Queda de árvore na Amazônia revela urnas funerárias indígenas
Vasos com ossos de humanos e peixes foram encontrados em ilhas artificiais construídas pelos povos da floresta.

Walfredo Cerqueira é um manejador de pirarucu, praticante da pesca sustentável desses peixes gigantes entre as comunidades locais da Amazônia. Os povos da floresta se organizam para estabelecer diretrizes para a conservação desses peixes de rio, garantindo a biodiversidade e a renda e alimentação proveniente da pesca.
Certo dia, ele recebeu fotos de alguns potes de cerâmica avistados por moradores do município de Fonte Boa, no Amazonas. Os artefatos foram encontrados depois que uma árvore caiu e expôs suas raízes.
Walfredo entrou em contato com o padre Joaquim Silva, da Pastoral Carcerária de Tefé, que contatou os arqueólogos que pesquisaram a região. Quando o grupo de pesquisadores chegou lá, eles descobriram que não estavam olhando só para algumas cerâmicas escondidas no meio da vegetação, mas para urnas funerárias que ajudam a entender os hábitos de indígenas que viveram na região.
A descoberta, trabalho conjunto de pesquisadores do Instituto de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá e membros de comunidades locais, foi divulgada pelo Ministério de Ciência, Tecnologia e Inovação. As urnas revelam hábitos dos povos originários que viviam na região do Médio Solimões, na área onde hoje fica o sítio arqueológico conhecido como Lago do Cochila.
Até o solo é evidência arqueológica
O Lago do Cochila é composto por várias ilhas artificiais, construídas pelos povos da floresta há séculos ou até milênios. Essas áreas alagáveis foram elevadas artificialmente pelos indígenas, que usaram terra ou pedaços de cerâmica para sustentar a área onde construíam suas casas e realizavam suas atividades sociais.
Esse projeto de engenharia indígena sofisticada permitia que eles continuassem na região mesmo no período das cheias. O próprio solo onde as urnas funerárias foram encontradas é uma evidência arqueológica.
Debaixo da árvore que caiu na várzea de Fonte Boa, os arqueólogos encontraram sete cerâmicas grandes, sem tampas aparentes. Quando inspecionaram os vasos, acharam ossos de humanos, peixes e quelônios, todos enterrados juntos. Os sepultamentos provavelmente tinham relação com as práticas de alimentação dos indígenas da região.
Essas urnas funerárias apresentam características inéditas entre os achados arqueológicos da região. A falta de uma tampa aparente pode significar que elas eram seladas com materiais orgânicos, que passaram por um processo de decomposição enquanto estavam enterradas. As sepulturas não eram muito profundas: os vasos foram encontrados a 40 centímetros de profundidade, provavelmente debaixo de antigas casas.
A escavação das urnas teve participação ativa das pessoas que vivem na região do Médio Solimões hoje. Não teria dado certo sem as comunidades locais, que construíram uma estrutura com madeira e cipós, a 3,2 metros do chão, para lidar com o terreno complexo onde as urnas estavam enterradas. O sítio de Lago do Cochila está a várias horas de viagem da comunidade mais próxima, então as peças de cerâmica foram transportadas por canoa.
Nos últimos anos, cada vez mais projetos de arqueologia na floresta estão unindo sabedoria tradicional e pesquisa científica moderna. Na Super, a gente já contou a história do projeto Amazônia Revelada, que usa um método high-tech de mapeamento de terreno com laser para encontrar sítios arqueológicos indicados pelos povos da floresta.
Por enquanto, o estilo dos fragmentos de cerâmica não apresenta associação direta com outras tradições conhecidas na região da Amazônia. Mais estudos podem ajudar a entender por que pessoas eram enterradas junto de tartarugas e peixes. Por enquanto, já dá para ver mais uma evidência da diversidade cultural dos povos da floresta.