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Três histórias inusitadas sobre o tempo

Uma TV só para cães. Conchas que também são calendários. Cronômetro de DNA. O significado do tempo para a biologia em três atos.

Por Bruno Vaiano Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 3 out 2023, 15h20 - Publicado em 23 nov 2018, 17h20
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(Deborah Maxx/Superinteressante)

1.

O tempo está nos olhos de quem vê

Como funciona a DogTV – a primeira TV que pode ser vista por cachorros. E como ela explica a velocidade em que cada animal vê o mundo.

Está no YouTube: um cachorro loiro bonachão abana o rabo com gosto enquanto acompanha com a cabeça o movimento de uma bolinha na tela da TV. A bolinha pula de um lado para o outro em uma pista de skate psicodélica, que parece um protetor de tela do Windows 95. Por vários minutos. Se essa programação soa monótona para você, ótimo, porque ela não é mesmo feita para você: é feita para o cachorro. A DogTV, lançada em outubro de 2017 no Brasil, é o primeiro canal desenvolvido só para deleitar o melhor amigo do homem.

Tudo é pensado nos mínimos detalhes: as cores são reguladas para a visão do animal. Os programas duram 6 minutos, período máximo pelo qual o cãozinho presta atenção em uma coisa só. O mais importante, porém, não se vê: há 10 ou 15 anos, um canal canino seria inviável. Porque cachorros não conseguem assistir TVs de tubo: só Led, LCD ou qualquer tecnologia mais avançada que raios catódicos.

A explicação disso é a seguinte: um vídeo nada mais é do que uma sequência de fotos passada rápido. Tão rápido que seus olhos são incapazes de entender quando terminou uma foto e começou a outra. Cada foto é chamada de frame, e é a fusão dos frames que dá a ilusão de movimento. TVs de tubo exibem no máximo 60 frames por segundo, e isso é suficiente para enganar um ser humano, pois nossos olhos também veem o mundo nesse ritmo. Se você fosse capaz de piscar uma lanterna a mais de 60 hertz, o intervalo entre cada flash seria tão curto que o cérebro se tornaria incapaz de captá-lo: você enxergaria uma luz contínua.

Acontece que esse valor – chamado em inglês de flickr fusion rate, “taxa de fusão de luz piscante” – não é constante na natureza. Animais diferentes precisam que a tela pisque em ritmos diferentes para ter ilusão de movimento. “Cães veem o mundo mais rápido: a taxa de fusão deles é de 70 a 80 piscadas por segundo”, explica Ron Levi, criador do canal. “Isso significa que quando eles assistem uma velha TV de tubo, que exibe algo entre 50 e 60 frames por segundo, eles veem as imagens piscando em vez de ter a sensação de continuidade.”

Em 2013, Kevin Healy, zoólogo do Trinity College de Dublin, na Irlanda, compilou experimentos que medissem essa taxa em diferentes espécies. Ele e sua equipe descobriram uma correlação quase infalível: quanto maior o bicho, menos frames por segundo ele precisa para ver TV. Um pombo exige 100. Um esquilo, 120.

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Há uma razão evolutiva para animais maiores terem olhos mais preguiçosos: a lentidão. Como uma pata de elefante é pouco manobrável, ele não se desloca rápido o suficiente para justificar que seus olhos vejam o mundo num ritmo frenético. Essa energia pode ser dedicada a outras tarefas, mais importantes.

Já a mosca, tão pequena, é muito mais ágil. Os olhos precisam acompanhar o corpo. E aí ela vê em alta resolução. Mas em vez de ser um HD tradicional – mais pixels na mesma área –, é um HD temporal: mais frames por segundo. Não dá para entrar na consciência do inseto, mas você pode imaginá-lo como o personagem Neo, de Matrix, que se esquiva de tiros em câmera lenta. E é isso que o torna tão bom em escapar de tapas.

Não é só a visão que é proporcional ao tamanho. Na natureza, tudo é assim. Os corações de um camundongo (que vive 2 anos) e de uma baleia-azul (que vive 90 anos) pulsam em dois compassos: o do cetáceo, um órgão de 2 toneladas, é vagaroso – bate cerca de 8 vezes por minuto, contra 632 do roedor. O metabolismo e a respiração das baleias são mais lentos. Até seu canto tem uma dimensão temporal diferente da nossa: uma única música de acasalamento dura 30 minutos. Praticamente um Pink Floyd dos oceanos – dividindo o mundo com frenéticos Ramones de rabo.

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(Deborah Maxx/Superinteressante)

2.

