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Os renegados da ciência

Eles defendem idéias que a maioria doscientistas acha absurdas. Seriam tidos como malucosse não fosse um detalhe: são pesquisadores sériose têm um currículo acadêmico invejável

Por Da Redação Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 31 out 2016, 18h52 - Publicado em 30 nov 2004, 22h00

Alberto Holtz

O biólogo americano Robert Weinberg se lembra com carinho da última conversa que teve com o colega Kary Mullis, Prêmio Nobel de Química de 1993. “Eu disse a ele: Doutor Mullis, a história verá como um ato de irresponsabilidade criminal o fato de o senhor usar o seu Nobel para defender que o vírus HIV não causa a Aids”. Weinberg faz uma pausa e continua: “Sabe o que ele me respondeu? Três palavras: as duas primeiras são ‘vá se’ e a outra começa com ‘f’”.

Mullis é uma figura que mudou a história da biologia. Nos anos 80, o ex-hippie californiano inventou a reação em cadeia da polimerase, a PCR, uma ferramenta que revolucionou a genética e deu ao mundo o genoma, os transgênicos e os testes de paternidade. Naquela década, no entanto, Mullis se deixou seduzir pelas idéias desvairadas do bioquímico Peter Duisberg, que negava o fato de que o vírus HIV fosse o agente causador da Aids. Sujeito astuto e dado à polêmica, Duisberg conseguiu convencer diversos cientistas importantes de que o HIV era mesmo inocente, e que a Aids era uma espécie de “reação do corpo” na qual o vírus é um sintoma, não uma causa. Tudo isso sem entender nada de virologia.

Em sua autobiografia Dancing Naked in the Mind Field, de 2000 (“Dançando Nu no Campo da Mente”, inédito no Brasil), Mullis defende Duisberg e diz que a ligação HIV-Aids é parte de uma conspiração das indústrias farmacêuticas, que ganham milhões de dólares com drogas como o AZT. E ataca outras “mentiras” do establishment científico, como o buraco da camada de ozônio e a influência humana no aquecimento global.

Kary Mullis – que saiu de cena desde então e hoje divide seu tempo entre as ondas da Califórnia e palestras para estudantes e empresários – não é o primeiro cientista respeitável a fazer ataques amalucados a idéias científicas bem estabelecidas. Os chamados “céticos” sempre existiram em todos os ramos da ciência, porque é exatamente assim que ela funciona: alguém propõe uma teoria, um monte de gente discorda, as evidências se somam e um dos lados prevalece. Monta-se, então, um consenso, que sempre estará sujeito à falsificação. E, muitas vezes, ele cai.

“A construção de consenso na ciência é um processo aberto, então todas as conclusões que nós damos por certas podem ser escrutinadas e desafiadas”, diz o físico e filósofo da ciência americano David Kaiser, do Instituto de Tecnologia de Massachussetts (MIT). Segundo Kaiser, algumas áreas tendem a ser mais desafiadas do que outras, e isso depende de dois fatores: da personalidade dos cientistas envolvidos e do que está em jogo com o debate. As opiniões de Kary Mullis sobre a Aids foram convenientemente usadas pelo presidente da África do Sul, Thabo Mbeki, para negar distribuição de drogas anti-aids aos pobres de seu país. Da mesma forma, rejeitar a idéia de que atividades humanas causam o aquecimento global é música para os ouvidos de políticos financiados pela indústria do petróleo.

Mas, claro, a maioria dos céticos não tem uma razão oculta para atacar um paradigma. Eles fazem isso por vaidade mesmo. Pelo gostinho de poder um dia ver ruir o castelo construído com tanto esmero por seus adversários intelectuais. Enquanto isso não acontece, vão aproveitando os holofotes.

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A farsa ambiental

É meio-dia em Cambridge, EUA. Faz sol e o clima é de 20ºC negativos. Quem olha da janela do escritório no MIT para o rio congelado, 17 andares abaixo, tem mesmo boas razões para duvidar do aquecimento global. O dono da sala, o meteorologista Richard Lindzen, faz questão da acrescentar outras tantas: “Ninguém questiona que a temperatura média global cresceu 5,8ºC no último século. Mas isso é consistente com a variação natural do clima”.

