O retorno de Freud
Depois de passar décadas no ostracismo científico, as teorias de Freud voltaram a aparecer nos laboratórios — desta vez, com o apoio da neurociência.
Era julho de 2008. A capa da SUPER estampava: “Terapia funciona?”, em frente à imagem de um Freud sisudo de sobrancelhas cerradas. E completava: “Sim, o autoconhecimento funciona. Mas Freud talvez não tenha nada a ver com isso”. Dentro da revista, a reportagem era ainda mais implacável com o barbudo de Viena: lia-se que as teorias de Freud não tinham embasamento científico, que o tratamento era longo e imprevisível, e que o austríaco tinha até inventado fatos quando elaborou suas teses. Ao final do texto, o pai da psicanálise aparecia (metaforicamente) roxo e inchado, de tanto que havíamos batido nele.
A verdade é que Freud andava desacreditado havia tempo. Nos anos 1970, o filósofo austríaco Karl Popper já tinha chamado a psicanálise de pseudociência – segundo ele, suas hipóteses eram muito amplas para serem testadas e, portanto, impossíveis de confirmar.
Céticos apontavam que ninguém tinha encontrado, no cérebro, a localização de áreas correlatas ao id, ao ego ou ao superego. Mulheres diziam que não, elas não tinham inveja do pênis, muito obrigada. O complexo de Édipo e o medo da castração pareciam ficção, contada para pessoas dispostas a gastar muito dinheiro por anos a fio com um tratamento não comprovado pela ciência.
“Sem dúvida, nenhuma outra figura importante da história esteve tão errada quanto Freud a respeito de todas as coisas importantes que disse”, escreveu o professor de filosofia canadense Todd Dufresne.
Criticá-lo passou a ser lugar comum, e o “Freudbashing” (“bater em Freud”, em tradução livre) se tornou quase um esporte. O desenvolvimento de terapias mais curtas e pontuais parecia trazer as verdadeiras respostas para todos os males da mente. E, para completar, os medicamentos psiquiátricos nunca haviam sido tão eficientes. A psicanálise tinha sido deposta para sempre.
Opa, para sempre?
Surpreendentemente, nos últimos anos, Freud ressuscitou para a ciência – e começou a ser resgatado do lixo científico. Em vez de focar nos detalhes da sua teoria, as pesquisas começaram a reparar que os grandes conceitos do austríaco – a existência do inconsciente, o significado dos sonhos, as repressões de sentimentos – não eram exatamente histórias para boi dormir.
Também surgiram estudos mostrando que as terapias inspiradas na psicanálise, que costumam ser longas e custosas, são as mais eficientes para tratar males mentais. E mais: até mesmo a neurociência apareceu para dizer que… bem, Freud explica.
Fluxogramas do bem-estar
Primeiro, é bom entender como a terapia freudiana funciona. Um tratamento clássico pode envolver de quatro a cinco sessões por semana, por meses ou até anos. O paciente deve falar livremente o que lhe passa pela cabeça, enquanto o terapeuta escuta e faz questionamentos pontuais.
É um caminho tortuoso e lento – e, por isso, é difícil medir seus avanços. “A terapia tradicional vai muito além da redução de sintomas. O que os pacientes estão buscando é mais qualidade de vida, mais confiança e segurança nos relacionamentos, mais perspectiva sobre si mesmos”, diz Nancy McWilliams, professora da Universidade Rutgers e autora da obra Psychoanalytic Psychotherapy.
Nesse cenário, ainda nos anos 1960, psicólogos começaram a procurar soluções mais práticas e mensuráveis para os problemas da psique humana. A resposta foi a Terapia Cognitivo-Comportamental, ou TCC. Criada por Albert Ellis e Aaron Beck, dois psicanalistas desiludidos com o método freudiano, a TCC prometia uma abordagem mais pé no chão, que não exigia chafurdar no lodo de nossos conflitos inconscientes.
Bastava ajustar pensamentos prejudiciais – causados por crenças pessimistas a respeito de nós mesmos, do mundo e do futuro – e comportamentos pouco funcionais que surgem desses pensamentos. Nada de focar no passado, o foco é o presente. “Não é preciso saber como uma pessoa quebrou o braço para poder tratá-lo”, diz o terapeuta cognitivo Stefan G. Hofmann, autor do livro An Introduction to Modern CBT (“Introdução à TCC”, sem edição no Brasil). Nas sessões, o paciente pode preencher fluxogramas sobre seu estado mental e recebe dicas de exercícios para alterar os pensamentos e comportamentos negativos em momentos de crise.
