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Unidade 731: as terríveis experiências japonesas com armas biológicas

Em 1931, o Japão invadiu a China. Um ano depois, decidiu construir um centro para fazer pesquisas com bactérias letais - usando a população local como cobaia.

Por Salvador Nogueira
Atualizado em 3 Maio 2022, 16h55 - Publicado em 20 Maio 2020, 11h43
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Uma história tão apavorante quanto a dos experimentos nazistas, noves fora os tons de preconceito racial, aconteceu na Ásia. Em 1931, o Japão invadiu a China e estabeleceu controle sobre a região da Manchúria, fundando o Estado de Manchukuo, na prática controlado por Tóquio. No ano seguinte, um ambicioso médico e tenente do Exército japonês conseguiu ver seus planos aprovados para a criação de um amplo laboratório de estudo de armas biológicas na Manchúria – a população local, naturalmente, seria feita de cobaia para os experimentos.

O nome desse microbiologista era Shiro Ishii. O historiador americano Jonathan Moreno o descreve como “um homem de intelecto e energia excepcionais”, que “em Tóquio também ganhou a reputação de ser um gastador, beberrão e frequentador do distrito da luz vermelha”. O governo japonês de início tinha dúvidas sobre o potencial de armas biológicas, mas, pensando num inevitável conflito futuro contra a União Soviética pela posse da Sibéria, acabou por financiar a instalação, que acabaria ao final conhecida apenas como Unidade 731, nos arredores da cidade chinesa de Harbin.

O complexo de pesquisa foi crescendo conforme os resultados colhidos por Ishii pareciam mais promissores e se acirrou depois que China e Japão entraram numa fase de guerra total, a partir de 1937. A Unidade 731 podia abrigar, no total, cerca de 1.500 prisioneiros, em sua maioria chineses, com um bom percentual de russos. Alguns eram criminosos, outros meramente perseguidos políticos, muitos prisioneiros de guerra e uns tantos cidadãos comuns da região, presos literalmente na rua e enclausurados na instalação, que chegou a ter 150 edifícios, construídos cuidadosamente para resistir a bombardeios.

Shiro Ishii, microbiologista, tenente do Exército japonês e responsável pelo campo de testes de armas químicas em cobaias humanas. (PA Images/Getty Images)

Os prisioneiros recebiam uma alimentação relativamente boa, para permanecerem saudáveis enquanto aguardavam sua vez como cobaias, apertados em pequenas celas coletivas. Na Unidade 731, eles eram inoculados com diversas doenças, principalmente antraz, mormo, peste bubônica e cólera. Amostras de sangue eram colhidas regularmente e analisadas. Quando o prisioneiro ficava fraco demais para ser útil em experimentos, era morto por uma injeção letal. O complexo comandado por Ishii também realizava testes com gases venenosos e choques elétricos.

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No seu auge, a partir de 1939, a instalação militar se tornou um misto de prisão para experimentos e fábrica de armas biológicas. Por uma vasta área cheia de prédios, havia escritórios administrativos, laboratórios, dormitórios para os funcionários, celeiros, estábulos, uma fazenda, estufas, uma usina de força e crematórios para incinerar cadáveres animais e humanos. Do lado de fora, a instalação se identificava apenas como o Escritório de Purificação de Água local, tendo Ishii como seu diretor. Entre os funcionários, as cobaias eram chamadas de murutas – traduzindo do japonês, “troncos”. Isso porque a história contada aos residentes locais era de que a construção pesada executada no complexo era para um moinho de lenha.

Até hoje não se sabe quantos prisioneiros passaram pela Unidade 731, pelo simples fato de que eles eram numerados de 1 a 1.500 e depois a numeração começava de novo, conforme uns morriam e eram substituídos por novos prisioneiros. A exemplo do que acontecia nos experimentos nazistas, muitos prisioneiros dos japoneses passaram por vivissecção, sem anestesia, com o objetivo de investigar minuciosamente os danos causados por agentes patogênicos no organismo.

