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Táticas vegetais

As plantas podem não ser tão burras assim: teoria controversa diz que seres como a batata, a maconha, a tulipa e a maçã se aproveitaram dos nossos desejos para prosperar

Por Da Redação Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 31 out 2016, 18h51 - Publicado em 31 out 2004, 22h00

Álvaro Oppermann

Russet Burbank. Esse é o nome de uma das batatas mais cultivadas no mundo. Você já deve tê-la experimentado: é a batata do McDonald’s. A única que, quando frita, fica com um visual simétrico, dourado e – o mais importante – longa o bastante para preencher a embalagem de design longilíneo próprio da rede. Fatiada, ela não se despedaça.

Essa idiossincrasia garantiu à Russet o direito à proliferação no planeta. É um clássico exemplo de como o homem manipulou a natureza a fim de satisfazer os seus objetivos, certo? Talvez não. Essa pode ser somente a nossa versão da história do convívio entre as espécies. Nada impede que possam existir mais versões, a partir do ponto de vista de outros seres vivos. Uma delas é a seguinte: plantas e animais concordaram em satisfazer os nossos desejos e paixões a fim de se perpetuarem. Agradar ao homem não passou de uma artimanha evolutiva do mundo natural. O ser humano manipulou a natureza, mas em troca foi manipulado por ela.

Essa é a tese polêmica do jornalista ambiental americano Michael Pollan, autor do livro The Botany of Desire (“A Botânica do Desejo”, inédito no Brasil). É também a opinião de pesquisadores como Tony Trewavas, da Universidade de Edimburgo, na Escócia, um dos defensores da idéia de que as plantas possuem inteligência. “Quando se sabe que 99% da biomassa terrestre é de origem vegetal, isso nos mostra que elas estão fazendo alguma coisa certa”, afirma Trewavas. Michael Pollan, não sendo cientista, é cauteloso em suas declarações. Como ele mesmo diz, seu trabalho foi fazer um “esforço de imaginação”. “A linguagem humana não está aparelhada para abarcar a complexa variedade de relações na natureza”, diz. Uma dessas relações seria a manipulação dos homens pelas plantas.

Inteligência vegetal

Em “A Botânica do Desejo”, o autor examina quatro casos de vegetais muito bem-sucedidos nessa técnica. Ele investiga as táticas evolutivas das plantas ao narrar a história do cultivo da maçã, da maconha, da batata e de flores como a tulipa. Segundo a tese de Pollan, tais criaturas ganharam uma gigantesca presença na demografia vegetal porque saciaram – ahn, deliberadamente – nossos anseios. A maçã satisfaz nossa busca por doçura, a maconha nos ganhou com seu poder de intoxicação, a batata explorou nosso desejo de controlar a natureza e as flores seduziram os humanos aprimorando sua beleza. São, na visão do escritor, casos brilhantes de marketing evolucionário.

Mas como ocorre essa manipulação de desejos dos homens? As respostas estão, segundo Michael Pollan, na própria imobilidade das plantas. “Plantas nunca puderam escapar de seus predadores. Há cerca de 100 milhões de anos, elas descobriram maneiras de seduzir os animais para que carregassem os seus genes a fim de sobreviver.” A imobilidade é em si um empecilho para que os humanos vejam tais seres como inteligentes. “Somos condicionados a ligar inteligência e ação”, diz Trewavas. É claro que a tese inovadora tem os seus críticos. Andrew Goldsworthy, do Imperial College de Londres, encara as idéias de Pollan com extremo ceticismo. “Isso que alguns cientistas chamam de ‘inteligência vegetal’ se parece mais com os nossos reflexos condicionados. As amebas também tomam decisões ‘inteligentes’ no seu ambiente natural.” Rolf Pfeifer, pesquisador de inteligência artificial na Universidade de Zurique, na Suíça, não é tão incisivo – ele admite que hoje nem existe consenso sobre o que seja inteligência. Em defesa da tal esperteza vegetal, Tony Trewavas afirma: “O poder das plantas de computar dados, antecipar situações e de ter memória corroboram a idéia de que nos encontramos diante de uma nova forma de inteligência”.

