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Travessia do Oceano Ártico: A conquista da passagem noroeste

Dois modernos exploradores, a bordo de um veleiro catamarã, conseguiram atravessar os 4 mil quilômetros do gelado Oceano Ártico, ao norte do Canadá, apenas com a força do vento.

Por Da Redação Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 31 out 2016, 18h46 - Publicado em 30 nov 1989, 22h00

Os nomes dos acidentes geográficos no labirinto de ilhas que formam o norte do território canadense, 800 quilômetros acima do Círculo Polar Ártico, homenageiam os muitos exploradores que ali estiveram em busca de uma rota marítima entre o Atlântico e o Pacífico, passando pela América do Norte. Baffin, Hudson, Parry, Fox, Davis, Bylot são figuras lendárias que arriscaram as vidas atraídos pela promessa de fama e fortuna a quem abrisse a chamada Passagem Noroeste. Neste século, até navios de grande porte já fizeram a travessia. Mas só no ano passado dois exploradores canadenses, o esportista Jeff MacInnis, 26 anos, e o fotógrafo Mike Beedell, 32, conseguiram navegar pelas águas gélidas e perigosas, a bordo de um pequeno veleiro.

Foi o explorador norueguês Roald Amundsen – o mesmo que em 1911 conquistaria o pólo Sul – o primeiro a travessar a Passagem Noroeste. Na história da região há um lugar especial para o navegador inglês Sir John Franklin, que em 1845 se perdeu ao largo da Ilha Rei Guilherme com seus dois navios e 129 homens. As várias expedições para resgatá-lo e sua tripulação não encontraram nenhum vestígio do naufrágio, mas serviram para mapear melhor o caminho entre as ilhas geladas. O sonho dos navegadores dos países de Atlântico Norte era abrir a Passagem Noroeste para o tráfego marítimo comercial, o que diminuiria, por exemplo, a distância entre Londres e Tóquio de 23 mil quilômetros (via Cabo da Boa Esperança, contornando a África) para apenas 12 mil. Mas o frio, a ameaça de gigantescos icebergs e as violentas tempestades de neve nunca fizeram a rota muito popular entre as companhias de navegação.

Veteranos de expedições ao Ártico, Jeff MacInnis e Mike Beedell sabiam o que os aguardava quando iniciaram a viagem a 20 de julho de 1986, em Inuvik, quase na fronteira entre o Canadá e o Estado americano do Alasca. Por isso eles se prepararam durante dois anos. Escolheram também um surpreendente meio de transporte para a empreitada: um veleiro catamarã do tipo Hobie Cat, feito de fiberglass e medindo apenas 18 pés (5,5 metros) – quatro vezes menor do que o veleiro dotado de motor, Gjöa, usado por Amundsen na sua viagem pioneira. O Perceptiond’água, como foi chamado, provou ser o barco ideal naquelas circunstâncias.

Pequeno, ainda assim o valente catamarã enfrentou as tempestades geladas na zona polar com bastante estabilidade. Deslizou suavemente pelas passagens estreitas entre as ilhas. E, quando o gelo se tornou um obstáculo intransponível, ele pôde ser arrastado, embora com muito esforço, pela tripulação. ”Nós lhe devemos não apenas nosso sucesso como também nossas vidas”, escreveria MacInnis em seu diário no final da viagem. Para enfrentar o frio de 20 a 30 graus negativos, os dois viajantes usaram roupas térmicas à prova d’água criadas para os pilotos de combate americanos. Tomaram o cuidado de não ficar amarrados ao barco: embora fosse grande a tentação de se sentirem mais seguros, o número de cabos a bordo era mais do que suficiente.

Além disso, se por infelicidade o Perception virasse ou afundasse, eles não correriam o risco de serem arrastados juntos. Durante a fase dos preparativos, MacInnis e Beedell estudaram o relato de seus antecessores, mas sabiam que não podiam prevenir-se 100 por cento contra um encontro com certeza fatal com alguns dos cerca de 50 mil icebergs que se calcula haver espalhados pela região. Mas isso não aconteceu. A primeira parte da viagem foi tranqüila. No final do breve verão polar, eles se divertiram na Baía de Cambridge, Ilha Vitória. Haviam percorrido mais de mil quilômetros.

