Mortos por caçadores de marfim, elefantes evoluem para nascer sem presas
Durante a guerra civil no Moçambique, esses animais foram massacrados pelo tráfico. Então, num exemplo clássico de seleção natural, elefantinhos sem o prêmio cobiçado se multiplicaram.
A ex-colônia de Moçambique, no leste da África, obteve independência em 1975, após dez anos de guerra contra o Estado Novo, o regime fascista que comandou Portugal por cinco décadas.
Após a libertação, os guerrilheiros da Frente de Libertação de Moçambique (Frelimo), de extrema esquerda, implantaram sua própria ditadura de partido único no país, inspirada nos soviéticos.
Para tirá-los de poder, formou-se uma coalização de direita chamada Renamo. A guerra civil resultante acabou em 1994 com no mínimo um milhão de mortos – em sua maioria, civis com fome.
O conflito tem alguns traços de proxy war – as pequenas guerras quentes que o Ocidente e o bloco soviético disputaram indiretamente em países pobres durante a Guerra Fria, apoiando grupos armados alinhados com cada lado da Cortina de Ferro.
Nesse período, a população de elefantes do Parque Nacional de Gorongosa declinou bruscamente. O comércio ilegal do marfim extraído das presas desses animais financiava armas para os dois lados combatentes do conflito (90% dos mamíferos de grande porte de Moçambique morreram durante a guerra por razões variadas).
O resultado foi uma pressão seletiva brutal a favor dos elefantes que nascem naturalmente sem presas: como não havia motivo para caçá-los, eles permaneciam vivos e se reproduziam mais, de modo que o número de bebês elefante sem marfim subiu rapidamente.
Pesquisadores de um grupo liderado pelo biólogo Shane Campbell-Staton na Universidade de Princeton observaram registros dos animais na época da guerra e também fizeram um censo da população contemporânea desses gigantes acinzentados.
Eles concluíram que o número de fêmeas que nascem naturalmente sem presas aumentou algo entre 19% e 51% durante o conflito, e agora está voltando lentamente aos níveis originais. Nos machos, de forma peculiar, a proporção se manteve estável.
Por que apenas fêmeas? Essa é uma questão em aberto, mas a equipe de Campbell-Staton levantou uma hipótese. Ela vai assim: na maior parte dos mamíferos, os machos têm cromossomos sexuais XY, e as fêmeas XX. Isso significa que as fêmeas têm duas cópias de cada gene presente no X, enquanto os machos têm só uma.
Se um gene em um dos cromossomos X nasce com uma mutação perigosa, a fêmea geralmente não precisa se preocupar, porque o gene equivalente no outro cromossomo consegue segurar a bronca sozinho. Por outro lado, se um macho nasce com uma mutação grave em um gene do cromossomo X, ele se dá mal, porque não têm plano B.
Existe um gene no cromossomo X que atende pelo código AMELX. Ele possui uma versão desfuncional que faz as fêmeas humanas nascerem sem um par de dentes conhecidos como incisivos laterais superiores. Esses são justamente os dentes que, nos elefantes, crescem um montão e dão origem às presas.
Além da ausência desses dentes – ou de presas, caso você seja uma elefanta –, essa mutação não traz muitas consequências graves para as fêmeas, porque o gene AMELX presente no outro cromossomo X entra em ação e salva o dia. Nos machos, porém, costuma causar aborto espotâneo do feto.
Ou seja: no momento, não existe um gene que permita o nascimento de machos saudáveis sem presas. Por isso, apenas as fêmeas estão respondendo à pressão seletiva.
Não é impossível que, no futuro, algum elefante macho em algum lugar do mundo ganhe uma mutação que lhe permita nascer sem presas. E também não é impossível que essa mutação se espalhe por seleção natural caso aumente a caça para contrabando de marfim. Até agora, porém, nada ocorreu no leste da África.
Essa história é didática porque reforça que a seleção natural só trabalha com mutações pré-existentes. Se não surgir um gene capaz de gerar machos sem dentões, não haverá nada para ser selecionado.
Lembre-se, o processo darwiniano não é capaz de criar genes novos que façam as coisas que os seres vivos precisam para se adaptar a uma nova situação. Isso seria o que aprendemos como lamarckismo. No colégio, os professores martelaram na cabeça de todos nós que essa é uma noção errada.
Acontece o contrário: às vezes, um indivíduo nasce por acidente com uma característica que se desvia da norma (no nosso exemplo, uma elefanta sem presas). Se essa característica porventura for útil para o portador, o gene mutante responsável se espalha porque aumenta as chances de sobrevivência e reprodução.
As presas são muito, muito úteis. Os elefantes usam essas ferramentas para se defender de predadores, cavar buracos no chão para encontrar água e cutucar a casca de árvores. Eles perdem uma boa parcela de sua capacidade de sobreviver e se reproduzir sem as extremidades pontudas.
Se a seleção natural tomou esse caminho, é porque a chance de um elefante morrer de sede ou atacado por outro animal é menor do que a chance dele ser morto por um ser humano. Esse é o grau da ameaça que nossa espécie representa.
O grupo de Campbell-Staton em Princeton estuda justamente como pressões seletivas criadas por nossos ambientes artificiais geram evolução em tempo real. Vale a pena acompanhar o trabalho no site oficial – eles estudam até a resposta da natureza à radiação nas ruínas de Chernobyl.