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Os ardis das flores

Um dos estratagemas mais notáveis das “mentes vegetais” pode ser observado na evolução das plantas ornamentais. A associação de beleza com as flores é automática. Para Pollan, no entanto, elas são muito mais que rostinhos bonitos – embora saibam direitinho como tirar vantagem dessa qualidade. As flores foram o motor do planeta tal como o conhecemos. “O mundo de 200 milhões de anos atrás não possuía flores. A vida, sem elas e sem frutos, não permitia a existência de vertebrados superiores. Era um mundo dominado pelos lentos répteis, um mundo mais sonolento.” A flor deu nova dinâmica à Terra; de quebra, descobriu maneiras inauditas de seduzir os outros seres vivos – de insetos a humanos.

Um player exímio no marketing da beleza foi a tulipa na Amsterdã do século 17. Ela não só se tornou a flor mais popular dos Países Baixos, como movimentou montanhas de dinheiro ao virar objeto de um culto insano por parte dos holandeses – algo admirável para uma flor sem perfume. Para compensar essa característica, a tulipa desenvolveu cores de uma intensidade incomparável à de qualquer outro vegetal. Como? Culpa de um vírus que se hospedava na planta – a flor só atingia o sublime quando doente. Exterminado o vírus, boa parte do fascínio da tulipa desapareceu.

Para seduzir pequenos animais, as orquídeas lançam mão de táticas bem menos sutis. Seu apelo é explicitamente sexual. Algumas espécies mimetizam insetos. Os cientistas da Inglaterra vitoriana pensavam que isso era uma tática para espantar insetos reais. Engano. Era sim uma forma de atraí-los. Oferecendo a eles uma falsa cópula, as orquídeas eram pagas em troca com uma polinização fácil. São conhecidas hoje como “orquídeas-prostitutas”.

Efeitos colaterais

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As estratégias vegetais descritas por Michael Pollan podem ser uma faca de dois “legumes”. Se garantem a prosperidade a certas plantas, ameaçam essas mesmas espécies devido à redução da diversidade. É a praga da monocultura. As plantações de batata da Irlanda, que no século 19 se limitavam a uma única espécie, foram dizimadas por um vírus em 1845. Resultado: fome e peste. Desde então, a batata é um símbolo preocupante da civilização.

O mesmo pode ser dito da maçã. Das milhares de espécies existentes nos Estados Unidos no século 19, sobraram seis. No Brasil, a situação não é melhor: três espécies, a gala, a fuji e a golden delicious, correspondem a 97% da população de macieiras do sul do país. O sucesso no marketing vegetal coloca em perigo a biodiversidade no planeta. “Já não é mais um problema de horticultura, mas sim de cultura”, diz Pollan.

A natureza, contudo, parece ter encontrado uma solução viável para contornar a crise, com santuários ecológicos em que centenas ou milhares de espécies convivem e se perpetuam. Em 1929, o cientista russo Nikolai Vavilov encontrou em Alma-Ata, no Casaquistão, o santuário das maçãs, o sítio primordial em que elas se desenvolveram no planeta. Hoje em dia, cientistas americanos já transplantaram milhares de mudas das macieiras de Alma-Ata para os Estados Unidos. A preservação das espécies mais do que nunca é um dever ético do homem. “O homem e a natureza estão no mesmo barco”, é a conclusão de “A Botânica do Desejo”. Garantir a perpetuação das espécies é garantir a nossa existência. E isso é uma tarefa que só cabe a nós fazer. Ou não, caso você concorde com Michael Pollan.

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Maçã

Entre o paraíso e o inferno

Adular americanos foi um lance de sobrevivência até para a maçã. Apesar de ter gozado de prestígio na China e na Roma antigas, a fruta passou por maus bocados na Europa medieval – os católicos atribuíam a ela a expulsão de Adão e Eva do paraíso. Injustiça, segundo os protestantes que foram de mala e cuia para o Novo Mundo (a fruta do pecado não fora especificada na Bíblia). Na América, milhares de espécies floresceram. Nem todas eram comestíveis, mas os colonos não se importavam: eles estavam interessados na cidra, bebida alcoólica à base de maçã. O tempo fechou no início do século 20, quando a Liga da Decência das Mulheres Cristãs decidiu implicar com a fruta preferida dosbebuns. Era a hora certa para a planta mudar de imagem e investir na doçura – o que se revelou uma jogada genial. Como fruto doce, a maçã prosperou em solo americano.