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Para aproveitar os longos dias, os dois tripulantes do Perception passavam às vezes quase vinte horas velejando. Paravam apenas para acampar sobre a neve ou a terra, quando isso fosse possível. As refeições não consumiam muito tempo. MacInnis e Beedell haviam optado por uma dieta de alimentos leves mas calóricos para enfrentar a dura viagem. Levavam leite em pó, frutas secas, queijo e pratos prontos congelados. Naturalmente, mantê-los na temperatura adequada não era problema. Para as refeições, usavam um fogareiro a gás que também servia para aquecer o casco duplo do catamarã. Feito de fiberglass, o casco precisava ser esfregado com resina de epóxi para não estragar. Os exploradores não precisavam se preocupar com água. No verão, o sal se separa do gelo derretido na superfície do oceano, que assim se torna uma fonte inesgotável de água potável.

O gelo, contudo, era uma preocupação constante. Para os dois viajantes, parecia um gigantesco caleidoscópio, cujas peças se mexiam sem cessar até se juntarem de um momento para o outro formando uma massa compacta. Apesar desse obstáculo portentoso, que teimava em atrapalhar o cronograma de viagem, MacInnis e Beedell fizeram quase 2 mil quilômetros durante o verão de 1987, na segunda tentativa de conquistar a Passagem Noroeste. Conseguiram ultrapassar o trecho de triste memória, ao lado da Ilha Vitória, onde os navios do inglês Franklin naufragaram no século passado. E, na mesma baía, viram um fenômeno intrigante: colinas que queimam permanentemente. Não se trata de diabólicas chamas eternas num lugar de eternas geleiras; mas da combustão, em contato com o oxigênio do ar, de um mineral existente na região chamado jarosita.

Onde outros barcos mais possantes fracassaram, o Perception avançou impávido. Quando o gelo fechava o caminho, a dupla de aventureiros punha os músculos para funcionar e empurrava o barco. Beedell calcula que graças a esse expediente puderam percorrer mais de 50 quilômetros – não de um estirão só, é claro. Afinal, levar o barco de 315 quilos (quase um terço do peso de um fusca) pelo gelo ártico era uma tarefa extenuante, a que eles se entregavam em último recurso. A tripulação não podia nem pensar em descansar enquanto o Perception não tivesse ultrapassado as correntes parcialmente derretidas de neve. Se a água congelasse, o casco do veleiro ficaria preso na armadilha de gelo.

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Enquanto arrastavam o barco, fustigados pelo vento, MacInnis e Beedell rezavam para não cair nas pequenas poças de neve e água derretida ou para não rasgar a roupa, ou ainda para não machucar ou quebrar uma perna. Entre os equipamentos indispensáveis à viagem havia um rádio por meio do qual os dois exploradores mantinham contato com a civilização e assim tomavam conhecimento das previsões de Meteorologia. Mas eles estavam também cientes de que, se acontecesse um infortúnio, seria impossível o socorro localizá-los naquele labirinto de ilhas estreitas. Se um deles se machucasse, o outro sozinho não teria condição alguma de arrastar o barco – e mais o parceiro – quilômetros a fio. No final do segundo verão, cansados do frio e da neve, MacInnis e Beedell pararam na Ilha Somerset, onde deixaram o barco e foram resgatados por ar.

Durante a viagem, eles não ficaram completamente sozinhos. Ao contrário, tiveram companheiros das mais diversas espécies. As focas eram visitas mais constantes. Quando o vento não soprava com força, elas nadavam horas ao lado do Perception, fazendo graciosas piruetas na superfície. Nos dias mais quentes, estendiam-se sobre os blocos de gelo para preguiçosos banhos de sol. Já quase no fim da viagem, MacInnis descobriu sobre um rochedo um ninho de peludos falcões. Uma raposa do Ártico, exausta depois de uma tempestade, fez companhia aos viajantes durante um dos acampamentos. Búfalos também rondaram os intrusos, quando ergueram sua barraca nas Ilhas Richardson.

