A importância de ser patético
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“Idiota”. “Mula”. “Trouxa”. “Otário”… Era eu, adolescente, me auto-xingando no banco de trás de um carro. Um minuto antes estávamos eu mais dois amigos pedindo carona pra voltar de São Tomé das Letras, em Minas, até alguma cidade próxima com rodoviária. Éramos nós três mais duas meninas, uma morena e uma loirinha dentuça, que a gente tinha conhecido na cidade. Como é bem mais fácil mulher arranjar carona, elas erguiam seus dedões no acostamento e nós, os meninos, ficávamos meio de canto, sentados no mato, para os motoristas não notarem direito – e não terem medo de parar.
Um carro parou. O casal que estava dentro tinha uma cara simpática pra caramba. Então a loirinha se aproveitou disso para fazer sua boa ação do dia: pediu para que o casal levasse eu e os outros dois caras no banco de trás, já que dificilmente a gente arrumaria carona sozinhos. E elas continuariam na estrada.
Não concordei. Mas ela não me deixou exercer cavalheirice nenhuma. Botou nós três pra dentro do carro do casal e tchau. Essa firmeza, aliás, era parte do pacote que tinha feito eu me apaixonar por ela, um dia antes.
Conheci a menina umas 10h – ela era minha vizinha de barraca num camping. Meio-dia, depois de ter disputado uma melhor-de-três de sinuca com ela, eu já estava ampla e efetivamente rendido. Ela, muito pelo contrário: tomei uma bochechada na primeira investida, e ficou claro que daquele mato não sairia nada – a mocinha continuaria virando o rosto sempre que eu tentasse ir para cima. Mas nem por isso ela deixou de continuar andando comigo pela cidade. Lá pelas cinco da tarde, no caminho entre um restaurante e mais outro bar de sinuca, lembrei de um conselho que o Lula tinha dado numa entrevista para a Playboy nos anos 80: “O problema com mulher”, ele disse, “é você conseguir pegar na mão. Pegou na mão…”
Velho… Funcionou com uma precisão suíça. E dali para a frente mergulhei numa piscina de algodão doce, voei para a estratosfera, segui até o fim da galáxia, nasci de novo e vivi toda uma outra vida como Rei do Universo, governando o destino do Cosmos com a minha rainha dentuça de olhinhos caídos e sobrancelhas arqueadas.
Bom, só soltei efetivamente a mão dela no dia seguinte, naquela hora da carona. E quando o carro começou a andar é que me toquei: não tinha pegado o telefone da menina. Putaquepariu. Só sabia o primeiro nome e a cidade onde ela morava. Mais nada. Se fosse tipo Santa Rita do Passa Quatro, beleza. Era ir até lá um dia que eu achava. Mas era Campinas. Ou seja: o equivalente a ter a informação de que ela vivia no planeta Terra.
“Múmia”. “Anta”. “Palhaço”…
Um pouco pela fulminância do que eu senti pela menina, um pouco pela fugacidade com que perdi ela para sempre, entrei numa espiral platônica: quanto mais distante a experiência ficava, mais força a coisa ganhava na minha cabeça. Comecei a escrever textos pra ela, sabendo que nunca ia entregar. Era paixão no sentido grego da palavra mesmo – da raiz “pathos” (doença), que também dá origem a “patológico”. E a “patético” – o sujeito que se deixa levar pelas emoções brutas, e que por conta disso tende a se comportar de forma ridícula.
Oito meses já tinham passado, e eu ali ficando cada vez mais ridículo. O certo era por a cabeça no lugar e partir para outra. Mas fiz uma escolha mais apropriada à condição em que tinha entrado: apertar o foda-se e ir atrás dela.
A ideia era pegar um ônibus pra Campinas num sábado à noite e fazer a ronda, no sentido Paulo Vanzolini da palavra: vasculhar os bares de Campinas atrás da menina – dá que ela estivesse jogando bilhar em algum bem naquela noite? Dois amigos toparam ir comigo – um, mais chegado, para não me deixar sozinho numa roubada dessas; o outro por falta de coisa melhor para fazer no sábado.
Descemos do ônibus da Viação Cometa lá pela meia-noite. Sem dinheiro para táxi e sem ônibus rodando, a gente saiu a pé e foi perguntando nos arredores da rodoviária: “Onde é que fica a malucagem aqui?”.
Não sei como os adolescentes se dividem hoje, mas na época era fácil: ou você era playboy ou era “maluco” – basicamente alguém que preferia ficar tomando cerveja em algum pé-sujo do que desfilar numa balada. Esse filo social tinha várias classes, famílias e gêneros: hippie, metal, metal de verdade, rockabilly, os caras do skate, as minas do reaggae… Seja como for, essa árvore taxonômica toda tendia a ocupar mais ou menos o mesmos habitat, em qualquer cidade. Playboy ela não era, logo…
“A malucagem fica lá no Cambuí”, disse o segundo ou o terceiro cara para quem a gente perguntou. “Vocês descem aqui, até o quinto farol, depois…”. Longe pra cacete. Cheguamos lá e já era mais de uma da manhã.
