O Brasil precisa respeitar (e remunerar melhor) seus cientistas
“Bolsista não é nada no Brasil, hoje. Não tem férias, não tem 13º salário e não pode contar o período de pós-graduação no momento de se aposentar”
Abílio Neves, presidente da Capes, enviou uma carta ao ministro da Educação, Rossieli Soares da Silva, no dia 2 de agosto. Ele informava que, caso o corte de orçamento previsto pelo governo federal para o próximo ano se concretizasse, o dinheiro para pagar as bolsas de 93 mil alunos de mestrado e doutorado acabaria em agosto de 2019. A Capes – cuja sigla significa Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Ensino Superior – é um dos órgãos federais que financia a pós-graduação de universidades públicas brasileiras (o outro é o CNPq). A repercussão foi tão negativa que, já no dia seguinte, o presidente Michel Temer garantiu à imprensa que preservaria a verba. O susto passou, mas a questão ficou no ar: afinal, quem são os tais bolsistas? E, se são alunos, por que são pagos?
Comecemos pelo básico: bolsista é um sinônimo de cientista em começo de carreira (às vezes, nem tão no começo assim: quem recebe uma bolsa de pós-doutorado em geral já é pesquisador há quase uma década). A tal bolsa, apesar do nome, é o salário desse cientista. Salário que não é dos maiores, que fique claro: R$ 1,5 mil durante o mestrado, R$ 2,2 mil durante o doutorado. Os dois valores estão há 5 anos sem nenhum reajuste (nenhum mesmo, nem inflação). Em janeiro de 1995, a bolsa de mestrado era de exatamente R$ 724,52. Se ela tivesse sido reajustada de acordo com a inflação, estaria em R$ 3.276,74 em 2016. E isso quando há bolsa: nem todo pós-graduando consegue uma.
“As pessoas acham que nós só estudamos, não entendem que é o nosso trabalho. Bolsista não é nada no Brasil, hoje. Não tem férias, não tem 13º salário e não pode contar o período de pós-graduação no momento de se aposentar”, diz Franciele Soares, do terceiro ano do doutorado em química na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Sua pesquisa consiste em buscar remédios para o tratamento do Alzheimer – o que ela faz, portanto, por pouco mais de 2 salários minímos.
Franciele Soares, doutoranda em química da UFRGS, busca novos remédios para o tratamento do Alzheimer – o que ela faz por pouco mais de 2 salários minímos.
A remuneração é tão baixa que, a partir de 2010, os bolsistas federais foram autorizados a ter uma fonte de renda paralela. Mas ela precisa se enquadrar em critérios muito específicos: o emprego tem que ser na área de pesquisa do aluno, o salário não pode ser mais alto que a bolsa, e o orientador da pesquisa precisa autorizar a carteira assinada.
Pouquíssimos pesquisadores conseguem empregos que se enquadram nessas exigências. E os que conseguem dificilmente teriam tempo de exercer a atividade paralela. Afinal, vamos reforçar: a rotina no laboratório já é de período integral, 8 ou 10 horas diárias.
“Eu acho que, se as instituições de fomento não dão conta, a solução imediata seria adotar um regime de não-exclusividade”, diz a geóloga Renata Schaan, mestre pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e especialista em preservação de meteoritos. “Hoje já ocorrem muitos atrasos por falta de verba”. Ela fala por experiência própria: ficou sem bolsa entre março e novembro de 2016, e nunca foi ressarcida. Não é só a vida pessoal dos pesquisadores que é afetada: “equipamentos estragam e levam meses para serem consertados. Falta material e falta verba para atividades de campo, que são muito frequentes na minha área”.
Depressão pós-paper
O objetivo final de uma pós é apresentar uma tese ou dissertação. Mas os artigos científicos que você publica ao longo do caminho, com resultados parciais, são igualmente importantes.
É o impacto deles (por exemplo, o número de vezes que são citados por outros pesquisadores) que define a reputação de alguém no meio científico.
“No programa do qual eu faço parte são exigidos dois artigos científicos”, explica Soares. “Eles são o mínimo para poder defender a tese e receber o diploma de doutorado. Sem artigo, não há defesa.” Na prática, porém, quem se contentar só com os dois artigos obrigatórios fica para titia. Em um concurso recente, um candidato a bolsa de pós-doutorado que emplacou seis artigos ficou apenas com o sexto lugar. O primeiro tinha dez.
“Se você não publica, acaba sendo passado para trás”, resume a química. “No ritmo que a coisa anda, a quantidade de alunos com depressão e com ansiedade, tomando remédios fortíssimos para conseguir sair de casa, só tende a aumentar. Sei de grupos aqui na UFRGS em que todos os alunos tiveram ou têm algum problema de depressão ou ansiedade.”
Futuro incerto
Depois que um pesquisador termina o doutorado (e, de preferência, faz alguns pós-doutorados, inclusive no exterior), ele pode prestar concurso para um dos únicos cargos públicos que garante estabilidade e um salário razoável para um cientista: o de professor universitário – que, vale lembrar, também é cientista.
Mas não é tão simples assim. Por exemplo: segundo a própria USP, a maior universidade do país, o número de professores efetivos trabalhando lá caiu de 6.137 em 2014 para 5.796 no começo deste ano. Uma redução de 341 professores, ou 5,9% do total. Mas mesmo as instituições públicas que contratam mais professores do que perdem não são suficientes para absorver toda a mão de obra. Já o setor privado normalmente não está disposto a contratar alguém sem experiência CLT, mesmo que tenha doutorado.
“Como você vai ter experiência profissional se nem um estágio você pode fazer?”, questiona o biólogo Marcos Dums. Ele deixou o emprego no Paraná para fazer mestrado em taxonomia – a ciência que identifica e classifica os seres vivos. Hoje vive em Porto Alegre, e a bolsa não é suficiente para as despesas. “Os créditos de aula que precisamos cumprir poderiam ser distribuídos em horários flexíveis, e as empresas também poderiam ser mais flexíveis.”
Resumo da ópera? Após 10 anos vivendo de bolsa, quem termina o doutorado ou até o pós-doutorado não está em uma posição melhor do que um recém-graduado no mercado de trabalho. Pelo contrário: o tempo passado na universidade pode ser um tiro no pé, visto com maus olhos nos processos seletivos. Desse jeito, fica difícil convencer alguém a abraçar a carreira acadêmica. “Tanto a sociedade quanto o governo têm que parar de nos tratar como estudantes, como se essa bolsa fosse um benefício”, diz a mestranda Fernanda Almerón, da UFRGS. “Na verdade, nós fazemos um trabalho árduo para o país, e devemos ser tratados como trabalhadores”.