O rei dos quebra-cabeças
Artigo do arquiteto e designer de jogos Luiz Dal Monte Neto, em que fala sobre Henry Ernest Dudeney e Samuel Loyd, dois grandes mestres da matemática recreativa.
Luiz Dal Monte Neto
Se examinarmos tudo que se publica em matéria de Matemática recreativa, veremos que são poucos os problemas que não descendem diretamente de alguma criação de Henry Ernest Dudeney. Fosse esse assunto um reino, ele seria, sem dúvida, o monarca. Dudeney nasceu em Mayfield, no sul da Inglaterra, em 1857. Dezesseis anos depois de outro gênio dos quebra-cabeças, o americano Samuel Loyd (Superinteressante número 5, ano 6). Este atingiu uma popularidade muito maior, devido aos seus engenhosos puzzles mecânicos, em que se tenta atingir determinado objetivo manipulando partes de um objeto. O sucesso do seu quebra-cabeça 14-15, conhecido pelos franceses como taquin, que consiste numa caixa com 15 quadradinhos que se movem deslizando e que, ainda hoje, é vendido em todo o mundo, talvez só tenha sido superado pelo famoso cubo de Rubik, também conhecido como cubo mágico. Todavia, do ponto de vista da elaboração matemática, o inglês era superior, mesmo sem jamais ter recebido uma educação formal na matéria.
Na última década do século passado, Loyd e Dudeney colaboraram com artigos para uma revista chamada Tit-Bits e, posteriormente, como mantinham colunas em várias publicações, combinaram a troca de problemas para ajudar a abastecê-las. Isso provocou o aparecimento de algumas “coincidências” nas duas obras, fato que algum leitor desavisado poderia tomar como plágio. Dudeney teve seis livros editados, o primeiro dos quais se chamava The Canterbury Puzzles, publicado em 1907 e item necessário na estante de qualquer interessado em exercícios cerebrais. Não há tradução em português, mas os brasileiros dispõem de uma edição em espanhol: Los Acertijos de Canterbury y Otros Problemas Curiosos, Ediciones Juan Granica S.A., Buenos Aires, 1998. Nesse livro, Dudeney apresentava uma de suas mais famosas descobertas no campo das secções geométricas, onde a questão é dividir um determinado polígono que, rearrumado, possa formar outro de mesma área.
Era um mestre nesse ofício. O leitor seria capaz de partir um triângulo eqüilátero em quatro partes e com elas formar um quadrado? Vejamos como ele o fez, acompanhando pela figura 1: primeiro, dividiu AB e BC em dois, determinando os pontos médios D e E; depois, traçou a reta AF, fazendo EF = EB; em seguida, determinou o ponto médio G do segmento AF e desenhou o arco AHF (H é obtido prolongando-se o segmento BC); então, com centro em E, traçou o arco HJ e definiu o ponto K de modo que JK = BE; finalmente, a partir de D e K, traçou perpendiculares a JE, definindo os pontos L e M. A figura 2 mostra como os pedaços numerados de 1 a 4 compõem um quadrado.
Para espanto de quem ouve isso pela primeira vez, está demonstrado que qualquer polígono pode ser transformado em qualquer outro de igual área, seccionando-o num número finito de peças. Desse modo, não é tanto a transformação que conta, mas a quantidade de peças – quanto menos, melhor – e a elegância da construção e do resultado final. Quanto ao primeiro ponto, Dudeney bateu vários recordes; quanto ao segundo, o leitor pode avaliar a qualidade do seu trabalho, analisando um pouco mais a figura 2. Note que as quatro peças poderiam ser unidas pelos vértices, como se vê na figura 3. Então, se dobrarmos a cadeia num sentido, fechando-a sobre si mesma, formaremos o triângulo; dobrando-a no outro sentido, formaremos o quadrado. Dudeney chegou mesmo a fazer um modelo em mogno com articulações de bronze, e apresentou-o à Royal Society, de Londres, em 1905. Eis aí um projeto interessante para os leitores prendados.
O rei dos quebra-cabeças escreveu e ilustrou durante vinte anos uma seção especializada na revista mensal The Strand Magazine. Chamava-se Perplexities e deleitou seu público com uma avalanche de problemas de alta qualidade que, em muitos casos, aliavam uma aparência difícil a uma solução surpreendentemente simples, depois de encontrada, é claro. Veja este exemplo: dados os números 480.608, 508.811 e 723.217, descubra um quarto número que os divida gerando o mesmo resto. Não se trata de um problema complicado, desde que seja atacado adequadamente. Ocorre que se dois números, A e B, deixam um mesmo resto ao serem divididos por C, então C divide A-B sem deixar resto. Aplicando-se esta propriedade, fazemos 723.217 – 508.811 = 214.406 e 508.811 – 480.608 = 28.203. Agora, basta procurarmos um divisor comum para 214.406 e 28.203. Decompondo-os em fatores primos, vemos que o único fator comum é 79. Realmente, ao serem divididos por 79, os três números geram resto 51.
Dudeney morreu em 1930 e deixou um espólio descomunal. Um documento à inteligência e à criatividade, desafiando gerações após gerações com o mesmo interesse original.
Luiz Dal Monte Neto é arquiteto e designer de jogos e brinquedos