Sobe

China, dois milênios antes de Cristo: já era usada a técnica do enxerto para conseguir frutas melhores

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Sobe

Roma antiga: 23 tipos de maçãs eram cultivados

Desce

Europa medieval: os católicos viam a maçã como a fruta do pecado

Sobe

Recuperação com os protestantes nos Estados Unidos. Diziam que a Bíblia não especificava a fruta do Jardim do Éden. Pior era a uva, fruta da embriaguez dos católicos

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Sobe

Estados Unidos, século 19: milhares de espécies foram cultivadas para fazer a cidra, bebida alcoólica

Desce

Início do século 20: as senhoras cristãs americanas lançam uma cruzada contra a fruta dos bêbados

Sobe

Século 20: a doçura da fruta tornou-a extremamente popular

Hoje

Cenário incerto. Das milhares de espécies do passado, sobraram seis nos Estados Unidos. No Brasil, a situação é ainda pior – três espécies correspondem a 97% do total de maçãs

Batata

Dos incas à fast food

A curiosa e reveladora história do cultivo das batatas, que começou com os incas, deu uma guinada no século 16 – quando a planta foi levada para a Europa. Estranho que um tubérculo tão disforme tenha disparado no homem o desejo que Pollan chama de controle. Desde a mudança para o Velho Mundo, a batata segue atiçando nos plantadores o desejo da uniformização. Primeiro com a monocultura. Na América, com as plantações em que computadores controlam tudo. Tal ímpeto uniformizador está por trás, por exemplo, das fatias simétricas das fritas no McDonald’s. O polêmico autor diria que nada disso ocorre ao acaso. As plantas têm suas estratégias: a da batata foi a de jogar com a imagem ideal que o homem fazia dela. Assim garantiu uma gigantesca presença na demografia vegetal.

Estável

Até por volta de 1500 eram cultivadas diversas espécies pelos incas, aqui na América do Sul

Sobe

A partir do século 16: levada para a Europa, resolveu o problema da fome na Irlanda e se tornou popular em todo o continente

Desce

Irlanda, 1845: um vírus dizima os batatais, causando fome geral

Hoje

A batata frita das cadeias de fast food domina o mundo. Hoje ela é ameaçada pelos riscos da monocultura

Maconha

A sedução do esquecimento

Outra arma de sedução vegetal seria atender o desejo humano por intoxicação. A maconha prosperou graças a ele. O THC, composto químico ativo da planta, deixa os predadores confusos – é um mecanismo de defesa. Mas por que ele nos atrai? A pista é dada pelo israelense Raphael Mechoulam, que encontrou no cérebro humano uma substância parecida com o THC. Batizou-a de anandamida, da raiz do sânscrito ananda, “alegria beatífica”. Segundo Mechoulam, fabricamos tal droga para nos esquecermos de algumas coisas. “Você gostaria de se lembrar de todos os rostos com que cruza no metrô?”, diz. Esquecer é tão importante quanto lembrar. E a alteração da consciência parece estar ligada ao prazer e à transcendência. Para a planta da maconha, é muito mais: trata-se uma questão de vida ou morte.

Estável

Há mais de 2 mil anos, era conhecida por suas propriedades medicinais

Sobe

Década de 1960: o ambiente nos Estados Unidos era bem mais liberal que hoje e os hippies fumavam livremente a maconha vinda do México ou da Ásia Central

Desce

Anos 80: início da guerra às drogas do governo Reagan

Sobe

Final dos anos 80: o cultivo passou a ser feito entre quatro paredes. Poderosos híbridos são desenvolvidos

Sobe

A partir dos anos 90: as novas variedades estão cada vez mais poderosas, com teores mais altos de THC

Hoje

Prognóstico de futuro brilhante, com o consumo crescente e o abrandamento da lei em diversos países

Para saber mais

Na livraria:

The Botany of Desire: a Plant’s Eye View of the World – Michael Pollan, Random House, 2002

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