Em 1961, Aaron Beck desenvolveu um questionário de 21 itens para medir o grau de depressão de seus pacientes. E conseguiu provar que alguns meses da técnica eram suficientes para aliviar os sintomas em cerca de metade deles.
Muitos estudos se seguiram a esses primeiros, sempre com resultados favoráveis à técnica. Tanto que, com o tempo, o termo “terapia baseada em evidência” passou a ser sinônimo do método, e a TCC, barata e com duração mais curta – o total varia de acordo com o paciente, mas a estimativa é entre 8 e 16 semanas –, foi adotada com entusiasmo como principal política de saúde mental em diversos países.
A volta de Sigmund
Assim como ocorreu com a psicanálise, porém, a TCC começou a ter sua hegemonia questionada. Em 2015, pesquisadores noruegueses publicaram uma meta-análise mostrando que a eficácia da terapia cognitiva para tratar a depressão caiu pela metade desde os primeiros estudos, em 1977.
Meses depois, na Suécia, auditores do governo publicaram um relatório devastador sobre um experimento de saúde mental do país, que pagou ao longo de oito anos R$ 2,6 bilhões em TCC para os cidadãos suecos. O programa do governo, concluíram os auditores, falhou completamente em seus objetivos.
E um artigo de 2004 mostrou como os pesquisadores da TCC, para tornar os resultados mais fáceis de interpretar, excluíam dos estudos justamente o tipo de paciente mais comum nos consultórios, aquele com mais de um problema psicológico.
Ao mesmo tempo em que a TCC era posta em dúvida, uma novidade inesperada começou a surgir nas publicações científicas: o resgate da abordagem freudiana de terapia. Ao contrário do que se dizia, a psicanálise e as terapias psicodinâmicas funcionam, sim, e muito bem.
Um estudo de 2016, enorme e feito no sistema de saúde inglês, mostrou que, para os pacientes com depressão mais grave, 18 meses de análise foram muito mais efetivos que o tratamento padrão, que incluía TCC. O mesmo resultado vale para outros transtornos, inclusive os mais severos.
É o que demonstra uma meta-análise publicada em 2008 no prestigioso JAMA, Journal of the American Medical Association, que concluiu que terapias freudianas com mais de um ano de duração são mais eficazes que terapias de curto prazo para pacientes com patologias complexas, como transtornos de personalidade.
O mais impressionante dos dados é que, diferente da terapia cognitiva e dos remédios, os benefícios da análise não só permaneceram, como ficaram ainda maiores após o final do tratamento, causando mudanças duradouras nos pacientes.
O cérebro no divã
Além das pesquisas populacionais comprovando sua eficácia, a psicanálise passou a ser endossada pela neurociência. Até o final da década de 1990, psicologia e neurociência falavam línguas completamente diferentes, apesar de estudarem o mesmo órgão. Com o avanço das técnicas de mapeamento cerebral, porém, a distância entre as duas áreas diminuiu.
A neurociência começou a se interessar por alguns dos conceitos fundamentais da psicanálise, como o inconsciente. Hoje, já se sabe que a maioria das nossas decisões e ações acontece, primeiro, nessa parte oculta da mente; só alguns milésimos de segundos depois é que tomamos consciência delas. Ou seja, o inconsciente já sabe o que você vai dizer antes mesmo de você pensar que quer dizer alguma coisa, e até escolhe as palavras para você.
É assim também com todas as habilidades que aprendemos na vida, como tocar violão ou pular corda. A prática faz com que essas habilidades fiquem gravadas em uma parte do inconsciente chamada “memória não declarativa”. Isso faz com que não precisemos pensar antes de executar cada movimento ou arremessar a bola na cesta: o inconsciente já sabe como chegar lá.
Hoje, já é senso comum que boa parte da atividade cerebral se passa no inconsciente – a estimativa dos neurocientistas é de que apenas 5%, ou até menos, se passe no nível da consciência.
