Usina nuclear chinesa está vazando gás e vive “ameaça radiológica iminente”, diz operadora
Estatal francesa Framatome diz que há acúmulo e liberação de gás radioativo em reator de Taishan, a 130 km de Hong Hong; empresa enviou carta pedindo ajuda ao governo dos EUA; China nega risco
Estatal francesa Framatome diz que há acúmulo e liberação de gás radioativo em reator de Taishan, a 130 km de Hong Hong; empresa enviou carta pedindo ajuda ao governo dos EUA; China nega risco
“A situação é uma ameaça radiológica iminente, para o local e para o público, e a Framatome solicita permissão urgente para transferir dados e assistência técnica que possam ser necessários para retornar a usina à operação normal”, afirma a carta enviada pela Framatome (divisão nuclear da estatal francesa EDF) ao US Department of Energy no dia 8 de junho, e obtida pela CNN americana. O problema, diz a Framatome, é que o reator número 1 da usina nuclear de Taishan, a 130 km de Hong Kong, está vazando um gás radioativo, sem que as autoridades façam algo para contê-lo.
Pelo contrário: segundo a carta da Framatome (que ajudou a construir a usina, inaugurada em 2018, e participa de sua operação), a China simplesmente tem liberado o gás e aumentado seguidamente os limites permitidos na atmosfera. “Para garantir que os limites de dose off-site [radioatividade liberada pela usina] sejam mantidos em níveis aceitáveis, e não causem danos à população no entorno, a TNPJVC [joint venture entre os chineses e a Framatome] deve obedecer um limite regulatório, e desligar o reator se ele for excedido”, afirma o documento.
Dentro de um reator, há dezenas de milhares de barras de urânio, que são usadas na fissão nuclear. Essas barras têm um revestimento especial, geralmente uma liga de alumínio e zircônio. Ele serve para impedir que o urânio tenha contato direto com a água que passa dentro do reator. O reator Taishan-1 usa 60 mil barras de urânio. E algumas delas (apenas cinco, diz a China) têm rachaduras no revestimento – que podem ter sido causadas por falhas na fabricação ou danos durante sua instalação no reator.
Quando o urânio entra em contato com a água e o vapor presentes dentro do reator, aumenta a formação de certos gases – o principal é o xenônio-135, um isótopo radioativo do xenônio comum. Esse gás é um problema, porque atrapalha a fissão nuclear. O xenônio-135 absorve os nêutrons liberados pela quebra dos átomos de urânio. Com menos nêutrons circulando dentro do reator, a fissão nuclear diminui – e a potência do reator vai caindo até que ele pode parar de funcionar.
Existem três maneiras de lidar com o acúmulo de xenônio-135. A melhor e mais segura delas é desligar o reator e trocar as barras de urânio que estão com defeito. Outra opção é simplesmente liberar o gás, deixando que ele saia do reator e escape para a atmosfera – que é o que a China tem feito. (Os chineses detêm 70% da joint venture com a Framatome, e por isso mandam na usina de Taishan.) Existem níveis seguros para a liberação, sem que haja risco de contaminação radioativa. A primeira liberação de gás ocorreu em 5 de abril, e foi pequena – segundo os chineses, correspondeu a apenas 0,0004% do limite anual permitido.
Porém, o reator continuou acumulando e liberando gás, o que gerou alerta na Framatome. Segundo a empresa francesa, que cita “um número crescente de falhas” na usina, a NNSA (agência regulatória nuclear chinesa) dobrou o limite de gás permitido, o que “aumenta o risco para o público e os trabalhadores da usina”. O governo chinês se manifestou hoje (16) sobre o caso, dizendo que não houve vazamento nem risco de segurança.
A Framatome procurou o governo dos Estados Unidos porque, desde agosto de 2019, os americanos proíbem a exportação para a China de tecnologias e materiais que possam ter uso militar. É o caso dos reatores nucleares. Por isso a Framatome, que tem operações nos EUA, precisaria de autorização especial para usar novos materiais e procedimentos em Taishan.
Existe o receio de que os chineses tentem se livrar do gás radioativo aumentando a potência de operação do reator. Isso é feito retraindo os “bastões de controle”, que são feitos de materiais absorvedores de nêutrons (no caso do Taishan-1, uma liga de prata, índio e cádmio). Esse procedimento aumenta a quantidade de nêutrons circulantes e intensifica a fissão nuclear, o que por sua vez gera mais nêutrons – cuja abundância acaba neutralizando todo o xenônio-135 (ao absorver nêutrons ele vira xenônio-136, um gás que não atrapalha a reação nuclear). Problema resolvido.
O procedimento é conhecido como “queima do xenônio”. Se não for realizado com cuidado, ele pode levar o reator a uma condição insegura. Foi o acúmulo de xenônio e sua posterior “queima” que desencadearam a explosão do reator 4 de Chernobyl, em 1986.
Mas não dá para comparar os reatores do tipo PWR (“reator de água pressurizada”, em inglês), usados em Taishan e na maioria das usinas nucleares, com os RBMK (sigla em russo para “reator de canal de alta potência”) de Chernobyl. Os RBMK tinham características problemáticas. A principal delas é seu “coeficiente de vazio positivo”: se um reator RBMK perder água, seja porque ela vazou ou ferveu em demasia, o “vazio” que se abre intensifica a reação nuclear em cadeia, o que pode levar a uma situação difícil de controlar.
Já nos reatores PWR, a água não ferve, pois é pressurizada. E, se ela vazar, a reação em cadeia diminui – pois o “coeficiente de vazio” do PWR é negativo, e também porque nele a água faz o papel de “moderadora”, ou seja, desacelera os nêutrons para que a fissão possa ocorrer (nos RBMK, esse trabalho é feito por barras de grafite).
Além disso, o reator 4 de Chernobyl não tinha nenhuma estrutura de contenção: quando explodiu, seu conteúdo foi lançado diretamente na atmosfera. Já os reatores PWR ficam dentro de estruturas extremamente resistentes – o modelo usado em Taishan é envolto por uma sequência de paredes de aço e concreto com até 2,6 m de espessura, capazes de suportar enormes explosões, como o impacto direto de um avião.