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Tal pai, tal filho?

Um pai inteligente vai gerar um filho inteligente? Afinal: talento, comportamento e vocação estão impressos nos genes?

Por Da Redação Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 31 out 2016, 18h52 - Publicado em 30 nov 2002, 22h00

Leandro Narloch

O escritor Alexandre Dumas, de Os Três Mosqueteiros, é pai do escritor Alexandre Dumas, de A Dama das Camélias. Isso prova que o talento está nos genes? O cantor Xororó é pai de uma dupla que faz mais sucesso do que ele – Sandy e Júnior. Prova cabal de que não só a voz, mas também a empatia com o público estão gravadas no DNA? Então, como explicar que Leopold, um esforçado violinista austríaco, tenha gerado Mozart? Que mistério separou Pelé, o maior jogador da história, de seu filho Edinho, um goleiro no máximo dedicado. Afinal, talento, inteligência e mesmo comportamento passam de pai para filho? Como? Pelos genes, como a cor dos olhos e a calvície, ou pela convivência familiar? O que teria tido maior influência na formação do escritor Luís Fernando Verissimo: o DNA ou a biblioteca do pai Érico?

A polêmica é velha, mas está atualizadíssima por novos estudos da neurociência e da genética comportamental, que tornaram quase inegável a tese de que o que há dentro da nossa cabeça sofre influência dos genes. No entanto, tem muita gente que ainda não está convencida.

Não é à toa que esse papo de inteligência ser hereditária gera polêmica. A crença na hereditariedade de traços intelectuais deu origem a muitas tragédias no passado. Tudo começou no século 19, logo após Charles Darwin publicar A Origem das Espécies. Seu primo Francis Galton aplicou a teoria da seleção natural para humanos, criando a infame teoria eugênica. Imaginou algo que hoje dá medo: a possibilidade de aprimorar a raça humana com cruzamentos genéticos planejados. Nessa época, “cientistas” saíam pela África com colete de caçador e cachimbo, medindo crânios, para disparar conclusões deste tipo: os europeus são mais inteligentes que os africanos porque têm o cérebro dois centímetros maior. Era o ápice da crença na inteligência como parte da natureza, inata e portanto imutável. Acontece que, por trás das mãos precisas, munidas de régua e embasadas pelo imparcial discurso científico, estavam os preconceitos da época. As pesquisas partiam do princípio de que a raça branca é superior.

Não é à toa que histórias como a de Tarzan surgiram no fim do século 19. Vivendo na selva desde menino, Tarzan é um homem que conservou o nível de inteligência, a moral e os valores ocidentais mesmo vivendo entre árvores e bichos.

A preocupação com a “degeneração da raça” era comum no começo do século 20. Os cientistas saíram em busca do humano ideal, livrando-se do “imperfeito”. Em 1907, o estado americano de Indiana aprovou uma lei de esterilização obrigatória para “criminosos, idiotas, estupradores e imbecis”.

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A lei virou moda nos Estados Unidos. Estima-se que 60000 esterilizações forçadas tenham sido realizadas por lá. Em 1927, a Suprema Corte americana permitiu a esterilização de uma doente mental argumentando que “três gerações de imbecis são o bastante”. A eugenia esteve presente em todo o mundo, não só na Alemanha nazista, que se notabilizou por isso.

Esses desastres deram um mau nome para a genética e a tese de que o talento passa de pai para filho passou a ser identificada como antidemocrática e preconceituosa. Hoje, entretanto, a própria ciência oferece substrato para o multiculturalismo e a tolerância racial. Sabe-se que a diferença de DNA entre dois brancos pode ser maior que entre um negro e um branco. A mal falada genética comportamental deu o braço a torcer e admitiu que os genes só apontam tendências, agindo em interação com o ambiente, e não impondo destinos inexoráveis. “As influências genéticas no intelecto existem, mas estão mergulhadas na interação entre genes, psicologia e desenvolvimento. Não são diretas, nem irreversíveis, nem inescapáveis, nem inevitáveis”, diz o cientista alemão Volkmar Weiss.

