Testes das vacinas estão focando na métrica errada
Ênfase nos números de "eficácia geral", que inclui casos leves e muito leves de Covid-19, gerou uma polêmica desnecessária com a Coronavac - e, agora, levou a África do Sul a abandonar a vacina de Oxford. Entenda o problema.

Ênfase nos números de “eficácia geral”, que inclui casos leves e muito leves de Covid-19, gerou uma polêmica desnecessária com a Coronavac – e, agora, levou a África do Sul a abandonar a vacina de Oxford. Entenda o problema.
Você deve lembrar da polêmica envolvendo os dados de eficácia da Coronavac. Primeiro falou-se em 100% (que foi a redução de casos graves) e depois em 50,3% (redução de todos os casos, incluindo os leves e muito leves), mas 78% é o número que realmente interessa – pois essa é a eficácia da vacina contra casos moderados e graves. Ou seja, sua eficácia em salvar vidas. A divulgação fracionada dos dados e a dificuldade em explicá-los dentro de um ciclo de notícias frenético provocaram a maior confusão. E, agora, estamos caindo de novo na mesma armadilha; só que com a vacina da Universidade de Oxford/AstraZeneca.
Na segunda-feira, a África do Sul suspendeu a aplicação dessa vacina depois que um estudo com 2.000 pessoas (grupo bem pequeno; os outros testes incluem 10 mil a 40 mil pessoas) mostrou que ela reduziu em apenas 10% os casos leves de Covid-19. Ou seja, a cepa africana (501Y.V2) teria aniquilado a eficácia da vacina de Oxford. Mas não há dados confiáveis sobre casos moderados e graves, pois os participantes tinham em média 31 anos -outro problema sério do teste-, e nessa idade a Covid-19 severa é naturalmente menos comum. Em suma: um estudo questionável e com números incompletos.
Mas foi suficiente para que a África do Sul interrompesse a vacinação, o que poderá se revelar um grave erro – já que os números não apontaram perda de eficácia da vacina contra casos moderados e graves. Também gerou mais um ciclo de manchetes preocupadas, enchendo a cabeça das pessoas de dúvidas e medo. Sem necessidade. Se você se vacinar e mesmo assim tiver um caso leve de Covid-19, tudo bem. A sua saúde não estará em risco. O que você não quer é um caso moderado ou grave. E esses dados o estudo africano não possui, pois foi mal desenhado (precisaria ter incluido pessoas mais velhas).
Os testes de todas as vacinas vêm adotando o mesmo parâmetro: se a pessoa tiver Covid leve ou muito leve, considera-se que a imunização falhou. É um critério extremamente rigoroso, que desconsidera o que realmente importa na prática – reduzir os casos moderados e graves.

Ele vem sendo adotado mesmo assim porque é relevante do ponto de vista epidemiológico (ajuda a estimar a eficácia de uma vacina para frear a pandemia, ainda que os estudos não avaliem possíveis efeitos na transmissibilidade do vírus), e porque ajuda a terminar o trabalho. Para calcular a eficácia de uma vacina, você precisa alcançar um determinado número de “falhas” no grupo placebo (aí você compara esse número com o do grupo vacinado e faz a conta). Ao incluir casos leves e muito leves no cálculo, chega-se ao endpoint (desfecho do estudo) mais depressa, e usando um grupo de voluntários menor.
Se o objetivo é evitar Covid moderada ou severa, ela deveria ser o endpoint. Mas, como esses casos são menos comuns, você precisaria incluir muito mais gente nos estudos para alcançar o número mínimo de falhas necessário. Se já é difícil fazer um trabalho com 10, 20, 40 mil pessoas, imagine isso multiplicado por dez, vinte ou cinquenta. Seria caro e demorado, e retardaria muito a aprovação das vacinas.
Dá para entender, então, por que os estudos têm incluído casos leves e muito leves nos cálculos de falha. Mas isso significa que os dados precisam ser olhados com discernimento. A partir de agora, quando você for ler sobre a eficácia de alguma vacina, relacionada a qualquer nova variante do vírus, tenha em mente o seguinte: o que realmente interessa é a redução de Covid moderada e grave. É muito difícil, ou impossível, varrer do mapa o Sars-CoV-2. Mas é possível transformá-lo numa doença leve, de sintomas irrelevantes. Basta que haja vacinação em massa – e um pouco mais de compreensão sobre o que os números dos estudos realmente significam.