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O mundo sem petróleo

Esta década marca o início do declínio da era do petróleo. Não porque ele vá acabar amanhã, mas porque outras fontes de energia, mais limpas e mais baratas, vão tomar o seu lugar

Por Flávio Dieguez
Atualizado em 26 set 2017, 17h38 - Publicado em 1 Maio 2001, 01h00

Durante praticamente 10 000 anos, desde o início da civilização, a humanidade se contentou em viver consumindo, em média, míseros 20 watts de energia por pessoa – o equivalente, hoje, a manter acesa 24 horas por dia uma lampadinha de árvore de Natal.

Esse estado de contrição só se alterou em 1859 com a perfuração do primeiro poço de petróleo pelo aventureiro americano Edwin Drake, na cidade de Titusville, Estado da Pensilvânia, Estados Unidos. De lá para cá, o mundo passou a esbanjar energia e o consumo per capita cresceu de maneira explosiva. Em poucas décadas, havia alcançado um patamar dezenas de vezes maior que o dos séculos anteriores até atingir a marca atual, de 2 000 watts por pessoa.

O petróleo nos deu isso. Só que, daqui para a frente, vamos ter que nos virar sem ele. Não porque ele vá acabar no futuro próximo – os especialistas garantem que as reservas mundiais são mais do que suficientes para satisfazer as necessidades do planeta por até 75 anos. Mas porque continuar usando o combustível que move a economia mundial com essa voracidade faz mal à saúde da Terra.

“Temos gasolina para queimar à vontade ao longo de todo o século XXI”, diz o escritor e pesquisador americano Mark Hertsgaard, da Universidade Johns Hopkins. “Mas, se fizermos isso, também vamos queimar o planeta.” Ele se refere, naturalmente, ao aquecimento global provocado pelo gás carbônico e por outros gases lançados na atmosfera pela combustão de derivados de petróleo. “Hoje, o país que mais contribui para o aquecimento global são os Estados Unidos, justamente os mais desenvolvidos”, afirma Hertsgaard.

Até as empresas que teriam mais dificuldade para se adaptar a um mundo sem petróleo estão mudando de postura. Há poucos anos, por exemplo, a indústria automobilística tenderia a descartar a análise de Hertsgaard. Não mais, diz o cientista político americano John Holdren, da Universidade Harvard. “O desafio é imenso, mas há um consenso crescente de que é preciso diminuir a nossa dependência em relação ao petróleo.”

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A mudança no mundo empresarial tornou-se pública apenas no ano passado, quando duas gigantes do setor, a British Petroleum e a Shell, declararam que estão se preparando para enfrentar os problemas ambientais causados pelo petróleo. E não são as únicas – de acordo com a revista inglesa The Economist, empresas como a Exxon “continuam, de público, a ridicularizar o aquecimento global, mas, na surdina, estão investindo pesado em novas tecnologias”.

E quais são as alternativas? Tudo indica, atualmente, que o grande sucessor do petróleo é o hidrogênio, o mais simples de todos os elementos químicos e, de longe, o mais abundante no ambiente. Ele poderia ser extraído da água do mar, entre outras possibilidades, para substituir o petróleo com vantagens imensas. Primeiro, por ser uma fonte inesgotável de energia. Segundo, porque “queimar”, no dicionário da química, é sinônimo de “combinar com oxigênio”. O que gera, de novo, água – único resíduo deixado pela queima do hidrogênio. A energia liberada nesse processo é transformada em eletricidade dentro de um gerador desenvolvido especialmente para esse fim, batizado de célula de combustível. A eletricidade, por sua vez, coloca, por exemplo, um carro em funcionamento. “Acredito que as células de combustível vão, afinal, acabar com o reinado de 100 anos do motor a explosão”, afirmou no ano passado o presidente da Ford, Bill Ford.

