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O que é o paradoxo do Bootstrap, explorado em “Dark”

Pode uma coisa existir sem ser criada? Com ajuda de viagem no tempo, talvez. Entenda o conceito da física que dá base à série alemã.

Por Bruno Carbinatto
Atualizado em 19 abr 2024, 16h59 - Publicado em 26 jun 2020, 19h48

A terceira temporada de Dark estreou na madrugada de hoje (27), colocando fim à trilogia da produção alemã que, nos últimos 3 anos, ganhou bastante popularidade entre o público e a crítica e chegou a ser eleita a melhor série original da Netflix em votação popular do site Rotten Tomatoes. Um dos motivos que fez Dark se destacar foi seu roteiro extremamente complexo que envolve muita viagem no tempo, plot twists e até conceitos de física quântica que certamente confundem a cabeça até dos mais atentos.

Um desses conceitos científicos, que chega até a ser citado e explicado por personagens da série, é o do “Paradoxo do Bootstrap”. Bootstrap aqui se refere à expressão “pulling yourself up by your bootstraps“, algo como “puxar-se a si mesmo pela alças de suas botas” – algo fisicamente impossível. A frase se refere à lógica geral por trás do paradoxo da série: algo que influencia e dá origem a si mesmo. Não entendeu? A gente explica aqui – e a primeira parte do texto sequer contém spoilers de Dark.

Um ciclo sem início e nem fim

O paradoxo do Bootstrap basicamente diz que, em um cenário em que a viagem no tempo para o passado seja algo possível, um objeto pode existir sem nunca ter sido criado. Ficou confuso? É normal. Por isso mesmo o conceito é melhor exemplificado a partir de uma historinha.

Você recebe uma carta anônima contendo instruções para construir uma máquina do tempo – e seja lá por qual razão decide acreditar. Como a empreitada para desafiar as leis da física não é algo simples, você passa os próximos dez anos de sua vida trabalhando na construção da máquina. Quando finalmente termina e liga o aparelho, acaba viajando no tempo – para dez anos antes. Então você manda uma carta para si mesmo com as instruções de como construir uma máquina do tempo. E entende: quem te enviou a carta, dez anos antes, foi você mesmo, 10 anos mais velho e viajado no tempo. Ao enviar novamente as instruções para o seu “eu” mais jovem, você criou um ciclo.

A problemática: quem escreveu as instruções originalmente? O seu eu mais novo só descobre como viajar no tempo porque o seu eu mais velho entregou a carta para ele, e o seu eu mais velho só tem a carta porque, um dia, ele também recebeu de uma versão sua do futuro. A carta até existe espacialmente, mas o conteúdo dela, as instruções para construir a máquina do tempo, jamais foi criado. Veio do nada.

A lógica (ou a falta dela) se aplica a qualquer informação. Você viaja no tempo para o passado e encontra um Darwin jovem (geralmente usa-se Einstein para exemplificar, mas esse texto já tem física suficiente). Ele ainda não formulou sua famosa teoria da evolução, mas você conta para ele o que aprendeu na escola. O jovem Darwin fica impressionado e começa a estudar o tema, e anos mais tarde publica suas descobertas – que, no futuro, você aprende. Mas afinal, quem formulou a teoria, então? Você só sabe dela porque leu os escritos de Darwin, e Darwin só escreveu porque você contou tudo para ele. A teoria existe sem nunca ter sido criada por ninguém.

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O Paradoxo do Bootstrap é tão difícil de entrar em nossa mente porque altera nosso entendimento fundamental sobre o tempo. Na vida real, tudo é sempre linear: um evento A gera um evento B, que por sua vez gera um C e assim por diante. Quando a viagem no tempo para o passado entra em cena, um evento A causa o B, que por sua vez causa o A novamente, formando um ciclo sem fim e sem começo estabelecido.

O paradoxo na série

(A partir daqui o texto contém spoilers das duas primeiras temporadas de Dark)

Dark: um guia dos personagens para você não se perder na 3a temporada
(Netflix/Divulgação)

Um conceito tão fascinante é prato cheio para obras de ficção, e Dark usa e abusa do paradoxo em sua trama. Vamos começar com um exemplo levinho: o livro Uma jornada através do tempo, do personagem H.G. Tannhaus. O relojoeiro obcecado pelo tempo reúne suas teorias em uma publicação que aparece constantemente na série e é central para estabelecer a física por trás dos eventos. Acontece que, na segunda temporada, vemos que um jovem Tannhaus recebe uma cópia do livro das mãos de Claudia – antes de tê-lo escrito. Ele decide, então, publicar 500 cópias da obra em seu nome. Uma delas vai parar na mão da personagem Claudia décadas depois, que viaja no tempo e reinicia o ciclo. O livro nunca foi de fato escrito por ninguém, mas existe.

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Outro exemplo parecido é a carta de suicídio de Michael. Também na segunda temporada vemos que Jonas volta no tempo para tentar impedir que seu pai se suicide. Ele mostra a carta de suicídio que seria escrita por Michael para ele, antes de ele escrever. No dia seguinte, Michael apenas copia as palavras em uma nova folha e se mata – o conteúdo da carta nunca foi originalmente escrito por alguém.

