Peixe amazônico bota ovos fora da água e depois precisa regá-los
O tetra-splash desova em folhas, troncos e até tampos de aquário – estratégia rara que exige saltos coordenados e cuidado parental em tempo integral.

Na divisão dos animais em reinos, os peixes vivem na água, enquanto os anfíbios se dividem entre os ambientes aquáticos e terrestres. É claro que existem muitas outras diferenças, mas essa é bastante básica, certo? Nem sempre.
É que alguns peixes podem optar por uma vida híbrida: passam o tempo todo na água, mas botam seus ovos fora dela. Eles fazem isso por meio de saltos de desova: os machos pulam e lançam esperma na área escolhida, que pode ser uma folha, um tronco ou até um tampo de aquário. A fêmea vem em seguida, com um salto semelhante, lançando óvulos no mesmo local.
O nome desses acrobatas é Copella arnoldi, ou tetra-splash, como são conhecidos no mercado internacional de peixes ornamentais. Eles vivem em rios amazônicos, e só se sabe de outras duas espécies que fazem esse tipo de salto de desova em rios neotropicais (próximos a linha do equador).
A prática é mais comum em espécies marinhas, que vivem em áreas costeiras e sob o efeito de marés. No caso dos tetra-splash, a complexidade do trabalho não termina nos saltos alinhados.
Os embriões ainda levam três dias para eclodirem em peixinhos independentes. Só que, diferente de répteis e aves, os ovos de peixes não têm cascas duras, e se desidratam rapidamente em contato com o ar. Para protegê-los, então, os machos precisam ficar de plantão na beirada dos ovos, espirrando água a cada um minuto durante os três dias.
Mas qual seria a vantagem de um mecanismo de reprodução tão elaborado, arriscado e único?
“Essa é a pergunta de milhões”, diz, rindo, o pesquisador Rafael Farias, técnico da Universidade Federal do Pará (UFPA) que estudou os tetra-splash durante o seu mestrado em zoologia. Ele explica que alguns pesquisadores acreditam que essas espécies aproveitam a maior concentração de oxigênio atmosférico no desenvolvimento dos embriões.
Mas a maior vantagem estaria na proteção contra predadores: na água, os ovos seriam alvos mais fáceis de outros peixes, e teriam que competir por espaço com ovos de outras espécies.
O estudo de Farias também identificou um padrão sazonal na reprodução dos tetra-splash. A espécie tem dois picos reprodutivos ao longo do ano: em dezembro, início da estação chuvosa amazônicas, e em abril, quando as chuvas atingem seu auge.
Essa sincronia pode ser o segredo para proteger os ovos ao ar livre. Os peixes possuem receptores capazes de captar as mudanças da água quando está chovendo. E isso dá início uma reação fisiológica. Nessa hora, mesmo sem precisar ir lá fora, os peixes machos sabem que não é mais necessário molhar os ovos – e eles podem descansar, procurar alimentos e se proteger de predadores. A chuva os poupa da labuta de respingar água a cada minuto.
A análise de Farias, publicada na última sexta-feira (30) na revista científica Neotropical Ichthyology, também revela outro dado importante: com qual tamanho os peixes começam a se reproduzir. Os dados sugerem que eles atingem a maturidade sexual quando alcançam 1,8 centímetro. Quando crescem um pouco mais, com 2,1 cm, todos já são capazes de se reproduzir.
Esses números devem servir de parâmetro para orientar políticas de captura que preservem a reprodução da espécie. Hoje, não existe nenhuma diretriz em vigor sobre a ela. O comportamento único dos tetra-splash faz deles queridinhos da exportação, presentes em coleções e aquários ao redor do mundo. Mesmo assim, Farias afirma que ainda não há transparência sobre os dados de pesca e exportação que garantam a preservação da espécie.
“Esse dado [gerado na pesquisa] pode ser usado para a elaboração de políticas ou planos de captura que garantam que apenas indivíduos sexualmente maduros sejam capturados para o comércio de peixes ornamentais, o que evitaria a captura de juvenis e a manutenção de um bom tamanho populacional”, explica Farias em comunicado.
Além disso, outra preocupação é como as mudanças climáticas podem impactar o ritual dos C. arnoldi. Nos últimos anos, por exemplo, a Amazônia tem enfrentado secas severas, que baixam os níveis dos rios. Farias explica que qualquer tipo de mudança ambiental poderia afetar tanto a reprodução dela quanto o cuidado parental – a parte em que os machos jogam água nos ovinhos.
“Não sei dizer se isso significaria a extinção da espécie, mas é certo que aquelas com nicho ecológico muito restrito são as primeiras a sofrer com as mudanças climáticas”, afirma.
Em larga escala, a seca na Amazônia implica em desabastecimentos, falta de água potável, isolamento de comunidades e incêndios. Com um microscópio, daria para enxergar os ovinhos de tetra-splash abandonados em uma folha ressecada – uma tragédia para uma família de peixinhos.