Atualmente, todos os grandes nomes da indústria automobilística têm protótipos de carros movidos a hidrogênio em estágio avançado de testes. As pioneiras foram a DaimlerChrysler e a Ford. Os investimentos somados das duas, em seus projetos, já estão na casa do bilhão de dólares e o plano é gastar outro tanto para lançar os novos modelos até 2004. E é bom os engenheiros cumprirem o cronograma porque as fabricantes japonesas, apesar de terem largado um pouco atrás nessa corrida, prometem apertar o passo na reta final. Seus carros movidos a hidrogênio podem muito bem chegar às revendedoras antes de 2004.

A Toyota, por exemplo, fez sucesso nas feiras do ano passado exibindo o Prius, que ainda é apenas um híbrido capaz de tirar potência de duas fontes ao mesmo tempo, a gasolina e o hidrogênio. Poucos especialistas acreditam que os híbridos tenham chance de entrar no mercado para valer, no futuro. Apesar disso, o Prius confirma as expectativas positivas criadas anteriormente pelo Necar, nome do carro experimental da DaimlerChrysler. “Uma boa parcela dos 60 milhões de carros que a indústria pretende colocar nas ruas em 2010 funcionará com hidrogênio”, diz o analista de inovações tecnológicas americano Robert Winters, da consultoria Bear Sterns.

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Dois fatores contribuíram para a ascenção espetacular do hidrogênio como combustível. O mais importante, do ponto de vista tecnológico, foi a possibilidade de comprimir grandes quantidades do elemento dentro de tanques relativamente compactos, que não roubam espaço dos passageiros. É o que acontece, atualmente, com os carros elétricos tradicionais, movidos a bateria. Um sonho, desde o século XIX, eles não conseguem superar o problema do espaço e do peso das baterias, assim como o da demora para recarregar e dar a partida.

Já nos carros a hidrogênio, a ignição é rápida e a célula de combustível alcançou, há dois anos, o tamanho usual dos tanques de gasolina. Para o historiador americano Robert Casey, do Museu Henry Ford, nos Estados Unidos, “as baterias do carro elétrico dificilmente poderão competir, em tamanho, com a célula de combustível”. Outro trunfo do hidrogênio é que, embora o motor a explosão tenha passado por uma evolução extraordinária nas últimas três décadas – hoje ele emite 20 vezes menos poluentes do que nos anos 70 –, está ficando difícil aprimorá-lo ainda mais. Isso não significa que o hidrogênio já tenha superado todos os obstáculos: resta, acima de tudo, resolver o desafio da sua produção – não adianta nada encher o tanque dos carros com um combustível perfeitamente limpo se, para produzi-lo, for preciso queimar gasolina ou carvão mineral.

Por enquanto, o hidrogênio empregado nos carros experimentais tem sido obtido de substâncias como o álcool, por meio de reações químicas não muito eficientes. É um meio de empurrar o problema para o futuro, quando se espera descobrir a fórmula ideal – que é extrair o hidrogênio diretamente da água, de preferência com a ajuda de energia solar. Não há pressa, dizem os especialistas. Até porque o petróleo não sairá de cena tão cedo e haverá tempo e idéias de sobra para pensar num meio simples e eficiente de gerar hidrogênio.

Nesse meio tempo, o petróleo perderia gradualmente terreno – como já vem fazendo há tempos em relação ao gás natural. Trata-se também de um composto de carbono, como o petróleo, e também é extraído do subsolo. A queima do gás natural, porém, gera dez vezes menos poluentes. Assim, desde os anos 70 a parcela do petróleo no consumo global de energia caiu de 60% para 40% enquanto a do gás natural subiu de 10% para 20%.

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“Essa parcela tende a crescer outro tanto nos próximos dez ou 15 anos”, afirma o geofísico francês Jean Laherrère, consultor de empresas independente. Essa ampliação reduzirá a fatia do petróleo – talvez em até 5%, segundo Laherrère – e a do carvão mineral, que hoje responde por 23% do consumo mundial de energia. É possível que o gás natural também fique com alguns pontos dos 7% que as centrais nucleares detêm atualmente. Aos poucos, as 437 usinas existentes serão desativadas, nos próximos anos, por segurança. O átomo parece ser indomável. Talvez no futuro os tecnólogos aprendam a colocar rédea nesse manancial imenso de potência e força.