Uma pesquisa de neurocientistas americanos e finlandeses, de dezembro de 2001, avançou muito na questão da falta de ligação entre hereditariedade e inteligência. O estudo comparou dez pares de gêmeos idênticos e dez pares de gêmeos fraternos. Todas as 40 pessoas, na idade entre 33 e 51 anos, passaram por testes de QI e exames cerebrais de ressonância magnética. O resultado: 95% dos gêmeos idênticos – com exatamente o mesmo genoma – alcançaram níveis de QI muito semelhantes.

Já entre os gêmeos fraternos – que compartilham metade dos genes – isso aconteceu com só 60% deles. Bateu direitinho com o que os geneticistas esperavam: quem tinha genoma igual tirou nota quase sempre igual; quem tinha genoma 50% igual tirou nota 50% diferente. Outra coisa: os pares que se deram bem nos testes de QI tinham, segundo os exames de ressonância magnética, a região do córtex frontal do cérebro (área acima dos olhos) e regiões de processamento da linguagem maiores e mais desenvolvidas. Ou seja, a inteligência parece mesmo estar associada, senão ao tamanho do crânio, pelo menos à quantidade de massa cinzenta.

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Isso não significa que quem tem um lóbulo frontal mais desenvolvido está com a vida feita – nem que os recrutadores do departamento de recursos humanos deveriam admitir o pessoal analisando radiografias do cérebro. Primeiro, porque o que se herda, segundo a pesquisa, é a capacidade de ser inteligente, e não a inteligência em si (as potencialidades precisam interagir com o ambiente). Segundo, porque o que se chama de nível de QI não é a medida da capacidade em todas as técnicas e áreas de conhecimento.

QI mediria o raciocínio lógico, que ajuda as pessoas a irem bem na escola, mas não as torna mais criativas. “Nossa pesquisa mostra que os genes determinam os limites”, diz Paul Thompson, professor da Universidade da Califórnia e coordenador do estudo. Quer dizer então que não é certeza que um casal talentoso gerará apenas gente talentosa?

Não. E quem pode negar essa hipótese com autoridade é a estudante Ann McMillan Nunes, 19 anos, americana de Santa Clara, Califórnia. Ela é fruto do Repositório de Escolha Germinal, um banco de esperma criado em 1981 por um magnata californiano chamado Robert Graham. Usando apenas o esperma de vencedores de Prêmios Nobel e óvulos de mulheres de alto QI, Graham pretendia criar uma geração de gênios. Ann, nascida a partir de um espermatozóide de Edwin McMillan, Nobel de Química de 1951, deveria ser um deles. “Eu me considero uma pessoa inteligente e feliz, mas não mais inteligente nem mais feliz que a média”, diz ela.

A saída que os neurocientistas encontram para explicar casos assim é que as influências do DNA no intelecto não são determinadas pelas simples leis mendelianas – de genes recessivos e dominantes, que a gente aprende na escola. As tendências seriam poligênicas, determinadas pela combinação de vários genes. Ou seja: para a ciência, caracteres intelectuais podem ou não passar de pai para filho – depende das complexas e imprevisíveis combinações de um monte de genes.

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Um modelo ótimo para testar essas teorias são os gêmeos idênticos. Essas pessoas têm o código genético absolutamente igual. Ou seja, se talento e inteligência estão mesmo no DNA, então é de se esperar que esses pares de irmãos tenham capacidades bem parecidas, mesmo quando criados longe. “Nos últimos dez anos, vários estudos mostraram gêmeos idênticos que viviam há muitos anos em ambientes diferentes – experimentando cultura, religião e situação financeira diversas – e apresentavam características comportamentais parecidas, como depressão ou QI”, diz Marco Calegaro, professor de Psicologia da Universidade do Sul de Santa Catarina.

Em 1996, psicólogos americanos apresentaram um estudo polêmico mostrando que o irmão idêntico de alguém que se divorcia tem seis vezes mais chances de tomar o mesmo caminho e se separar da mulher. Entre gêmeos fraternos, a estatística deu o esperado: a probabilidade cai pela metade. Os pesquisadores sabem que o divórcio é um conceito cultural e restrito – seria absurdo que se divorciar fosse genético.

