Como banqueiros fizeram o primeiro ciberataque da história – no século 19
O esquema envolvia meias, luvas e telescópios para burlar telégrafos com informações da Bolsa de Valores de Paris.
Na década de 1790, na França revolucionária, surgiu a primeira rede nacional de dados de que se tem notícia. Era um engenhoso sistema de telégrafo com torres interligadas, como essa acima. Cada uma dessas estruturas tinha braços móveis de madeira no topo e cada combinação desses braços correspondia a letras e números. Os mensageiros observavam sequências de torres à distância, com telescópio, e passavam adiante a informação transmitida pelos braços mecânicos. De torre em torre, os dados eram transmitidos por toda a França em questão de minutos.
Essa rede era monopólio estatal. Até que dois irmãos banqueiros resolveram burlá-la. Em 1834, François e Joseph Blanc negociavam títulos na Bolsa de Bordeaux, importante cidade portuária no sudoeste do país. Mas Bordeaux tinha um problema: ficava a quase 600 km de Paris, o que, em termos franceses, significa cruzar quase todo o território, de norte a sul.
Uma informação da capital levava dias para chegar pelo correio. Alguns homens de negócio tentavam driblar isso com mensageiros ou pombos-correio, mas não dava muito certo e no fim ninguém conseguia algum dado privilegiado para usar na Bolsa. Foi então que os Blanc tiveram a sacada. Alguma invenção incrível, uma inovação revolucionária? Nada disso. Deram um golpe criativo no nível Jimmy McGill/Saul Goodman, das séries Better Call Saul e Breaking Bad.
Funcionava assim: na Bolsa de Paris, um enviado dos irmãos observava diariamente a movimentação de títulos do governo. Sempre que havia uma oscilação significativa de valores, ele enviava um pacote para a esposa do diretor do telégrafo de Tours, cidade no meio do caminho entre Bordeaux e Paris. Se os preços estivessem caindo, o embrulho continha meias. Se estivessem subindo, o embrulho ia cheio de luvas. Meias e luvas não levantavam suspeita porque a mulher era dona de um armarinho, então podia ser uma remessa de fornecedor como outra qualquer.
Assim que ela recebia o pacote, o diretor do telégrafo preparava o código correspondente e um funcionário, que também estava no esquema, transmitia a mensagem criptografada, que navegava protegida até chegar a Bordeaux. Isso porque o código tinha uma tecla “backspace” que significava que o receptor deveria ignorar o caractere imediatamente anterior ao “backspace”. Ou seja, quando o funcionário transmitia a informação privilegiada da Bolsa seguida do “backspace”, essa mensagem deveria seguir direto, sem interceptações, até o fim da linha.
Acontece que a linha passava por Bordeaux. Lá, instalado em um quarto com vista para a torre da cidade, estava Pierre Renaud, ex-diretor do telégrafo de Lyon. Com um telescópio, ele captava a informação e a traduzia aos banqueiros, que sabiam das novas da Bolsa com dois dias de antecedência. Uma eternidade, graças aos conhecimentos de hacker do século 19 de Renaud.
O esquema funcionou por dois anos. Mas aí o funcionário de Tours ficou doente e, antes de morrer, revelou o trambique a um amigo, sugerindo que ele herdasse a função. Ele levou a proposta ao diretor do telégrafo da cidade, que, ao negar, jogou todo o golpe na privada. O homem, irritado por não conseguir a entrar na tramoia, revelou a história à polícia.
Os irmãos Blanc não foram condenados, porque na época nem havia uma punição prevista em lei para a manipulação de transmissão de dados. Mas o caso influenciou a legislação francesa por mais de um século, segundo Pierre Berloquin no livro Hidden Codes & Grand Designs: Secret Languages from Ancient Times to Modern Day.
Após o escândalo, o governo criou uma lei que determinava que meios de comunicação não deveriam ser usados para fins privados sem o consentimento do Estado. A transmissão de informações foi monopólio do governo francês até 1998, quando as leis liberais da Comunidade Europeia forçaram uma mudança. Um assunto delicado até hoje para governos de diversas partes do mundo.