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O Nome dos Números

Pseudociência: a numerologia, que atribui poderes mágicos aos algarismos, é uma crença tão antiga como o ser humano.

Por Da Redação Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 31 out 2016, 18h48 - Publicado em 31 jul 1989, 22h00

Lúcia Helena de Oliveira

Ser o número 1 nisto ou naquilo, no fundo é o que a maioria das pessoas sempre quer. Mas querer não é poder. Quem não pode trate de mudar de nome ou vá comemorar o aniversário em outro dia. Ao menos, é a solução radical que os numerologistas encontram para todo e qualquer problema: relacionando as letras do alfabeto a algarismos, eles calculam todos os números que são parte da vida de uma pessoa. Então, através de análises complicadas, fazem uma série de combinações, subtraem letras aqui, somam letras acolá, resultando desse coquetel de cifras um novo nome, graças ao qual o inocente usuário espera que – 1, 2, 3, já – a vida, como num passe de mágica, fique cem vezes melhor.

Para a numerologia, que vem contabilizando um número crescente de adeptos, cada algarismo tem significados próprios, positivos e negativos. As letras, por sua vez, são enumeradas de 1 a 9 conforme a ordem alfabética: assim o A tem valor igual a 1; o B, igual a 2; o C, igual a 3; o I, igual a 9; o J, igual a 1 novamente, sempre reiniciando o ciclo, até a última letra, Z. Quando a soma dos valores de um nome ou de uma data resulta em mais de um algarismo, os numerologistas fazem uma redução: por exemplo, 23 transforma-se em 5, porque equivale a 2 mais 3.

Nos receituários dos praticantes dessa modalidade de esporte místico, para conhecer as características da personalidade manda-se somar as letras do nome completo; já os desejos seriam revelados pela soma das vogais; a aparência seria o resultado das consoantes somadas; a data de aniversário representaria o destino. E assim por diante, são tiradas um sem-número de conclusões. No final das contas, essa nova mania é, talvez, uma das mais velhas fascinações do homem – brincar com os números que ele próprio criou atribuindo-lhes poderes e significados muito além da mera expressão de certas quantidades.

É bem verdade que o homem primitivo se veria diante de um problema insolúvel se tivesse de responder quantos lados tem um quadrado. Pois, como os antropólogos descobriram, para ele só havia o 1 e o 2, sendo o 3 literalmente demais. Portanto, desde as sociedades antigas, a idéia de 3 é a do infinito – daí, quem sabe, tenha surgido a trindade Pai, Filho e Espírito Santo do cristianismo ou o ato de bater três vezes na madeira, como fazem os supersticiosos ao querer afastar algo para sempre. Foi na Grécia, no século VI a.C., porém, que surgiu um verdadeiro encantamento pelos números, formando-se até uma sociedade secreta, em que os iniciados chegavam a fazer voto de silêncio por vários anos – a escola pitagórica.

“Pitágoras ( que viveu entre 580 a 500 a.C., aproximadamente) ficou conhecido como matemático, mas, antes de tudo, era um místico”, define o uruguaio César Polcino Milies, que leciona História da Matemática na Universidade de São Paulo. Muito do que hoje é para os cientistas a teoria dos números – que estuda as suas propriedades – foram conceitos que Pitágoras criou, na tentativa ao mesmo tempo religiosa e filosófica de compreender o Universo.

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Para os pitagóricos, cada número tinha atributos que se comunicavam às coisas, através das medidas de suas dimensões, por exemplo. E, como “tudo é número”- o lema de Pitágoras -, tudo era animado e divino. O 1, por ser imutável, seria a razão; o 2, que pode mudar, porque dividido por si mesmo dá 1 e multiplicado dá 4, seria a opinião; o 3 seria a criatividade que leva à expansão, porque é o primeiro número que multiplicado por si mesmo dá um resultado – 9 – maior do que somado, 6; a justiça seria o 4, pois o quadrado tem quatro lados iguais.