Dick, como prefere ser chamado, é o inimigo número 1 da idéia de que o efeito estufa seja uma tragédia ambiental iminente, causada pelo consumo desenfreado de petróleo pelos humanos. Para ele, não há boas evidências de que haja uma tendência ao aquecimento. O alarme soado pelo IPCC, painel de mil cientistas ligado à ONU que prevê um aumento de até 5,8ºC na temperatura média global em 2100, não passa, na visão de Lindzen, de uma especulação política do movimento ambientalista.

O pior é que Dick sabe do que está falando. Ele é um dos meteorologistas mais competentes dos EUA, e publica seus artigos em revistas científicas de primeira linha. Suas objeções à idéia de que as emissões de gás carbônico estão aquecendo a Terra são válidas. Afinal, os modelos são incertos porque o clima do planeta é extremamente complexo.

“Concordo com todos os argumentos do Lindzen. As conclusões é que estão erradas, porque a incerteza corta dos dois lados e também pode ser usada contra ele”, diz o climatologista Steven Wofsy, da Universidade Harvard, EUA, e amigo de Lindzen.

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Descrito por colegas como alguém com prazer em se opor a qualquer coisa, Dick é uma metralhadora giratória. Diz que o efeito estufa vai diminuir a freqüência de tempestades, não aumentá-la, que mitigar as emissões de gases-estufa é mais caro do que adaptar-se à mudança climática e que o argumento do IPCC é “simplesmente uma mentira”. Sua principal teoria é a de que a atmosfera possui um “efeito íris”, ou seja, compensa o aumento de calor por meio de uma maior quantidade de nuvens fazendo sombra sobre o planeta. Mas até ele admite que a idéia não passou pelo teste da experimentação. “Os dados não são tão bons quanto gostaríamos”, diz.

Contra a cratera

Toda criança já ouviu a história. Há 65 milhões de anos, um asteróide de 10 quilômetros de diâmetro se chocou com a Terra. O impacto carbonizou florestas e uma nuvem de pó cobriu todos os continentes. A Terra mergulhou em um inverno do qual 60% das formas de vida sairiam extintas, incluindo os grandes répteis que haviam dominado os ambientes terrestres pelos últimos 150 milhões de anos -– os dinossauros.

A paleontóloga Gerta Keller diz que lamenta, mas os livros e filmes infantis terão de mudar. Ela afirma que a extinção que marcou o fim dos dinossauros, entre os períodos Cretáceo e Terciário, não pode ter sido culpa do asteróide gigante porque, entre outros motivos, ele caiu na Terra 300 mil anos antes do evento.

“Os dinossauros estavam em declínio desde milhões de anos antes da fronteira Cretáceo-Terciário, devido a um resfriamento global”, diz a pesquisadora. Para ela, um conjunto de impactos, mudanças climáticas e um grande derramamento de lava na atual Índia liqüidou os grandes répteis. Por mais que os guardiões da hipótese “oficial” digam que isso é bobagem, Keller e seus colaboradores têm feito barulho na academia. Seu último artigo foi publicado no primeiro semestre deste ano na revista americana Proceedings of the National Academy of Sciences, um dos principais periódicos científicos do mundo. Nascida no pequeno principado de Liechtenstein, Keller ensina geologia em Princeton, uma das principais universidades dos EUA, a mesma onde lecionava o físico Albert Einstein.

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“Ela sempre foi do contra. Há alguns anos, defendia que não havia extinção em massa entre o Cretáceo e o Terciário” diz o geólogo americano Kevin Pope, que também estuda esse período. A teoria que Keller combate é uma dessas hipóteses científicas que só melhoram com o tempo. Proposta em 1980 pelo Nobel de Física Luís Alvarez e seu filho Walter, a hipótese de um impacto extraterrestre como causa da extinção dos dinos ganhou força nos anos 90, com a descoberta da cratera de Chicxulub, na península de Yucatán, México. Hoje, ela é virtualmente consenso entre os paleontólogos. “Não espero que o pessoal da linha-dura aceite as minhas evidências”, diz a cientista.

