Como a Alemanha ajudou a Revolução Russa a acontecer
Os alemães queriam acabar de vez com os inimigos russos na Primeira Guerra. Então enviaram "a mais terrível das armas"
Na tarde de 15 de março de 1917, o polonês Mieczyslaw Bronski subiu correndo os degraus e perguntou a Vladimir: “Você não ouviu as notícias? A revolução estourou na Rússia!”. Pudera. O país estava naufragando na Grande Guerra, já tinha perdido 1 milhão de soldados em sucessivas derrotas, as finanças estavam corroídas e a comida não chegava à população. A revolta popular tomou as ruas, o czar Nicolau II foi afastado e um governo provisório tomou as rédeas. Era tudo o que Vladimir queria, mas era tudo do jeito errado. E ele lá, enfurnado entre bêbados e prostitutas no Altstadt (no século 21, o bairro passaria a ser considerado uma zona turística de Zurique).
Vladimir sabia o que precisava fazer.
Depois de conseguir, em 1891, um diploma de Direito na Universidade de São Petersburgo (o antigo e germanizado nome de Petrogrado, até a guerra contra os alemães e os austríacos começar, em 1914), Vladimir liderou um grupo inspirado pelas teses filosóficas de Karl Marx, distribuiu panfletos em fábricas e recrutou novos membros à sua causa. A polícia o acompanhava de perto, já que seu irmão fora executado por tramar contra o czar. Em 1895, Vladimir seguiu a trajetória de pessoas de sua laia: acabou preso e condenado a três anos de exílio na Sibéria. Ele foi acompanhado de sua parceira de luta Nadezhda Krupskaya, com quem acabou se casando, na distância da taiga.
Vladimir voltou, mas logo tratou de viajar para outras paisagens. Pousou em Londres, Praga, Berna, sempre distribuindo seu jornal e tentando organizar um movimento internacional marxista. Até que a Grande Guerra estourou, e o casal estava na neutra Suíça. Com a pátria-mãe naufragando, era hora de retornar, mesmo com a guerra em curso. Isso só foi possível porque os alemães também queriam a mesma coisa. O Império Alemão julgava que aquele grupo de revolucionários forçaria o armistício da Rússia, para que ele então concentrasse suas forças no oeste e derrotasse os franceses e os ingleses de uma vez.
Em 9 de abril, Vladimir e outros 31 camaradas se reuniram na estação de Zurique. Foram hostilizados por uns 100 russos, furiosos por eles terem negociado com o inimigo. “Traidores! Porcos! O kaiser está pagando pela viagem… Eles vão enforcar vocês como espiões alemães!”, gritavam.
O trem deixou a Suíça e cruzou a Alemanha de sul a norte sem nenhum incômodo. Guardas alemães acompanharam o grupo, mas ficaram confinados no fim do comboio. Fumantes só podiam satisfazer ´seu hábito no banheiro. A cantoria só era permitida em determinados horários. A turma do debate era desencorajada do falatório ao receber pesados jornais para ler, em vez de falar. Vladimir e Nadezhda tinham um vagão próprio.
O grupo tomou uma balsa para atravessar o Báltico e chegar à Suécia, que, assim como a Suíça, estava neutra na guerra. O mar estava agitado, e muitos companheiros sofreram nos compartimentos abaixo do convés. Vladimir permaneceu do lado de fora, cantando hinos revolucionários com outros camaradas, até que uma onda o atingiu no rosto.
Em Estocolmo, simpatizantes de Vladimir o levaram à loja mais chique da Vasagatan, a principal rua de comércio da capital sueca. Lá, ele ganhou um banho de loja, para chegar como um cavalheiro em Petrogrado. Dezessete horas de trem depois, ele estava em Haparanda, onde, em 15 de abril, pegaram trenós a cavalo para cruzar o rio congelado que fazia a fronteira entre a Suécia e a Finlândia (que na época integrava o Império Russo). Era uma longa fila de trenós, cada um com duas pessoas. Todos estavam tensos à medida que se aproximavam do destino, menos Vladimir, relatou Grigory Zinoviev, um dos exilados, em suas memórias.
Todos achavam que seriam barrados pelas autoridades, mas, em vez disso, foram recebidos calorosamente. Oito dias de viagem depois, eles estavam de volta à capital russa. Centenas de trabalhadores, soldados e guardas de honra os aguardavam. Vladimir “Lênin” (nome que ele adotou durante o exílio na Sibéria) saiu do trem, subiu no teto de um veículo blindado e discursou: “O povo precisa de paz, o povo precisa de pão, o povo precisa de terra. E o governo provisório dá ao povo guerra e fome.”
O discurso se radicalizou nos meses seguintes até o estouro da segunda parte da revolução, em novembro (outubro, no calendário juliano). Lênin tomou o poder, em dezembro acertou o cessar-fogo com a Alemanha. Mas a paz não veio, muito menos o pão. A Guerra Civil Russa, que começou em seguida e durou até 1920, foi um dos mais sanguinários conflitos da história, com 9 milhões de mortos, sendo 5 milhões de fome. Somente depois disso o poder de Lênin, vitorioso, se consolidou, e a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas se estabeleceu.
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As potências beligerantes na Grande Guerra (como a Primeira Guerra Mundial era conhecida até o estouro da Segunda) tentaram mais de uma vez abalar a estrutura interna dos inimigos ao incitar revoluções. O britânico Thomas Lawrence “da Arábia” incitou os rebeldes árabes para minar o domínio do Império Otomano. Os alemães enviaram Lênin à Rússia e ainda apoiaram os rebeldes irlandeses que queriam a independência e ofereceram ajudar o México a reconquistar o Texas, o Arizona e o Novo México, a fim de manter os neutros Estados Unidos fora da zona europeia. Não deu certo, os EUA declararam guerra e ajudaram a derrotar a Alemanha.
Anos depois, Winston Churchill disse: “Os alemães enviaram à Rússia a mais terrível das armas. Transportaram Lênin em um trem lacrado como se fosse um bacilo da peste”. O primeiro-ministro britânico era um frasista genial, mas o trem não estava selado. Lênin pôde contemplar as belas paisagens nevadas da Escandinávia antes de mudar os rumos do século XX.
Muitos especialistas cravam que a Revolução Russa não seria a mesma (ou talvez nem existiria) sem a liderança de Lênin e Trotsky. E, sem aquela bela ajuda alemã, seria um tanto mais difícil Lênin chegar a São Petersburgo pouco tempo depois da abdicação do czar.