Muitas cobaias tiveram membros amputados para a verificação dos efeitos da perda de sangue, e um estudo particularmente frutífero realizado pela Unidade 731 envolveu ulcerações causadas pelo frio, e a melhor forma de tratá-las. A preocupação era o iminente confronto com a União Soviética e as dificuldades que soldados japoneses poderiam ter diante dos rigores do inverno russo. Os experimentos ajudaram a desenvolver o protocolo – o mesmo usado até hoje para tratar esse tipo de ferimento – de imergir a área afetada em água morna, com temperatura entre 38 e 50 graus Celsius.

Outra preocupação militar era o tratamento de sífilis entre as tropas japonesas. Para investigar a doença, muitas mulheres foram estupradas ou expostas a um soro com cepas virulentas. Por vezes eram forçadas a engravidar para testar os efeitos da transmissão vertical da doença. No campo de armas biológicas, a Unidade 731 não só fez testes confinados a seus laboratórios como produziu armas de verdade e realizou testes de campo. A estimativa é de que entre 270 mil e 400 mil pessoas tenham sido mortas por bombas projetadas para espalhar patógenos – cólera, antraz e peste bubônica – na região da Manchúria. Barbaridade em cima de barbaridade.

Ishii chegou a planejar um ataque biológico de longa distância aos Estados Unidos, direcionado à região de San Diego, no sul da Califórnia. A operação, que recebeu o codinome “Cereja Floresce à Noite”, usaria aviões camicase para espalhar pulgas contaminadas por peste bubônica. O plano foi concluído em 26 de março de 1945 e seria posto em prática em 22 de setembro daquele ano – não houvesse, no meio do caminho, duas bombas atômicas e a rendição incondicional do Japão.

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Ruínas da Unidade 731, em Harbin, China: as experiências conduzidas ali evoluíram para um plano de ataque biológico aos EUA. (Xiaolu Chu/Getty Images)

Após a guerra, 12 dos colegas de Ishii chegaram a ser capturados pelos soviéticos e julgados, em dezembro de 1949. Apenas cinco dias foram necessários para a condenação. O depoimento do chefe de uma das divisões da Unidade 731, Kawashima Kyoshi, foi decisivo para que o mundo soubesse o que acontecia na infame instalação.

E esse foi o julgamento soviético, em que os condenados receberam de 2 a 25 anos de trabalhos forçados num gulag na Sibéria – uma pena incomumente leve, em se tratando de crimes tão horrendos, perpetrados sobre prisioneiros russos, em meio ao jugo do tirânico Josef Stalin. Por quê? Informações dão conta de que os soviéticos conseguiram um bocado de informações que lhes interessavam. Até hoje não sabemos bem qual é o nível do programa de armas biológicas russo, e a queda da União Soviética não foi suficiente para que as lideranças por lá abrissem seus arquivos da época da Guerra Fria no que diz respeito a temas espinhosos como experimentação humana.

Sabe-se que há um laboratório, criado em 1921 e na ativa até hoje, às vezes chamado apenas de Laboratório 1, Laboratório 12 ou Kamera (russo para “câmara”), que desenvolveu armas biológicas para a KGB (polícia secreta soviética) e as testou em prisioneiros dos gulags no passado. Decerto as informações fornecidas pelos japoneses – e que não constam dos autos do rápido julgamento soviético – ajudaram na leniência.

Já o julgamento americano dos criminosos da Unidade 731, bem… Não houve um julgamento americano. Numa ação que faz até a Operação Paperclip parecer excessivamente honesta, o general Douglas MacArthur, responsável pela reconstrução do Japão durante a ocupação pelos Aliados, fez um acordo secreto com os médicos da equipe de Ishii – inclusive o próprio – para conceder imunidade em troca dos dados colhidos nos experimentos humanos.

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A ideia era alavancar o desenvolvimento de armas biológicas nos Estados Unidos, centrada em Fort Detrick, unidade do Exército em Maryland, tendo por base pesquisas que jamais poderiam ter sido conduzidas com liberdade similar em solo americano. Uma hipocrisia sem limites para a ciência sem limites.

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