No terceiro verão, na Ilha de Baffin, um enorme urso branco chegou a entrar na tenda, quando MacInnis e Beedell dormiam um sono dos justos, aconchegados nos seus sacos de dormir. Naturalmente, eles portavam cada um uma arma para emergências, mas eram lúcidos o suficiente para não usá-las num lugar fechado e sem luz para um quase suicida disparo a queima-roupa. Portanto, mantiveram-se completamente quietos enquanto o urso farejava em volta. Depois de alguns minutos, que pareceram horas aos viajantes, sem encontrar nada que o interessasse, o peludo visitante se retirou calmamente. A mesma sorte não teve uma pequena foca, alimento predileto dos ursos polares. Apanhada por dois desses animais, ao largo das Ilhas Tasmania, não houve tempo para que MacInnis e Beedell a salvassem. Quando se aproximaram, os ursos fugiram deixando para trás a foca estraçalhada.

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Nas costas da Ilha Somerset, os expedicionários foram premiados com um espetáculo inesquecível: dezenas de baleias brancas brincando despreocupadamente nas águas transparentes. MacInnis e Beedell podiam ver suas formas fantasmagóricas sob o casco do barco. Os graciosos animais pareciam curiosos pela embarcação, mas não se atreviam a se aproximar muito. Todo verão, centenas de baleias brancas se reúnem nos mares da Baía de Cunningham, ao largo da Ilha Somerset, atraídas pela limpidez das águas. Para estudar o seu comportamento migratório, o governo canadense mantém uma pequena estação de pesquisa na região.

Quando MacInnis e Beedell passaram por ali, três pesquisadores – os biólogos canadenses Tom Smith e Kathy Frost, e o inglês Tony Martin, especialista em cetáceos – ocupavam a estação. Eles procuravam colocar pequenos transmissores de rádio no dorso das baleias para monitorar seus movimentos. Os sinais via satélite, seriam captados no Laboratório de Pesquisa da Universidade de Cambridge, na Inglaterra. O grupo tinha conseguido colocar um transmissor – uma pequena maleta verde – num dos animais, que, por coincidência, os navegantes haviam visto e fotografado dois dias antes da baía.

Para MacInnis e Beedell, o laboratório de pesquisa – apenas um barracão de madeira – parecia um hotel cinco estrelas em comparação com os precários acampamentos que eles próprios montavam. Depois do interminável regime alimentar à base de congelados puderam regalar-se com carne e verduras frescas. Seu aparecimento também foi motivo de alegria na estação. Justamente naquele dia, duas baleias haviam encalhado, devido à maré baixa, no delta de um pequeno riacho que desaguava na baía. Com a ajuda dos dois novos e musculosos pares de braços, os cientistas conseguiram etiquetar e medir os cetáceos. Um deles, uma fêmea de quase 4 metros, era muito grande para ser levada até alto-mar. Teria de esperar pela próxima maré. Sua acompanhante, também uma fêmea, mas ainda filhote, foi arrastada até águas mais profundas onde, depois de algumas acrobacias, desapareceu.

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No final do terceiro verão, MacInnis e Beedell estavam finalmente na reta final na Baía Pond. Mas, apesar da impaciência ainda tiveram de esperar alguns dias. Os ventos que haviam castigado o barco tão ferozmente nas etapas anteriores da viagem desapareceram da região justamente quando mais eram necessários. Assim, os remos, que até aquele momento haviam sido usados principalmente como antenas de rádio, pás ou cortadores de gelo, acabaram servindo para aquilo que tinham sido fabricados: MacInnis e Beedell tiveram de remar os últimos quilômetros. À frente dos dois navegantes, as casas de teto baixo da Ilha de Baffin, emolduradas pelas montanhas glaciais mais distantes, eram uma recompensa que não poderia ser adiada. No dia 17 de Agosto de 1988, dois anos e 4 mil quilômetros depois, Jeff MacInnis e Mike Beedell alcançavam o seu destino. Etapa depois de etapa, a Passagem Noroeste estava finalmente conquistada.

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