Ao descobrir a raiz quadrada de 2, Pitágoras achou que tinha encontrado um número maldito, que não era criação dos deuses porque parecia inexistir na natureza. Diz a lenda que os discípulos do matemático que contassem esse segredo eram condenados à morte. Hoje, ninguém pensaria em usar um amuleto contra a maldição do número 1,4142135. Mas não falta quem prefira se precaver em relação ao 13, azarento de marca maior, abolido das fileiras numeradas de teatros e até de aviões em alguns países. Na hora das refeições, tremem os supersticiosos, o 13 produz os efeitos mais devastadores: se esse for o número de pessoas à mesa, uma delas irá certamente morrer.

A bobagem já dura quase 2 mil anos, pois se acredita que tenha surgido quando Cristo se reuniu aos doze discípulos na Última Ceia, antes de morrer na cruz. A Bíblia, por sinal, é fonte de muitos números místicos, como o 7 das virtudes e também dos pecados capitais ou ainda o 10, dos mandamentos. Interpretando seus textos, um teólogo alemão do século XVI, Peter Bungus, consumiu mais de seiscentas das setecentas páginas que escreveu sobre numerologia para defender a tese de que o número do demônio era 666. Como bom católico, Bungus aproveitou para concluir que o nome do líder de Reforma Protestante, Martinho Lutero (1483-1546) tinha o mesmo valor. Lutero, que não desdenhava uma boa querela, respondeu que 666 era a duração do regime papal, alegrando-se com a idéia de que o papado estaria no fim. Essa briga do diabo é exemplo do uso aleatório da chamada numerologia cabalística, uma invenção dos antigos hebreus para interpretar textos sagrados, mediante a associação de letras e números.

Além do fascínio pitagórico pelos números, a numerologia que hoje se pratica em consultórios – onde um diagnóstico de personalidade ou uma descrição de futuro saía, em fins de maio, por cerca de 100 cruzados novos – também foi influenciada pela cabala.

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Cabalisticamente, frases com o mesmo número de palavras do mesmo valor numérico, embora não pareçam ter correlação, podem ser interpretadas juntas. Assim, quando a Bíblia menciona que Eleazar reuniu 318 soldados para salvar Lot, sobrinho do patriarca Abraão, o tamanho da tropa pôde chamar a atenção por ser tão preciso. “É que o valor numérico de Eleazar é 318”, explica César Polcino, que apesar de matemático se interessa por misticismo e até acredita que cada número é uma espécie de força – confissão um tanto herética na sala onde ele trabalha, repleta de severos livros de Álgebra.

De seu lado, embora admita conhecer pouco a nova numerologia, o carioca Nilton Bonder não tem a mesma fé de que por trás de seu nome – cuja soma é 4 – existam números responsáveis, por exemplo, por seu gosto pelo surfe. Sua opinião é alicerçada pelo conhecimento do judaísmo que sua função de rabino exige. “A numerologia da cabala serve para inúmeros jogos de interpretação”, nota ele. “Mas tudo é feito dentro de um contexto limitado, como os versículos bíblicos. Então, se brinco com números e chego a outro número, isso tem de fazer sentido no texto.” Ele cita o exemplo da palavra crianças em hebraico (ieladim), cujo valor é a soma de pai (aba) e mãe (íma) nessa língua, como se também aí a união do casal gerasse filhos.

“Mas extrapolar a técnica para todo o universo de um indivíduo é criar um jogo de interpretações infinito”, diz Bonder. Certamente não é a opinião dos numerologistas, como o carioca João Bosco Cavalero Viegas, judeu convertido, que começou a estudar cabala há 23 anos, graças ao bisavô materno, um espanhol maçom que lhe deixou uma biblioteca de herança. Bosco já foi jornalista e produtor de moda. Hoje, porém, dá cursos e atende clientes em busca de mapas numerológicos.

“Sei quem me procura de cara”, comenta como propaganda de suas habilidades, referindo-se, é claro, ao número da pessoa. Ele próprio, por exemplo, é 3 – daí justifica “fazer mil coisas ao mesmo tempo, falar várias línguas”. Embora garanta acertar no julgamento que faz dos clientes, o que Bosco lhe oferece são números com duas versões – uma, das qualidades que todos gostariam de possuir; outra, dos defeitos inerentes àquele algarismo. Há números, de acordo com ele, positivos apenas em certos casos. Exemplifica: “ O número 4 é ótimo para nome de loja, pois dá estabilidade financeira. Mas alguém com um nome 4 é estagnado”.

