Demonstração da Neuralink impressiona, mas também deixa perguntas sem resposta
Empresa fundada por Elon Musk revelou a nova versão de seu implante cerebral - mas ignorou três pontos cruciais para a viabilidade dele
Empresa fundada por Elon Musk revelou a nova versão de seu implante cerebral – mas ignorou três pontos cruciais para a viabilidade dele
Na sexta-feira à noite, em uma apresentação pela internet, a Neuralink revelou seu novo implante cerebral de um jeito impactante: capturando, ao vivo, sinais elétricos do cérebro de um porquinho que havia recebido o chip. Foi uma demonstração impressionante, que teve ampla e merecida repercussão – leia todos os detalhes nesta ótima reportagem da Super. Mas Elon Musk também deixou algumas perguntas sem resposta.
A Neuralink não inventou os implantes neurais, ou brain-machine interfaces (BMI). O mais tradicional deles é o Utah Array, que foi desenvolvido nos anos 1990 pela empresa americana Blackrock Microsystems e tem 100 eletrodos. O implante Brain Gate, que foi inserido em uma pessoa tetraplégica, tem 96. O novo modelo da Neuralink possui 1.024 eletrodos, dez vezes mais. A empresa realmente parece estar fazendo progresso.
Isso provavelmente tem a ver com o método de inserção: um robô que é capaz de operar de forma 100% autônoma (embora seja monitorado por um cirurgião, que pode assumir o controle a qualquer momento) e, segundo a Neuralink, implantar até 192 eletrodos por minuto. Um estudo publicado ano passado -e, até o momento, único documento técnico divulgado pela empresa- relata a inserção de 3.072 eletrodos, cobrindo uma área de 4×7 mm no cérebro de um camundongo.
Nesse trabalho, a empresa diz ter realizado 19 cirurgias, com 87,1% de sucesso. E esse é o primeiro ponto em aberto. Trata-se de uma quantidade de procedimentos extremamente baixa, que impede uma análise estatística confiável. Se o procedimento é totalmente automatizado, e utiliza ratos de laboratório, a Neuralink já poderia ter ampliado a escala dos testes. É possível que haja algum obstáculo técnico importante, que a empresa não menciona. A Neuralink também não informa o que aconteceu com os 12,9% de cobaias cujos implantes não deram certo – se elas ficaram com sequelas, por exemplo. E nos implantes em porcos, como o mostrado na sexta-feira?
A segunda questão crítica não abordada pela empresa está na durabilidade do implante. Todos os BMIs desenvolvidos até hoje têm esse problema. Com o tempo, o cérebro vai degradando os eletrodos, que perdem a capacidade de captar e transmitir sinais elétricos. O implante Brain Gate inserido em um tetraplégico foi testado após quatro anos e, embora ele ainda funcionasse (a pessoa ainda conseguia usá-lo para guiar um cursor numa tela), 55 dos 96 eletrodos já não forneciam sinais. Num dos testes realizados, a precisão dos movimentos do cursor caiu dramaticamente, de 100% para 67,5%. Uma queda dessa magnitude poderia ser suficiente, por exemplo, para impedir os movimentos de uma pessoa conectada a um exoesqueleto robótico. A eventual substituição do implante, além de representar um novo risco cirúrgico, pode até ser impossível (os eletrodos tendem a causar microlesões nos locais em que são inseridos).
O terceiro ponto em aberto está na quantidade de eletrodos implantados pela Neuralink. É muito mais do que antes, mas não é o suficiente para gravar e reproduzir memórias: uma possibilidade bem Black Mirror que, segundo Musk, o implante um dia poderá ter. Com o conhecimento científico atual, isso não acontece, por dois motivos. A memória é um conjunto de relações semipermanentes de afinidade entre neurônios, ou seja, está distribuída por todo o neocórtex – possivelmente, sob a coordenação do hipocampo. E ambas as coisas jogam contra a Neuralink. Se as memórias percorrem todo o neocórtex, seria necessário um implante impraticavelmente grande, que cobrisse o cérebro quase inteiro, para capturá-las. Além disso, a tecnologia da empresa só é capaz de inserir eletrodos na camada mais externa do cérebro – muito longe do hipocampo, que fica bem no centro do órgão. (Em 2011, cientistas da Universidade da Califórnia substituiram o hipocampo de ratos por um chip. Mas isso usa uma técnica diferente, muito mais agressiva e menos “sobrevivível” que o implante da Neuralink).
Outras funções mentais avançadas, como o raciocínio, também são altamente distribuídas – e ainda menos compreendidas pela ciência do que a memória. Para criar implantes cerebrais capazes de fazer uma “simbiose entre o cérebro e a inteligência artificial”, como Musk pretende, não bastaria avançar na tecnologia de inserção de eletrodos. Seria preciso dar um salto incalculavelmente mais difícil: compreender como o emaranhado de sinais eletroquímicos do cérebro produz a consciência.
Não é impossível desenvolver implantes e tecnologias para aumentar a capacidade do cérebro. Há várias universidades e empresas tentando fazer exatamente isso. Mas o caminho não é, nem de longe, tão claro quanto a retórica de Elon Musk pode fazer parecer. Se tudo der certo, nos próximos anos os implantes da Neuralink se afirmarão como uma alternativa mais segura e durável para aplicações neuromotoras – recuperando alguns movimentos de pessoas tetraplégicas. Já é muita coisa.