Notre Dame: como a reforma da catedral acelerou pesquisas científicas
Dos escombros, centenas de pesquisadores se debruçaram para entender mais sobre o acervo da igreja e até sobre como era o clima na época em que ela foi construída. Confira.
Há cinco anos, a Catedral de Notre-Dame de Paris queimou em um incêndio que destruiu boa parte do cartão postal francês de 860 anos. O ponto turístico foi restaurado e, cinco anos após a tragédia, reabriu para a visita do público no último fim de semana. A reinauguração contou com a presença de autoridades de todo o mundo e foi descrita pelo presidente Emmanuel Macron como um “marco do orgulho francês”.
Enquanto a maioria dos visitantes e turistas se encanta com o telhado reconstruído ou o afinamento do órgão de oito mil tubos, poucos sabem do amplo empreendimento científico que ocorreu durante a reforma. Cerca de 175 cientistas de várias instituições se envolveram em pesquisas sobre o passado de Notre-Dame a partir de aspectos da catedral que não podiam ser observados antes do incêndio.
Logo após o fogo, uma comissão de cientistas foi convocada pelo Ministério da Cultura da França para inspecionar os danos e planejar um resgate. Os pesquisadores constataram que os impactos não haviam sido tão dramáticos para alguns patrimônios. Partes do mobiliário, pinturas, esculturas e até a coroa de espinhos que supostamente foi utilizada por Jesus durante a crucificação, por exemplo, foram preservados.
“O que importa não é tanto o teto e a abóbada, mas o santuário que eles protegem, e o coração de Notre Dame foi salvo”, disse Aline Magnien, diretora do Laboratório de Pesquisa de Monumentos Históricos (LRMH), em entrevista à Science em 2021.
Previsão do tempo retroativa
Entre as pesquisas, uma analisou alguns dos dez mil pedaços de madeira carbonizada da estrutura maciça da catedral. Os pesquisadores analisaram a concentração dos isótopos de estrôncio-88 e estrôncio-86, assim como os níveis de minerais absorvidos pelo carvalho utilizado na construção da catedral. A análise desse perfil mineral permite concluir a origem da madeira, que veio de uma área em forma de croissant ao redor de Notre-Dame. A descoberta, claro, ajudou na reconstrução: refazer o telhado, por exemplo, exigiu a madeira de mais de 1,5 mil carvalhos.
Não só: os pesquisadores também usaram esses pedaços de madeira carbonizada como uma cápsula do tempo para compreender as condições climáticas locais durante o Período Quente Medieval da Europa, que durou aproximadamente de 950 a 1250 d.C. (a construção de Notre Dame começou em 1163). Os padrões de crescimento das árvores nos Alpes fornecem um registro de temperatura desse período, mas há uma escassez de evidências da bacia de Paris, a área que ocupa grande parte da metade norte da França.
Ao comparar isótopos carbono-13 e oxigênio-18 da celulose das amostras de madeiras, duas cientistas geoquímicas puderam analisar as flutuações de temperatura e umidade. Ao combinar os dados com os de duas abadias próximas a Paris, construídas na mesma época que a Notre Dame, as pesquisadoras conseguiram traçar um quadro das condições climáticas em um período de duzentos anos. Surpreendentemente, a região de Paris não era tão quente quanto se pensava a partir dos dados obtidos das árvores alpinas. Agora, resta descobrir por quê.
A ciência que nasceu das chamas
Algumas equipes recuperaram materiais de pedra e metal do interior da catedral, trabalhando com roupas de proteção para se protegerem dos chamados depósitos amarelados, ricos em chumbo. Embora o fogo tenha tornado impossível reciclar esses materiais, eles ainda foram utilizados para compreender melhor a estrutura original de Notre Dame e guiar a restauração.
As pedras recuperadas do teto, por exemplo, foram remontadas para obter novas informações sobre suas propriedades mecânicas. Com o conhecimento de como funcionava a estrutura que ficou de pé por mais de oito séculos, os arquitetos responsáveis pela reconstrução da catedral tentaram garantir que as novas abóbadas tivessem uma tolerância às forças semelhantes às anteriores ao incêndio.
Outras pesquisas analisaram os possíveis efeitos do incêndio na saúde das pessoas em áreas afetadas, já que a destruição da catedral derreteu 285 toneladas de chumbo. Um dos estudos analisou a fumaça tóxica do incêndio que se espalhou em um aerossol amarelo por Paris, embora um estudo de 2021 já tivesse apontado que o incêndio não aumentou os níveis de chumbo no sangue de 1.222 crianças examinadas em áreas contaminadas.
Mesmo os cientistas que não estiveram envolvidos no esforço de restauração poderão em breve realizar suas próprias pesquisas sobre a catedral, graças à criação de um “gêmeo digital” de Notre Dame. O recurso inclui mais de 1 milhão de fotos e mais de 5 mil digitalizações em 3D de tudo que foi encontrado dentro da catedral, inclusive no subsolo.
O arquivo também abrigará os dados gerados por estudos de várias áreas do conhecimento. Livio De Luca, diretor de pesquisa da agência nacional de pesquisa francesa CNRS, a maior agência de ciência básica da Europa, é quem lidera esses esforços. Segundo De Luca, em entrevista à Science, o gêmeo digital de Notre Dame será aberto à comunidade internacional de pesquisa em 2025 para “contribuir para o avanço da ciência do patrimônio como um campo posicionado de forma única para unir disciplinas e conectar passado, presente e futuro”.