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O conceito de que números são forças e que os nomes – pelo fato de se associar a um algarismo – representam a união de tais forças é antigo na magia. Seu equivalente pode ser encontrado nos contos infantis, com seus sinsalabins, abre-te-sésamos e abracadabras – todas palavras dotadas de poderes mágicos. Bosco admite ser muito místico e aproveita qualquer ocasião – “até tomando um chope”- para divulgar a idéia de que o nome faz a pessoa e ainda imprime o seu destino, junto com a data do aniversário. Mesmo assim, evita rebatizar as pessoas – a última moda em misticismo aplicado, especialidade de outro numerologista carioca, Gilson Chveid Oen (nome verdadeiro).

Por sua causa, a cantora Sandra Sá hoje é Sandra de Sá, o compositor e cantor Jorge Ben virou Jorge Benjor. São exemplos de gente conhecida entre as quase 5 mil pessoas que, segundo Gilson, mudaram o nome após visitá-lo. Ele diz se identificar como numerologista “apenas para vender o meu peixe”. Então, o que Gilson faz? Sua resposta é que estuda o que chama arcanos cerebrais, de acordo com uma teoria de sua própria lavra que, compara sem corar, é “tão revolucionária quanto a da Relatividade”.

Durante dezessete anos esse ex-engenheiro diz ter estudado os símbolos que envolvem o ser humano nas diferentes culturas e depois passou a associar os mesmos símbolos a números de 0 a 9. “O cérebro faz isso, porque como o homem tem dez dedos aprendeu a raciocinar sobre essa base.” Dessa maneira, segundo ele, o homem está ligado ao 1 porque, em todas as versões sobre a sua origem, ele chegou antes da mulher. Mas as associações podem durar décadas ou milênios: “Se a mulher dominar o mundo, talvez após mil anos ela deixe de ser associada ao número 2 e passe a ser número 1”.

Para Gilson, todo pensamento, som ou imagem tocaria os arcanos cerebrais por suas letras assim como um pianista dedilha as teclas. Se a música em questão aparecer a toda hora, acabará fazendo parte da, digamos, trilha sonora de cada um. Em outras palavras, os estímulos que um nome provoca no cérebro acabariam sendo incorporados por ele.

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“São como mantras”, diz Gilson, fazendo uma analogia com a tradição hindu de entoar sons que teriam efeitos sobre o corpo e a mente. Um mantra negativo e “moderníssimo” é a palavra futebol, pronunciada em todas as esquinas. “Ela só mexe com arcanos emocionais, e é por isso que todos perdem a cabeça num jogo ou numa discussão sobre o assunto”, comenta. Mas o futebol brasileiro, de acordo com essa teoria, ainda se salva pela letra E, do arcano 5 do prazer – daí o seu espírito alegre. Em inglês a palavra não tem E e sim A (football), letra inexistente na versão portuguesa e que, segundo Gilson, é do arcano do individualismo – algo aparentemente incompatível com um esporte coletivo. Continuando nesses jogos, a natação soma o mesmo 9 da agressiva luta livre; idem tênis e hóquei, que somam 5.

Certamente, um numerologista justificaria as diferenças fazendo outras análises. Afinal, seu ganha-pão consiste justamente em montar e desmontar palavras, inverter o sentido de sílabas, fazer pirâmides numéricas somando os números dos nomes de dois em dois até restar um. Quem quiser chame isso de ciência. Já em relação à numerologia mística, que não se pretende ciência, é simples questão de fé. O homem é um criador de símbolos, algo que o distingue de todos os outros seres. Assim, quando o numerologista diz que o nome da pessoa que o consulta tem o mesmo número que chuva, maçã, cinza, verão, andorinha ou o que for, o cliente seguramente acabará fazendo uma associação e dará ao nome uma interpretação simbólica. Esta, de uma forma ou de outra, acabará fazendo sentido – porque todas as pessoas são um pouco feias, um pouco alegres, um pouco deprimidas, um pouco céticas, um pouco crédulas.

 

 

 

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