Pré-história hippie

Você provavelmente se ofenderia ao ser chamado de neandertal por alguém. Mas para o antropólogo americano Milford Wolpoff, é exatamente isso o que todos nós somos: resultado do cruzamento entre neandertais e outros hominídeos ao longo de milhares de anos, em várias regiões do planeta, que acabaram produzindo a forma que se convencionou chamar Homo sapiens. Wolpoff e seus colaboradores, como o australiano Alan Thorne, dizem que não faz sentido separar as espécies em Homo erectus, Homo neanderthalensis ou Homo sapiens: todos são versões regionais do mesmo bicho, o homem anatomicamente moderno.

A visão dominante hoje na antropologia é o chamado modelo Out of Africa (algo como “fora da África”), segundo o qual o Homo sapiens surgiu num único berço, a África subsaariana, e se espalhou pelo planeta a partir de 160 mil anos atrás. No caminho, dizimou as populações de hominídeos que tinham deixado o continente africano antes, como o Homo erectus asiático, e o homem de Neandertal, que evoluíra separadamente na Europa. Essa idéia tem sido reafirmada por estudos genéticos, que conseguiram extrair DNA de fósseis de neandertal e compará-lo ao de humanos atuais, mostrando que as diferenças são grandes demais para que eles possam ser considerados de uma mesma espécie. Estudos em fósseis de crianças neandertais também mostram que ele tinha um padrão de desenvolvimento completamente diferente daquele do Homo sapiens atual.

No entanto, para Wolpoff, o mundo pré-histórico era muito mais de amor do que de guerra. A colonização do planeta teria envolvido idas e vindas, não apenas uma migração em apenas um sentido. Nesses passeios, as várias populações humanas se cruzaram e trocaram genes, num liqüidificador sexual que resultou em uma espécie homogênea. “Eu ganhei um monte de dinheiro para estudar a evolução da mastigação em todos os hominídeos. De 1976 a 1980, tive oportunidade de ver cada fóssil e estudá-los – não apenas passar por eles, como a maioria dos meus colegas. Aí comecei a me dar conta de que a evolução humana não tinha acontecido em uma série de estágios, como eu pensava, mas que ela tinha sido diferente em cada região”, diz Wolpoff.

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O diabo está na confirmação. Para o americano, ela não pode ser feita com as ferramentas genéticas existentes hoje. Seria preciso usar o DNA que se esconde no núcleo das células, “e isso é praticamente impossível de se obter de um fóssil”, afirma Wolpoff . “Se quisermos saber se os neandertais são ancestrais de pessoas vivas, o melhor jeito é procurar características de neandertal em pessoas vivas.” Você viu algum por aí?

A terra é um balão

Quando o alemão Richard Wegener afirmou, em 1912, que os continentes flutuavam como jangadas à deriva, todo mundo riu dele. Wegener foi vingado nos anos 60, quando uma série de pesquisas geológicas mostrou que a crosta terrestre é composta de placas que realmente flutuam, se afastam e se chocam umas contra as outras, produzindo montanhas, vulcões e moldando a Terra como ela é.

A teoria da tectônica de placas é, com o perdão do trocadilho, sólida como rocha. Virou o bê-a-bá da geologia e da geofísica modernas. E, é claro, atraiu detratores. O mais célebre deles foi o australiano Samuel Warren Carey, um dos ideólogos, juntamente com o britânico Hugh Owen, da teoria da Terra em expansão.

Carey, geólogo da Universidade da Tasmânia morto em 2002, e Owen, estratígrafo aposentado do Mu-seu Britânico de História Natural, em Londres, afirmam que os dinossauros andaram sobre um planeta 80% menor do que a Terra atual. A principal evidência disso seria o fato de que, se tentássemos juntar a Áfri-ca e a América do Sul num modelo esférico, rebobinando a deriva continental, eles não se encaixariam. Sobrariam “buracos” no globo.