Outro campo da neurociência que parece confirmar ideias da psicanálise é o dos sonhos. Freud teorizou que os sonhos apontam, de forma codificada, para nossos desejos inconscientes. Essa teoria foi praticamente enterrada nos anos 1970, quando pesquisas indicavam que os sonhos ocorriam durante o sono REM e eram controlados por um neurotransmissor produzido em uma região do tronco cerebral “menos importante” para os processos mais complexos da mente.
Por conta disso, passou-se a acreditar que os sonhos eram desencadeados por substâncias químicas que nada tinham a ver com a emoção e a motivação, ou seja, eram apenas estímulos aleatórios sem significado.
Essa teoria perdurou até o início dos anos 2000, quando o neurologista e psicanalista sul-africano Mark Solms viu que, ao contrário do que se pensava, pacientes com lesões na área do tronco cerebral continuavam sonhando, ao passo que outros, com lesões em outra região do cérebro – a área tegmentar ventral, que fica no centro da sua cabeça –, paravam de sonhar completamente, apesar de entrarem em REM.
As regiões afetadas nos pacientes que pararam de sonhar compõem o sistema mesolímbico-mesocortical, o chamado sistema de recompensa do cérebro. E o mais decisivo: além de parar de sonhar, as pessoas com lesões nesse sistema perdiam a motivação e o interesse pela vida. Com isso, Solms propôs que os sonhos estão ligados às nossas expectativas de punição e recompensa, algo não muito distante da teoria freudiana sobre o tema.
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“É difícil dizer, hoje, que os sonhos são ‘desprovidos de mente’”, afirma o neurobiólogo Sidarta Ribeiro, diretor do Instituto do Cérebro da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, em Natal. O interesse de Ribeiro pela psicanálise veio no início de seu doutorado nos Estados Unidos, quando ainda não estava adaptado ao país e teve uma depressão. Durante os dois meses que durou o episódio, ele sentia muito sono, chegando a dormir 16 horas por dia. Quando a crise passou, ele se interessou pelo sono e pelos sonhos, chegando a Freud.
O tema acabaria se tornando a linha de pesquisa principal do neurocientista, que desenvolveu estudos para ver o que acontece durante o sono quando os animais passam por períodos de aprendizado. Ele colocou eletrodos no cérebro dos bichinhos e descobriu que, se um rato não passou por nada de novo no dia dele, seu cérebro fica num estado de baixa plasticidade. Mas, se coisas diferentes acontecem durante a vigília, a atividade durante o sono REM muda. “É como se o cérebro estivesse aprendendo de novo”, afirma o cientista.
Para Ribeiro, essa é uma demonstração de que os sonhos contêm restos diurnos, o que Freud cravou em 1900. “O sonho não é aleatório. Ele revela as memórias que foram geradas, e que são a base do inconsciente”, afirma. Alguns sonhos, por sua vez, podem ser até “premonitórios”: uma pesquisa, publicada na revista Nature em 2015, mostrou que análises quantitativas da descrição de sonhos de adolescentes podem prever quadros psicóticos com até 30 meses de antecedência.
Reprimidos de verdade
O neurologista indiano Vilayanur Ramachandran, diretor do Centro para o Cérebro e Cognição da Universidade da Califórnia, em San Diego, é outro entusiasta da aproximação entre psicanálise e neurociência.
Em 1994, ele fez estudos com pessoas que sofriam de anosognosia, uma condição na qual pacientes não computam os graves danos físicos que haviam sofrido por causa de lesões cerebrais. Uma das pacientes de Ramachandran sofreu um derrame e perdeu os movimentos do braço, mas negava ter qualquer problema. Oito dias após o derrame, o cientista estimulou artificialmente o hemisfério direito da paciente, que, nessas condições, reconheceu a paralisia.
Ao término do estímulo, porém, a paciente voltou a acreditar que o membro estava normal, e perdeu qualquer lembrança de ter percebido a lesão, embora se lembrasse em detalhes do restante da conversa com o médico.
Ou seja, a informação da deficiência chegou ao cérebro da paciente, ao menos de forma inconsciente. Ela era, porém, incapaz de admitir isso em momentos de plena consciência.
Fato semelhante acontece com uma síndrome conhecida como psicose de Korsakoff, em que portadores de danos na região límbica frontal têm amnésia mas não admitem, inventando histórias para preencher as lacunas da memória.