Pior: cada bar do bairro era um palheiro de “malucada”. Ficou claro que eu não ia encontrar minha agulha ali nem se virasse devoto de São Longuinho
O lado patológico da ideia foi ficando cada vez mais claro. “Que catzo eu vim fazer nessa cidade?”. “Pra quê que eu fui me meter numa furad…” E eis que a resposta se materializa na minha frente, na forma de uma aberração estatística: era a loirinha em pessoa passando na calçada do outro lado da rua, com três amigas. Meu coração virou a bateria do Slayer. E a descarga de adrenalina afiou meu raciocínio: comecei a tramar um plano de aproximação – um que não fosse tão patético quanto sair correndo pela rua gritando o nome dela.
Nisso, o meu amigo menos chegado se mostrou particularmente útil. Ele era modelo e ostentava o título de cara mais bonito do Tatuapé. Nunca tomava um fora, nem que chegasse sozinho num grupo de dez meninas – meu exato oposto. Chamei ele pra perto: “Leandro, cara, você chega lá nas amigas dela, fala que a gente não conhece aqui direito, que quer tipo uma indicação de lugar legal pra ir. Qualquer coisa.”
– Beleza.
– E nem olha pra loirinha, pelo-amor-de-deus.
Era um plano tão arriscado quanto comprar ações da OGX. Ela podia se engraçar pelo cara, e aí que não ia sair petróleo mesmo daquele bloco exploratório. Mas era importante fazer com que o meu encontro parecesse acidental. Se não, eu pagaria de maníaco, de stalker obsessivo. Mau negócio – embora não fosse um diagnóstico tão impreciso naquele momento.
E deu certo, olha só. As três amigas rodearam o Leandro, contentes com a ideia de dar atenção pro beleza, mas a loirinha ficou meio de canto. O Marcílio, meu amigo mais chegado, logo flanqueou para se apresentar ao trio, aumentado o isolamento dela. Agora o sucesso do plano só dependia de mim. Hora de falar com ela. Respira fundo, vai e:
– Ei, acho que eu te conheço… Você tava em São Tomé em julho?
– “Tava”, ela disse, sem olhar para a minha cara.
– A gente se conheceu lá. Sou o Alexandre, lembra?
Aí sim ela me mirou:
– Ei!! Olha só… Que coincidência!
Hehe.
Estava me sentindo o próprio Cebolinha no meio das histórias da Mônica, naquela hora em que ele se gaba de o “plano infalível” estar funcionando.
E como funcionou. Foram três dias de conversa com a menina, condensados em quatro horas. Voltei para a rodoviária no fim da noite com telefone, endereço e o compromisso de a gente se ver de novo em 15 dias. Sem falar na piscina de algodão doce – e, sim, contei do plano todo, e ela achou bonitinho. Pronto. Eu tinha dobrado o tecido do Universo para mudar a ordem natural das coisas. O mundo era meu: tinha total e absoluto controle sobre o meu destino.
Só que não. Faltava levar em conta a mais universal das leis: o fator Garrincha. É aquela lenda urbana da Copa de 58. Vicente Feola, o técnico da seleção, teria chamado o ponta-direita de canto antes do jogo contra a União Soviética: “Mané, você pega a bola e dribla o primeiro zagueiro. Quando chegar o segundo, você dribla também. Aí vai até a linha de fundo e cruza pro Vavá marcar”. E o Garrincha: “Tudo bem, professor, mas o senhor já combinou com os russos?”
Eu não tinha combinado com a minha russa. A autoridade que eu tinha sobre o meu destino estava barrada por uma fronteira: a que demarcava o controle da moça sobre o destino dela. E ela, pelo jeito, já tinha decidido que não, eu não estaria nesse futuro.”. O encontro para dali a 15 dias miou. O que fizemos foi trocar cartas – era 1994, uma época pouco discernível do século 19 no que toca às comunicações à distância: sem celular, internet e em que fazer DDD toda hora agregava um valor infinito à conta telefônica… A menina estava menos interessada do que eu em transpor esses obstáculos. As cartas foram ficando mais espaçadas, até que ela não respondeu a última.
Me senti que nem o Cebolinha de novo, só que desta vez o Cebolinha do fim das histórias, quando ele toma aquela coelhada da Mônica e volta todo quebrado para casa. Agora sim: o sensato mesmo era partir para outra.
Parti. Mas a experiência da viagem para Campinas ficou. Depois de ter encontrado a menina no meio de uma cidade de 1 milhão de habitantes, meu conceito de “impossível” acabou mais maleável. Comecei a fazer apostas mais altas na vida – em todas as áreas da vida. Quebrei a cara mais vezes do que quebraria se tivesse sido mais conservador, mas o saldo da minha conta acabou razoavelmente positivo. Se eu nunca tivesse descido naquela rodoviária, há 20 anos, talvez tivesse evoluído para virar um cara mais pé-no-chão, que não cultiva tantas esperanças cegas. Mas continuei patético. E tomara que fique assim pra sempre. Valeu, loirinha.