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O homem que matou a Eva: origem africana da espécie é incerta

Quando todos já tinham certeza de que o homem moderno havia surgido na África, o biólogo americano mostra que essa hipótese pode estar errada e sugere: temos muito mais a ver com o Homo sapiens arcaico do que pensamos.

Por Da Redação Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 21 jan 2023, 18h01 - Publicado em 31 ago 1993, 22h00

Paulo D´Amaro

Há seis anos, um grupo de biólogos moleculares da Universidade da Califórnia, em Berkeley, fez uma descoberta que parecia pôr fim à longa polêmica sobre a origem do homem moderno. Os pesquisadores alimentaram o computador com dados do DNA mitocondrial de várias populações geográfica e cronologicamente distintas e conseguiram montar uma árvore genealógica do Homo sapiens sapiens.

A tão procurada raiz estava na África, o que muitos já supunham havia duas décadas, em razão dos antiqüíssimos fósseis achados naquele continente. Parecia sepultada a outra hipótese possível, de que o homem moderno poderia ter surgido simultaneamente em vários lugares do mundo. Só que, em 1991, um americano alto, de fala mansa e jeito de lorde inglês, resolveu acabar com a alegria dos seus colegas de Berkeley.

O biólogo Alan Templeton, um especialista em evolução da Universidade Washington, de St. Louis, descobriu erros computacionais grosseiros no trabalho deles, destruindo qualquer certeza sobre a origem do ser humano moderno. Ficou famoso, e passou a ser chamado nos bastidores acadêmicos de “o homem que matou a Eva africana”.

Alan Templeton esteve no Brasil em julho último, trazido pela Fundação de Apoio à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) para um ciclo de palestras no Instituto de Biociências da USP. Ele falou à Superinteressante sobre suas descobertas a respeito das origens do homem.

SUPER: Nos anos 80, a hipótese de que a origem do homem é única e se encontra na África ganhou força entre os estudiosos, principalmente após as revelações genéticas de Berkeley. Mas parece que o senhor está jogando tudo isso por água abaixo. Por que a hipótese da origem africana do homem não está correta?

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Templeton: Por um simples, porém importante, erro de computador. Embora os biólogos de Berkeley tenham usado um programa especialmente desenvolvido para montar árvores genealógicas a partir do DNA, o problema é que eles não perceberam que nesse tipo de análise genética a ordem de entrada dos dados altera o resultado final. E no caso dos estudos moleculares humanos isso se torna mais dramático ainda. Os dados são tão complexos que é praticamente impossível obter uma única árvore genealógica correta, pois não existe computador capaz de modelar todas as possibilidades.

SUPER: Ou seja, através do computador, jamais chegaremos à origem genealógica do homem?

Templeton: Não é isso. Mas o computador por si só não pode nos dar a resposta, apenas ajudar a construir uma hipótese. Na prática, o correto é alimentá-lo com os mesmos dados moleculares do DNA em centenas, se possível milhares, de ordens diferentes. A cada rodada teremos uma árvore diversa. Mas, ao longo do processo, alguns ramos vão se repetir mais vezes do que outros. Cabe ao cientista identificar esses ramos e investigá-los estatisticamente. É uma tarefa demorada.

SUPER: E qual foi exatamente o erro do estudo de Berkeley?

Templeton: O erro foi não levar em consideração essa infinidade de alternativas. O programa usado por eles é perfeito, mas somente quando aplicado na análise de seres mais simples. No caso da complexidade do DNA humano, a máquina simplesmente não consegue alcançar todas as possibilidades e, com isso, acaba gerando resultados ilusórios. Eu, por exemplo, usei o mesmo programa, no mesmo tipo de computador, com os mesmos dados moleculares do DNA que me foram cordialmente enviados por Mark Stoneking (um dos biólogos de Berkeley). Pois bem, apenas mudando a ordem dos dados, eu obtive uma origem asiática para o homem. Se você repetir o processo aleatoriamente, certamente chegará também a origens européias ou a outros resultados.

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SUPER: Então a falha foi usar um programa de computador inadequado?

Templeton: Não somente. O ponto mais crítico desse estudo é que o DNA usado nas amostras analisadas foi retirado das mitocôndrias, e não do núcleo das células humanas. Os cientistas fazem isso por conveniência: o DNA da mitocôndria é menor e não se recombina, como ocorre com o do núcleo. Só que ninguém provou até agora que o DNA da mitocôndria de um homem seja capaz de refletir a árvore genealógica de uma população ou de toda a humanidade. Eles simplesmente assumiram isso como uma verdade. Um procedimento altamente questionável.