O tempo está nas conchas

Como um molusco chamado náutilo conta a história das marés – mês a mês, desde a origem da Terra

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Em 1969, os astronautas da missão Apollo 11 não fincaram só uma bandeira dos EUA na superfície da Lua. Também deixaram para trás uma placa de alumínio de 46 cm, forrada com cem pequenos componentes chamados corner cube reflectors (CCRs). A função deles é, ao refletir um feixe de luz, devolvê-lo para o local exato de onde ele foi emitido. Em outras palavras, são espelhos com mira. Quem emite e recebe esses feixes de luz é um observatório do Jet Propulsion Laboratory (JPL), da Nasa, localizado na Califórnia.

Não é uma medição fácil: apenas 1 em cada 1.000.000.000.000.000.000.000 fótons (as partículas que compõem a luz) volta da viagem. Mas ela é possível. Medindo o tempo que o laser emitido aqui da Terra demorou para ir à Lua e voltar entre 1992 e 2001, descobriu-se que o satélite natural está se afastando de nós 3,8 cm por ano. Parece pouco: na vida de um ser humano, serão no máximo uns 3 m a mais. Mas de grão em grão – e os 4,5 bilhões de anos de idade da Terra são muitos grãos –, a diferença se acumula.

A Nasa confirmou do jeito high tech o que já se sabia na ponta do lápis. O primeiro a perceber a fuga da Lua foi o astrônomo Edmund Halley – sim, o que batizou o cometa –, em 1693. Ele usou as leis de Kepler e Newton para calcular de quais regiões do mundo alguns dos eclipses puderam ser observados por astrônomos do passado – como o árabe al-Battani, no século 9. E descobriu que al-Battani, apesar de ter registrado o fenômeno com precisão, estava fora da área de visibilidade prevista.

O árabe não podia estar errado. Errada estava a Lua. Os cálculos indicaram que, para que essa área de visibilidade fizesse sentido, a Lua teria que estar se afastando da Terra. E isso teria um efeito colateral:

Para a Lua se afastar, a Terra precisa transferir a ela uma propriedade física chamada momento angular. E se a Terra perde momento angular, sua rotação (isto é, o giro em torno de si mesma, que define a duração de um dia) fica mais lenta. Conclusão? Um dia, no passado, durava menos que hoje. Quando a vida surgiu, tinha 12 h. As bactérias que inventaram a fotossíntese viam o Sol se pôr a cada 18 h. Os primeiros animais, 23 h.

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Restava, porém, uma dúvida. Entenda: o que faz a Terra frear são as marés. Marés, grosso modo, ocorrem quando a água tenta ficar parada, atraída pela Lua, enquanto o leito dos oceanos continua girando por baixo dela. O atrito de 1.338 bilhões de bilhões de litros de H­2O nos 71% da superfície inundada do planeta causa a desaceleração. Acontece que os continentes, graças ao movimento das placas tectônicas, mudam de posição. E no passado, quando os oceanos tinham outros contornos, as marés também eram diferentes – o que faria a Terra desacelerar de forma imprevisível. Em outras palavras: sabemos que o planeta ficou mais lento no geral, mas não exatamente o quanto ele freou em cada ponto.

Em 1978, Peter Kahn, geólogo, e Stephen Pompea, astrônomo, uniram forças e tentaram resolver esse problema analisando fósseis de um molusco chamado náutilo, cuja concha é dividida em compartimentos. Conforme o náutilo cresce, ele desenvolve novos compartimentos, maiores que os antigos, para se abrigar. Isso ocorre mensalmente. Esses compartimentos crescem um pouco por dia, e, cada vez que eles crescem um tanto, surge uma faixa discreta na superfície da concha.

Ou seja: cada compartimento corresponde a um mês. Cada faixa, a um dia. Quando a Lua girava mais perto de nós, um mês durava menos dias (vale lembrar que o mês é definido pela duração de um ciclo de fases da Lua). E aí havia menos faixas por compartimento. Contando as faixas por compartimento de conchas de diferentes épocas, é possível descobrir quantos dias tinha cada mês no passado.

Kahn e Pompea analisaram as conchas de 38 náutilos, 9 vivos e 29 fósseis. Os de hoje, como era de se esperar, tinham em média 30 linhas por compartimento. No final do Cretáceo, quando os dinossauros foram extintos, 22. Um náutilo de 420 milhões de anos atrás, apenas 9. Bingo: os meses ficam mais curtos conforme voltamos no tempo.

As pesquisas com esses animais-cronômetro não avançaram muito desde então. Mas os fósseis estão lá para quem quiser tentar. “Peter e eu éramos jovens na época desse artigo. Nós nunca conseguimos tempo nem dinheiro para tocar adiante essa pesquisa”, contou Pompea à SUPER. “Kahn faleceu repentinamente em junho. Eu espero que outros possam explorar as nossas ideias.”

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(Deborah Maxx/Superinteressante)

3.

O tempo está no DNA

Cientistas tem uma coleção de relógios: os estratos geológicos. Os átomos radioativos. E a própria taxa em que nossas moléculas sofrem mutações.