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Owen resolveu esse problema geométrico afirmando, em 1983, que a Terra se expande continuamente, idéia que os geofísicos consideram absurda. Para a maioria deles, o leito oceânico é reciclado o tempo todo. O que acontece é que as placas que estão no fundo do Atlântico estão se afastando, o que aumenta a área do fundo do mar. Para compensar esse movimento, a massa de terra que compõe as Américas avança sobre a placa oceânica do Pacífico. Esse movimento alimenta os vulcões nos Andes e causa a subducção – o afundamento e derretimento – da placa do pacífico.

Em entrevista à Sapiens, Owen confessa não ver “nada de errado” com a tectônica. Para ele, a expansão é lenta o suficiente para ser compatível com as idéias da maioria dos geofísicos. Já Carey se recusava a admitir a subducção e, portanto, todo o resto da teoria das placas. “Há duas escolas de pensamento sobre a Terra em expansão. A chamada expansão rápida, defendida por Sam Carey e outros, não funciona. Ela traz problemas geométricos”, diz Owen.

Aos 71 anos, Owen afirma não ter tido muitos artigos rejeitados para publicação, mas reclama de preconceito na academia. “Quando você fala de ciência, algumas idéias são controversas. E há pessoas com visões muito firmes que ocupam posições altas nas instituições de pesquisa”, afirma Owen.

Kary Mullis

Idade: 60 anos

Cargo: Vive de escrever livros e dar palestras

Estilo: Inventou o PCR, uma ferramenta que revolu-cionou a genética

Polêmica: Acha que o HIV não causa a Aids

Richard S. Lindzen

Idade: 63 anos

Cargo: Titular de meteorologia do Instituto de Tecnologia de Massachussetts, EUA

Estilo: Casado, vive entre os EUA e a França (“Lá as pessoas fumam”).Escreve com sua mulher um livro sobre a história dos judeus de Paris

Polêmica: Acredita que o efeito estufa não existe

“O ambientalismo é hoje o que a eugenia era no começo do século 20”

Gerta Keller

Idade: 59 anos

Cargo: Professora da Universidade de Princeton, EUA

Estilo: Publica artigos nas principais revistas científicas do mundo. Atualmente, viaja pelas Américas recolhendo rochas para comprovar sua hipótese. Planeja vir ao Brasil

Polêmica: Acredita que o impacto de um asteróide não foi a causa da extinção dos dinossauros

“O conto da cratera da destruição é muito apelativo e imaginativo. Cientistas muito eloqüentes têm promovido essa história, a imprensa adorou, a indústria cinematográfica adorou, todo mundo adorou”

Milford Wolpoff

Idade: 62 anos

Cargo: Professor da Universidade do Michigan, EUA.

Estilo: Casado, pai de dois filhos “que adoram cantar e dançar enquanto eu estou ao telefone”

Polêmica: Primeiro cientista a propor um modelo em que a origem do homem moderno está no cruzamento entre Homo erectus, neandertais e Homo sapiens

“A ciência é uma atividade humana. Há quem revise artigos não com base no mérito, mas sim pelo gosto pessoal. e revistas científicas rejeitam textos quando não gostam da conclusão”

Warren Carey

Idade: Morto em 2002, aos 91 anos

Cargo: Era professor de geologia da Universidade da Tasmânia

Estilo: Deixou mulher, quatro filhos, sete netos e dois bisnetos

Polêmica: Propôs, junto ao britânico Hugh Owen, a teoria da Terra em expansão, segundo a qual o diâmetro do planeta hoje é 80% maior que há 200 milhões de anos

“Não sou mais um rebelde. As pessoas agora acreditam na minha teoria. Ou pelo menos vão acreditar um dia. Demora um tempo para que alguns consigam acompanhar essas coisas”

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