É o caso de um paciente da neuropsicóloga Aikatereni Fotopolou, relatado por Mark Solms, que inventava narrativas mirabolantes para justificar a cicatriz em sua cabeça, ou a presença do pesquisador na sala. Ao longo dos dias, a história variava: Solms era um cliente; companheiro de bar; um colega do time em que jogara quando mais jovem; o mecânico de um carro esporte – que ele não possuía. Tudo, menos um médico tratando de um problema que, afinal, ele não admitia ter.
Ao analisar quantitativamente as alegações do paciente, Fotopolou percebeu que não eram aleatórias: a maioria representava aspirações, coisas positivas, desejos. Assim como os pacientes de Ramachandran, o homem reconstruía a realidade como gostaria que fosse. Era uma forma de lidar com a perda, equivalente à repressão teorizada por Freud – a ideia de que algumas memórias seriam dolorosas demais para mantermos e, por isso, acabam varridas para o fundo do inconsciente.
Na verdade, é difícil bater o martelo e afirmar que “Freud acertou aquilo” ou “Freud errou isso”. Como tudo que envolve a mente humana, não há uma única resposta para nossas inquietações – o que dirá uma única pessoa que seja capaz de explicá-las.
O que publicamos aqui na SUPER lá em 2008 não estava errado: a teoria de Freud é realmente cheia de generalizações e escorregões.
Talvez o maior acerto do austríaco tenha sido outro: “Mais que qualquer teoria específica, o legado de Freud é uma apreciação da riqueza e da complexidade da mente, do fato de que as coisas têm significados para além do que se pode ver na superfície”, diz Jonathan Shedler, psicólogo e professor de psiquiatria da Universidade do Colorado.
O que a ciência está fazendo agora é tentar fornecer as bases fisiológicas para toda essa complexidade. Algo que o próprio Freud, que era médico, neurologista e psiquiatra, aprovaria.
ALÉM DO DIVÃ
As diferenças entre as duas principais linhas de psicoterapia: psicanálise e terapia cognitivo-comportamental (TCC)
TEORIA
Psicanálise: o sofrimento é causado por conflitos mentais que costumam ter origem no inconsciente, dos quais não temos conhecimento.
TCC: o sofrimento vem das cognições (pensamentos) automáticas e de crenças pessimistas sobre si mesmo e o mundo.
ABORDAGEM
Psicanálise:
– Olha para a relação entre passado e presente.
– Busca desvendar os impulsos inconscientes.
– Procura ajudar o paciente a examinar a própria vida, além de aliviar os sintomas.
– A relação com o terapeuta é importante para ajudar a perceber padrões nas formas de se relacionar.
TCC:
– Foca no presente.
– Busca ajustar pensamentos e crenças prejudiciais.
– Costuma ser voltada para problemas específicos, como fobias ou ansiedade.
– Está interessada nos sintomas isolados.
– É educacional: o terapeuta ensina habilidades e passa tarefas de casa.
COMO É UMA SESSÃO
Psicanálise: na análise clássica, o paciente se deita no divã e fala livremente. Nas terapias psicodinâmicas modernas, o divã não é necessário. A análise clássica tem até 5 sessões por semana, e dura anos. As psicodinâmicas podem ser mais breves e têm 1 ou 2 sessões semanais.
TCC: os encontros são estruturados. O terapeuta pode pedir que o paciente faça exercícios que ajudam a identificar pensamentos automáticos. Um tratamento comum pode ter de 8 a 16 semanas, mas há casos mais graves em que a terapia pode levar mais tempo.
O TERAPEUTA FAZ TERAPIA?
Psicanálise: tanto na psicanálise quanto nas terapias psicodinâmicas, é fundamental que o analista passe, ele mesmo, pelo processo.
TCC: o terapeuta pode, mas não precisa passar pelo processo, a não ser que tenha algum transtorno específico.
VISÃO SOBRE EMOÇÕES DOLOROSAS
Psicanálise: são algo a ser aceito, entendido e trabalhado, como uma febre que aponta para a existência de uma infecção.
TCC: vistas como consequências de pensamentos automáticos, são como um tumor ou um vírus: algo a ser eliminado do organismo.
Para saber mais:
Freud: Para entender de uma vez Alexandre Carvalho, Superinteressante, 2017