William Buckland, naturalista, não queria se comprometer com o tempo. Descreveu assim a idade de um fóssil de ictiossauro: “viveu entre 10 mil e mais de 10 mil vezes 10 mil anos atrás”. Na verdade, esses répteis marinhos surgiram há 250 milhões de anos. Mas não culpe Buckland: ele nasceu em 1764, e, na época, não havia como estimar a idade de achados paleontológicos. Um arcebispo irlandês dizia, com base na Bíblia, que Deus criou o mundo em 23 de outubro de 4004 a.C.

A maioria, é claro, apostava mais antigo. Bem antes de Buckland nascer, em meados do século 17, o dinamarquês Nicolas Steno determinou que certos pedacinhos de pedra pontudos (que Plínio, naturalista romano, dizia serem fragmentos da Lua) eram dentes de tubarão fossilizados.

Steno se perguntou como diabos algo que esteve na boca de um peixe um dia acabara encravado na rocha. O que o levou a uma conclusão revolucionária: os dentes, de início, foram apenas enterrados. Só depois, aos poucos, é que o solo em torno deles enrijeceu e virou rocha. Assim, o solo seria dividido em camadas: as mais fundas consistiriam em rochas mais antigas; as mais superficiais, em rochas mais recentes. Cada camada corresponderia a uma parte da história da Terra.

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Nas décadas subsequentes, as camadas de Steno foram identificadas, colocadas na ordem cronológica e batizadas com os nomes de locais simbólicos para o estudo de cada uma: Jurássico (monte Jura, na França), Devoniano (condado de Devon, na Inglaterra) etc. Graças ao insight de um inglês chamado William Smith, em 1796, os fósseis típicos de cada camada foram identificados, e percebeu-se que espécies que existiam em certas épocas sumiam em outras.

Conclusão: as espécies não tinham surgido já em sua forma contemporânea. Elas mudaram com o tempo (isto é, evoluíram). Em 1859, Charles Darwin publicou a teoria da seleção natural, o primeiro mecanismo capaz de explicar satisfatoriamente as mudanças graduais na forma dos seres vivos ao longo do tempo: a sobrevivência dos mais bem adaptados a seus ambientes.

Só escapava o essencial. A dúvida de Buckland: em que época, exatamente, cada coisa havia acontecido? Havia uma datação relativa – o que veio antes, o que veio depois –, mas não uma datação absoluta. Isso só mudaria graças ao surgimento de dois “relógios”.

O primeiro deles, graças à teoria atômica. Alguns átomos pesados são instáveis. Precisam liberar pedaços de si para alcançar uma situação confortável – um processo chamado “decaimento”. E é possível determinar (em segundos, minutos e dias, mesmo) quanto tempo uma amostra desses átomos demora para decair. Como há traços desses átomos nas rochas, a concentração deles acusa a idade exata de cada uma. A rocha mais antiga do planeta foi datada desta forma: um pedaço de zircônio de 4,4 bilhões de anos encontrado na Austrália.

O segundo relógio está em uma molécula familiar: o DNA. O que torna o DNA um bom cronômetro é o seguinte: ele precisa ser estável o suficiente para armazenar e transmitir informação hereditária sem criar aberrações constantemente. Mas também precisa ser maleável o bastante para sofrer mutações sutis às vezes – afinal, sem mutações, não há variação, e sem variação, não há evolução.

“Uma população precisa de variação para se adaptar ao ambiente, mas a maioria das mutações é prejudicial”, explica o geneticista Nelson Fagundes, da UFRGS. “O que é melhor? Um sistema que gera menos mutações, mas engessa a evolução? Ou um sistema que cause mais problemas a curto prazo, mas dê mais potencial evolutivo?”

Por isso, o DNA foi calibrado pela seleção natural para sofrer mutações a uma taxa ideal: nem 8, nem 80. Sabendo de quanto em quanto tempo o DNA sofre uma mutação, basta contar o número de mutações que duas espécies aparentadas sofreram desde que se separaram para saber quando, na árvore da vida, a separação ocorreu.

Por exemplo: a linhagem que deu origem ao Homo sapiens se separou dos chimpanzés há algo entre 5 e 7 milhões de anos. Dos gorilas, 8 milhões. Dos orangotangos, há 15 milhões. Como as datas são estimadas contando o número de diferenças entre o nosso DNA e o deles, elas são proporcionais ao grau de semelhança genética entre o sapiens e seus primos: nosso genoma é 98,8% igual ao de um chimpanzé, 98,4% ao de um gorila, 96,9% ao de um orangotango.

Seria ótimo, é claro, se além dos cálculos tivéssemos fósseis de cada estágio da evolução primata. Mas fósseis são raros. Darwin ficaria aliviado em saber da existência do relógio molecular: ele conta com detalhes uma história da qual os ossos podem fornecer apenas imagens fragmentadas.

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