera, as árvores das praças de cidades como São José do Rio Preto, Barretos, Rio Claro, Ribeirão Preto e Araraquara, recebem hóspedes internacionais: as andorinhas-azuis norte-americanas, que tradicionalmente passam férias no interior paulista. Elas gostaram tanto da hospitalidade brasileira, que é cada vez maior o número dessas aves na região de São José do Rio Preto. Há vinte anos, elas não passavam de 6.000. Mas, em 1985, cerca de 70.000 andorinhas azuis estiveram por lá. Dois anos mais tarde, as concentrações atingiram 120.000 pássaros. Entretanto, no ano passado, as condições meteorológicas não ajudaram as andorinhas que viajavam em direção à América do Sul. Os furacões que se abateram sobre a América Central e o Caribe aniquilaram boa parte delas e a população migrante não ultrapassou 15.000 aves.

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As aves que mudaram de endereço

Nesse vaivém de aves, até a poluída e superpovoada capital de São Paulo entrou na rota. Garças e mergulhões escolheram como pousada as margens do lago do Instituto de Botânica. Próximo ao Jardim Zoológico, no bairro da Água Funda. Nada de anormal nisso, já que ali há peixes em abundância e não existem predadores como jacarés, gatos-do-mato e gaviões

Porém, em 1990, essas aves mudaram de comportamento: em vez de retornar aos locais de origem (não se sabe especificamente de onde elas vêm) na época da reprodução preferiram ficar e acabaram por causar sérios desequilíbrios ecológicos na região. Os pesquisadores do instituto constataram que o nitrogênio que resulta das fezes daquelas aves havia queimado as folhas das árvores e cerca de 5.000 metros quadrados de mata natural foram destruídos.

A esperança, para os pesquisadores, seria a diminuição dos peixes do lago. Sem ter do que se alimentar, um mergulhão, por exemplo (que come em média 700 gramas de peixe por dia), retornaria ao seu local de origem. Mas não foi isso que aconteceu. Como as folhas das árvores caíam em maior número no lago, aumentaram a produção de plâncton, o alimento dos peixes. Dessa forma, armou-se um ciclo sem fim, que está causando muita dor de cabeça aos pesquisadores. As leis brasileiras determinam que animais fora de cativeiro são propriedade do Estado e proíbem sua caça e destruição em qualquer fase do seu desenvolvimento. No inicio deste ano, especialistas em flora e aves começaram a estudar juntos a questão para saber o que fazer. Afinal, tão importante quanto preservar as aves é preservar as árvores que elas estão destruindo.

Material de trabalho

A anilha é uma espécie de passaporte internacional que ajuda os pesquisa dores a estrear as rotas das aves pelo mundo. O equipamento para esse trabalho exige ainda: 1 barbante, 2 rede japonesa 3 paquímetro e metro 4 alicates; 5 dinamômetro; 6 bolsas de plástico; 7 anilhas de metal e de plástico 8 ficha para anotar os dados mais importantes sobre as aves que foram marcadas.

Do Brasil para o mundo

Há dez anos o Cemave, Centro de Estudos de Migração de Aves, com sede em Brasília, coordena o anilhamento de aves. Criado em 1977, por meio de um convênio entre o extinto Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal (IBDF) e a Fundação para a Conservação da Natureza, só no ano seguinte, o centro passou a funcionar efetivamente, ao inaugurar o primeiro curso de anilhamento de aves. Em 1979, estava pronto o Manual de Anilhamento, definindo o sistema das anilhas brasileiras, seus códigos etc.

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“Estamos padronizados com o que se faz em quase todos os países do mundo”, assegura o biólogo Paulo de Tarso Zuquim Antas, diretor do Cemave. Ele conta que o centro já marcou mais de 140.000 aves. E a média de 15.000 ao ano, que vinha se verificando desde 1980, deu um salto no ano passado, quando esse número passou para 20.000. Zuquim atribui o crescimento ao fato de ter aumentado o número de biólogos que ali trabalham. São seis ao todo.

Além disso, a entidade conta com a colaboração de 305 anilhadores cadastrados não só no Brasil mas também no exterior. O retorno desse trabalho é medido pelo número de anilhas recuperadas: 1,5% do total de aves artilhadas. As recuperações ocorrem principalmente, no Nordeste e no Sul do país e esses são também os locais onde mais se marcam aves. O Cemave promove cursos de anilhamento para pesquisadores e cadastra anilhadores em todo o território nacional.

Para maiores informações basta escrever para a Caixa Postal, 04/034, CEP 70312, Brasília, Distrito Federal. Esse endereço também vale para avisar o centro, caso você recupere um anel. Dessa maneira, você estará contribuindo para a preservação da espécie e a proteção de um fenômeno biológico que está ameaçado pela ação predatória do homem.

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