SUPER: Com isso, o senhor diria que a hipótese da “Eva africana” está definitivamente morta?

Templeton: Não. Quero deixar bem claro que nunca neguei que o homem moderno possa ter nascido na África, há 200 000 anos. Só que, geneticamente falando, não temos certeza disso, pois o trabalho dos pesquisadores de Berkeley, que era a maior evidência nesse sentido, está incorreto.

SUPER: O computador falhou em provar a origem africana do homem moderno, mas os fósseis ainda indicam isso. O senhor acredita que um dia essa hipótese possa ser provada?

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Templeton: Sinceramente, não, pois ela supõe coisas muito dramáticas. Diz que o humano moderno se espalhou pela Ásia e Europa, há 100 000 anos, acarretando a extinção do Homo sapiens arcaico, que então reinava nesses lugares. Ou seja, que o homem moderno simplesmente matou o arcaico e o substituiu. Para mim, essa é uma explicação difícil de engolir. Além do que, meus estudos particulares do DNA têm levado a crer que houve cruzamento entre as diversas populações.

SUPER: Como então teria desaparecido o sapiens arcaico?

Templeton: Justamente porque cruzou com o Homo sapiens moderno. Todas as hipóteses sobre a evolução de nossa espécie têm assumido que o homem, seja erectus ou sapiens, sempre se desenvolveu em isolamento geográfico total; africanos, asiáticos e europeus teriam evoluído paralelamente, e, quando se encontravam, entravam em conflito. Eu, no entanto, creio que tenha havido integração. Com o passar dos anos, de alguma forma sobreviveram apenas as características do que viria a ser o homem moderno. A hipótese vigente é a do desaparecimento pela guerra. A minha é a do desaparecimento pelo amor.

SUPER: Na sua opinião, é mais provável que o homem moderno tenha surgido em vários lugares ao mesmo tempo?

Templeton: Sim, mas não da forma como os adeptos da hipótese da multirregionalidade dizem. O homem não apareceu independente e isoladamente na Ásia, África e Europa. Na minha opinião, desde o período do Homo erectus, há um milhão de anos, as populações dos três continentes já tinham contato genético. Eram diferentes mas formavam uma única grande linhagem, que se cruzava vez por outra. O estudo do DNA me permitiu descobrir algumas expansões genéticas muito significativas, sobretudo de uma região para outra da Europa.

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SUPER: Quando o senhor diz “expansão genética”, isso significa migração de pessoas de uma área para outra?

Templeton: Não necessariamente. As populações não precisam andar grandes distâncias para levar um gene. Basta que alguns poucos indivíduos entrem em contato com outra população antes isolada e os descendentes desses cruzamentos acabarão disseminando seus genes ao longo dos anos, séculos ou milênios. Um gene originário de populações africanas pode ter chegado aos confins da Ásia, sem que qualquer indivíduo tenha viajado até lá. Quem se move são os genes, não as pessoas. A isso chamamos de gene flow [fluxo gênico].

SUPER: Então pode ter ocorrido o contrário também?

Templeton: É verdade. Na minha opinião, houve um vai e vem de conteúdo genético em todas as direções possíveis.

SUPER: Por que então existem tantas diferenças, por exemplo, entre um africano e um europeu do norte?

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Templeton: As condições geográficas certamente causaram essas diferenças. Mas, do ponto de vista estritamente biológico, as diferenças de cor, estatura e feições são meros detalhes. Recentemente, tenho estudado a evolução de uma espécie de lagarto americano cujos indivíduos apresentam diferenças muito maiores que as existentes entre os humanos. E não é preciso mudar de continente para ver essas diferenças; basta andar 5 quilômetros no deserto. Só que os lagartos não se importam se seus vizinhos são pretos ou brancos.

Para saber mais:

Nasce o homem

(SUPER número 9, ano 2)

O dia em que o homem nasceu

(SUPER número 2, ano 4)

Está o homem sujeito às leis da evolução

(SUPER número 10, ano 5)

O menino de Turkana

(SUPER número 10, ano 7)

O retrato do passado

(SUPER número 7, ano 8)

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