O que aumentava, segundo eles, era algo mais amplo: a tendência de não se limitar a apenas um parceiro.

Outro método de pesquisa bastante útil é o de comparar filhos adotivos com os pais sociais e os biológicos. Se os garotos têm comportamento parecido com o dos pais adotivos, então a transmissão foi cultural. Se eles lembram mais os pais biológicos, de quem se separaram com poucos meses de vida, ponto para a herança genética. Em 1977, os pesquisadores dinamarqueses Mednick e Christiansen compararam a ficha policial de homens adultos que foram crianças adotadas na década de 50 com a ficha policial dos pais adotivos e dos pais naturais. O resultado mostrou que o comportamento era mais influenciado pela genética que pela convivência. Quando o pai adotivo tinha a ficha suja, 12% dos filhos seguiam o mesmo caminho. Quando os pais biológicos tinham conduta violenta, a estatística passava para 22% dos filhos com o mesmo comportamento.

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Mas a pesquisa também ajudou a demonstrar que o ambiente tem seu poder: quando os dois pares de pais haviam cometido crimes, o número de filhos criminosos pulava para 36%. Mesmo assim, em nenhum dos casos a taxa passava de 50%. Prova de que o que passa de pai para filho, seja pela genética ou pelo convívio familiar, são tendências e não destinos inexoráveis.

E os dons? O que explica a presença de habilidades especiais para a música ou para o desenho em crianças de 5 anos? Segundo Carmen Mendoza, professora de Psicologia da Universidade Federal de Minas Gerais, talentos inatos podem aparecer em forma de maior habilidade cognitiva necessária para cada expressão artística. Há poucos números sobre isso, mas, segundo ela, as habilidades mais influenciadas geneticamente são o raciocínio verbal (essencial para escritores), o raciocínio numérico e o espacial (aquele usado para enxergar em um tronco uma escultura). Na música, o talento inato aparece em forma de “ouvido absoluto”, a capacidade de reconhecer uma nota musical sem a referência de outra.

Há controvérsias. Para Paulo Venturelli, escritor e professor de educação infantil na Universidade Federal do Paraná, talento não pode ser hereditário porque é um conceito que depende mais dos outros que de nós mesmos. Tanto que cada época define o que considera talentoso. A história tem vários exemplos de pessoas hoje consideradas gênios que passaram despercebidas no passado. Bach foi considerado em sua época um ótimo organista e um mau músico. O pintor Van Gogh, tido hoje como genial, morreu na miséria.

Segundo Carmen, o peso da genética na formação da inteligência é de 70%, e não se pode aumentar muito a inteligência de uma pessoa. A professora se baseia em três estudos realizados na década de 70 com crianças de até dez anos. Nos três, melhoraram a saúde, a nutrição e a educação das crianças, mas o QI subiu só dez pontos.

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Enquanto isso, cientistas mais humanistas sequer reconhecem a validade dos testes de QI, usados em quase todas as pesquisas sobre hereditariedade de traços intelectuais. “Inteligência é um processo de ligação com o mundo, de se entender e se colocar no mundo. Sendo um processo, não é algo pronto, não é mensurável”, diz Venturelli. “Por isso, elucubrações acerca de características inatas são bobagem”, afirma. Será? “É claro que a inteligência pode ser medida”, diz Carmen. Por acaso deficientes mentais são iguais a gênios? Cada especialista pode ter sua opinião, mas para convencer a comunidade científica é preciso apresentar dados, e não usar a base emocional”, afirma.

O assunto desperta paixão porque acerta em cheio na concepção do ser humano. Tem gente que acha que o homem é único, contraditório, imprevisível, não um robozinho determinado pelos botões do genoma. Outras pessoas fascinam-se com esse complexo mecanismo bioquímico e interpretam como uma vã rebeldia a vontade do homem de se achar maior que ele. A essência da vida são as experiências adquiridas ou a longa cadeia de DNA? Tudo indica que não seja nem um nem outro, mas um pouquinho de cada.

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