Até aí está relativamente fácil de se entender, certo? Mas os criadores de Dark elevaram o paradoxo para um outro nível de complexidade, agora envolvendo pessoas. Na série, vemos que a personagem Charlotte não sabe quem são seus pais: ela foi criada por seu avô adotivo. Charlotte cresce e têm duas filhas, Elisabeth e Franziska. Elisabeth cresce, e, em algum momento do futuro, tem uma filha chamada Charlotte. De alguma forma, Charlotte bebê é levada para o passado, onde é adotada. Ela cresce e tem suas filhas, entre elas a Elisabeth.

Ou seja, a mãe é filha da própria filha, que é mãe da própria mãe. E vice-versa. A viagem no tempo cria um ciclo em que uma gera a outra indefinidamente, e não sabemos quem veio primeiro. É bizarro, e, não à toa é um dos maiores plot twists da segunda temporada.

Mas afinal, faz sentido?

O que não faz sentido é essa pergunta – paradoxos são, por definição, algo que quebra a lógica. Se um paradoxo existe, é porque alguma coisa nas premissas iniciais está fundamentalmente errada. Nesse caso, a existência do paradoxo seria simplesmente uma prova de que viagens ao passado são impossíveis pelas leis da física. Ou seja: nunca haverá uma tecnologia, ou uma descoberta, capaz de torná-las possíveis.

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Uma das leis fundamentais quebradas no paradoxo é a Segunda Lei da Termodinâmica. Ela dita a entropia de um sistema (isto é, o grau de desordem) sempre tende a aumentar linearmente, e nunca a diminuir. Imaginemos, por exemplo, um vaso inteiro, em que os átomos estão todos em seu devido lugar (um sistema organizado). Com o tempo, o vaso vai envelhecer e pode até se rachar e se quebrar em vários pedacinhos (um sistema bem desorganizado). Isso é natural. Mas os cacos que sobraram jamais podem voltar a se tornar um vaso organizado novamente sem que se empregue energia de fora do sistema nisso.

No exemplo original do paradoxo de Bootstrap, a carta contendo as informações sobre viagem no tempo entra em um ciclo eterno, em que é passada de mão em mão. Acontece que a carta tem que envelhecer – em algum momento vai se desgastar tanto que deixará de existir.

Isso pode ser contornado caso se adicione na história o fato de que a carta é sempre reescrita em um papel novo (essa é a saída de Dark para a carta do suicídio de Michael e também para o livro, que é sempre republicado). Mas pense que o viajante no tempo leve uma pedra de gelo e entregue para seu “eu” de dez minutos atrás, por exemplo. O gelo tem que derreter.  Se o gelo derrete, o ciclo não pode se reiniciar. Ou, se o gelo não derrete, isso significa que a viagem no tempo está quebrando a segunda lei da termodinâmica, porque a entropia está caminhando na direção contrária. Logo, a viagem ao passado seria impossível.

Se isso não é bom o suficiente para te convencer que a física impede viagens ao passado, há outros paradoxos, mais clássicos. Um deles é o do avô: você volta no tempo e mata seu avô antes de ele conhecer sua avó. Com isso, seu pai (ou sua mãe) nunca nasce, e, por consequência, você também não. Mas, se você nunca nasceu, como é que voltou no tempo para matar seu avô? É parecido com o paradoxo de Bootstrap: um evento A impede que um evento B aconteça, mas o evento B é essencial para que o A aconteça.

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Dark contorna isso com algo às vezes chamado de “determinismo temporal”. No exemplo acima, essa solução dita que, se você existe, isso significa que é impossível que seu avô tenha morrido antes de ter tido seu pai. Ou seja, mesmo se você voltar no tempo e tentar matar seu avô, você simplesmente não consegue. Isso gera uma outra discussão interessante sobre livre arbítrio. Se a física permitir viagens ao passado, você não vai conseguir voltar e mudar o futuro. Tudo já estaria predistinado.

A série alemã capitaliza isso com excelência para trazer aspectos filosóficos e existencialistas na trama dos personagens. Por exemplo, quando Claudia tenta impedir que seu pai morra, acaba causando a morte dele por acidente. E quando Ulrich viaja no tempo para matar Helge ainda criança e impedir que ele vire um assassino no futuro, acaba não só não conseguindo matar o menino como proporciona o encontro dele com Noah, que vai influenciá-lo para cometer os crimes anos mais tarde. Diversas vezes os personagens mais entendidos sobre a viagem no tempo repetem que “o que sempre aconteceu tem que acontecer”, e isso parece guiar suas ações.

Uma outra solução para esse paradoxo teria que utilizar o conceito de universos paralelos. Quando um viajante volta para o passado, ele na verdade dá origem a um outro Universo. Ao matar o próprio avô, ele estaria criando duas linhas do tempo, dois Universos, separados. Em um, seu avô viveu a vida normalmente e teve seus descendentes. Em outro, o avô foi morto sem deixar filhos pelo viajante – neste caso, um Universo estaria influenciando o outro. Parece imbecil, mas essa é uma hipótese séria. Foi proposta pelo físico Hugh Everett, de Princeton, na década de 1950. E tem seus seguidores. Infelizmente, é só uma hipótese. Para comprová-la, só avistando um Universo paralelo, ou voltando no tempo para matar seu avô.

De qualquer forma, dá para afirmar com certeza que a viagem no tempo para o passado não parece obedecer às leis da física que conhecemos. O lado bom de tudo isso é que a ficção, por ser ficção, não precisa dar tanta bola para as leis do mundo real, e pode nos proporcionar histórias incríveis como a de Dark.

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