Em compensação, o passado ressurge rejuvenescido na forma dos moinhos de vento – agora dotados de imensas hélices metálicas, desenhados de acordo com todos os requintes da aerodinâmica e controlados por computador para maximizar a captação da força do vento. Os moinhos saíram praticamente do zero, em 1970, e têm agora 1,5% do consumo mundial de energia. Não é pouco, se levarmos em conta que sua demanda vem crescendo à taxa de 30% ao ano. Também é preciso considerar que o vento é uma fonte de força instável, que oscila de maneira imprevisível, mesmo onde tem potência suficiente para justificar a instalação de geradores eólicos. Por conseguirem superar todas essas desvantagens e considerando o fato de serem ecologicamente limpíssimos, tudo indica que os moinhos de vento terão muita importância no futuro.

Outra promessa é a energia solar. Com uma fração minúscula no bolo energético (menos de 0,5%), ela também tende a crescer. Apesar de ser muito inconstante e de não ter força ainda para mover carros, o Sol poderá ser usado ao lado das hidrelétricas e termelétricas para gerar eletricidade. Prova disso é o “satélite-usina” que o Japão pretende lançar ao espaço com o objetivo de coletar luz do Sol e enviá-la para baixo na forma de eletricidade.

Dito isso, só os príncipes árabes – donos de 40% das reservas de petróleo do mundo – duvidam que estamos assistindo ao declínio do ouro negro. Claro, ele não sairá de cena sem que se faça uma complicadíssima reforma econômica. A energia é, sem comparação, a indústria mais importante do planeta, não só porque movimenta perto de 1/5 do Produto Interno Bruto mundial (avaliado em cerca de 40 trilhões de dólares), mas também porque funciona sob controle rigoroso do Estado, seja qual for o país.

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Que essa agenda não será fácil de cumprir vê-se pela confusão em que se meteu o Estado americano da Califórnia, justamente onde a transição para as energias limpas está mais avançada, tanto do ponto de vista tecnológico quanto do econômico. Lá, metade da energia elétrica é gerada por gás natural em termelétricas e sua produção foi entregue à iniciativa privada a partir do final dos anos 80. Mas as mudanças foram feitas de maneira apressada. Não se levou em conta, por exemplo, que, por estar em um período de transição, a oferta e a demanda de energia poderiam oscilar de maneira imprevisível.

Como resultado, o Estado foi surpreendido, desde meados do ano passado, por altas repentinas no preço da eletricidade e teve que racionar o consumo para não estourar as contas públicas. Mesmo assim, não pôde evitar uma série de blecaute no início deste ano. A sinuca ficou ainda mais apertada porque as empresas geradoras não se sentiram obrigadas, nos últimos anos, a investir na construção de novas usinas. Assim, a produção de eletricidade estagnou no patamar em que estava há dez anos, apesar de a economia ter crescido 34% no período.

Portanto, a transição do petróleo para novas fontes de energia será tortuosa e pontuada por idas e vindas complicadas. Nos próximos anos, os países pobres, com certeza, vão se tornar um fator de tensão permanente, porque dependem, muito mais do que os ricos, do petróleo para empurrar suas economias. Para ter uma idéia, se, por algum passe de mágica, o consumo dos países em desenvolvimento se igualasse de imediato ao dos desenvolvidos, o consumo mundial de energia ficaria cinco vezes maior da noite para o dia. Portanto, será preciso facilitar o acesso dos países em desenvolvimento às inovações energéticas por meio de uma maior cooperação internacional. O êxito da saudável conspiração ambiental contra o petróleo depende disso.

Para saber mais

Na livraria: Earth Odyssey, Mark Hertsgaard, Broadway Books, Derry, EUA, 1999

The Electric Vehicle and the Burden of History, David Kirsh, Rutgers University Press, New Brunswick, EUA, 2000

fdieguez@falso.com.br

Energia desigual

Os países desenvolvidos consomem, hoje, quase metade de toda a energia que se produz. Como o consumo do resto do mundo tende a crescer, os problemas de abastecimento poderão se agravar muito nas próximas décadas

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