Um sexto das terras brasileiras é de propriedade desconhecida
Pior: uma mesma área pode ser considerada propriedade privada e reserva ambiental. E isso fomenta o desmatamento ilegal.
16,6% de todo o território brasileiro pode ser chamado de “terra de ninguém”. É isso o que mostra uma pesquisa feita por sete universidades e institutos do país. O estudo analisou todos os bancos de dados disponíveis sobre o uso de terras no Brasil, como IBGE, Funai, Incra, Ibama, Cadastro Ambiental Rural (CAR), exército e outros.
Os resultados do estudo revelam a composição do território. O Brasil tem um total de 850 milhões de hectares. A maior parte dessa área é composta de propriedades privadas — majoritariamente latifúndios —, que ocupam 44% do país. Já as terras públicas somam 36% do território nacional.
Se você mora em uma cidade, saiba que usufrui de uma parcela muito menor do Brasil. As cidades representam apenas 3% da área total do país. As reservas indígenas e unidades de conservação ambiental somam, respectivamente, 13% e 11% do território brasileiro.
Terra de ninguém
O que surpreendeu não foram as informações reunidas, e sim a falta delas. O Estado brasileiro não tem informações precisas sobre a utilização de um sexto de todo o território, o que equivale a 141 milhões de hectares. No total, a área é três vezes maior que o Paraguai. Isso não significa que elas sejam consideradas áreas públicas — elas só não possuem registro nenhum nos bancos de dados.
Existem muitas hipóteses sobre o que se faz com essas terras. De acordo com Luís Fernando Guedes Pinto, pesquisador do Instituto de Manejo e Certificação Florestal e Agrícola (Imaflora) e coautor do estudo, elas podem ser áreas públicas com defasagem de registro ou privadas sem documentação no CAR.
O nordeste é o local que mais abriga terras não registradas: 42% da região é composta por esse tipo de território. E por incrível que pareça, o norte é a região mais bem registrada do país: apenas 7,2% do território é de propriedade desconhecida. Isso ocorre porque grande parte da região é destinada à conservação ambiental, ou seja, é área pública.
Caso você esteja pensando, é isso mesmo: é nas reservas ambientais que ocorre grande parte das queimadas ilegais da Amazônia. Segundo o Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (IPAM), o desmatamento ilegal em terras públicas está fortemente relacionado aos incêndios. Grande parte dos focos de queimadas também ocorrem em propriedades privadas — muitas das quais não possuem permissão para desmatar.
Terra de quem?
A fração de terras sem registro não foi a única inconsistência encontrada pelo cruzamento de informações. A sobreposição de terras também é algo latente. Os dados mostram que uma mesma área está sob dois registros ou classificações diferentes. Ou seja, um mesmo pedaço de terra pode ser classificado como propriedade privada pelo CAR e como reserva ambiental pelo Ibama. Essas “confusões” de terras representam 41% de todo o território brasileiro, o equivalente a 354 milhões de hectares.
A sobreposição entre terras públicas e privadas representa metade das ambiguidades. Segundo Guedes Pinto, duas coisas podem ocorrer nesses casos. Uma possibilidade é que uma área pública, como uma reserva ambiental, tenha sido demarcada em cima de uma propriedade privada. Nesse caso, algum dos bancos de dados pode estar desatualizado, causando a confusão.
No entanto, o contrário também pode ocorrer — quando a propriedade privada se apropria da área pública. A prática da grilagem é antiga no Brasil. Ela nada mais é do que a falsificação de documentos de posse de terra para a venda e compra de propriedades. O próprio nome “grilagem” vem exatamente do inseto que você está pensando. Era comum colocar o documento falsificado em uma caixa com grilos, que davam um aspecto envelhecido ao papel e passava a impressão de que aquele era um contrato antigo. Essa prática ficou no passado. Mas a grilagem segue firme. O mais comum é desmatar um terreno, colocar gado ali, e, depois de alguns anos, reivindicar a posse.
Também existem muitas incongruências entre terras públicas, totalizando 48% de todas as áreas de sobreposição. Uma área que está demarcada como reserva indígena pela Funai pode ser classificada como um outro tipo de reserva por outro órgão. O mais provável nesse caso é que um dos sistemas de dados esteja defasado ou desatualizado.
O último caso é bem mais raro. A sobreposição entre duas propriedades privadas representa os 2% restantes dessa conta. Isso ocorre quando há mais de um registro para o mesmo espaço no Cadastro Ambiental Rural.
Todos esses dados foram compilados no Atlas da Agropecuária Brasileira, um mapa interativo que mostra o que se faz em cada pedacinho do país. Você pode conferir todas as estatísticas da pesquisa aqui.