Desirée Schuck testou drogas que vencem a malária pelo relógio
Os protozoários que causam a doença usam a melatonina – o hormônio do sono – como sinal para realizar um ataque sincronizado aos nossos glóbulos vermelhos. A #MulherCientista desta semana descobriu como confundi-los.
Imagine que você seja um estudante de biologia que ama estudar DNA. Em qual área você deve se especializar? Para Desirée Schuck, caloura do curso, o caminho lógico era ser geneticista. Mas aí veio a surpresa logo no início da faculdade: genética tem muito mais a ver com números e computação do que moléculas e laboratório. O que ela queria, na verdade, se chama biologia molecular.
Enquanto os geneticistas se preocupam com a matemática da distribuição de características hereditárias pelas populações de seres vivos, os biólogos moleculares investigam o hardware da vida: a molécula de DNA em si e a maneira como o código dela se traduz na fabricação de proteínas no interior das células.
A pesquisadora fez seu primeiro estágio estudando genes de regeneração em planárias – aqueles animais que podem ser cortados ao meio para virar dois indivíduos diferentes. Ela não continuou com os bichinhos por muito tempo, mas foi com eles que aprendeu o que é o método científico e decidiu que queria ser pesquisadora.
Uma de suas principais pesquisas ocorreu no doutorado, realizado na USP. Natural do Rio Grande do Sul, ela se mudou para São Paulo para estudar o Plasmodium falciparum, parasita causador da malária. Esses protozoários passam por um ciclo de vida complexo dentro dos humanos.
Em determinado momento, eles infectam os glóbulos vermelhos – células sanguíneas que transportam oxigênio –, se multiplicam lá dentro e então causam a explosão de diversas células simultaneamente. Ao se libertarem, sobrecarregam o sistema imunológico.
Pensa só: são milhares de microorganismos que permanecem sintonizados entre si, prontos para atacar no momento certo. Eles não têm relógio para organizar esse pequeno ato terrorista biológico, o que tornava a sincronia dos plasmódios um mistério para os cientistas. A pesquisadora Célia Garcia, orientadora de Desirée no doutorado, descobriu que o segredo estava no nosso próprio ciclo circadiano. Os parasitas detectam a presença do hormônio melatonina, que é liberado à noite. Esse é o despertador por trás da ação simultânea dos protozoários.
Conhecendo esse mecanismo, Desirée quis testar novas drogas que impedissem o protozoário de detectar a melatonina. Sem a explosão de várias hemácias de uma vez só, o sistema imunológico talvez conseguisse combater o parasita. Pensando nisso, a pesquisadora colocou os plasmódios em contato com moléculas parecidas com a melatonina. A ideia era que esses fakes se ligassem ao receptor do plasmódio, servindo como uma tampa para impedir que a molécula real se encaixe ali.
Mas aí surgiu um desafio: como saber em qual fase do ciclo os parasitas estão? Desirée estava testando muitas moléculas diferentes, então não era viável olhar cada protozoário, um por um, no microscópio. Nesse momento, a pesquisadora resgatou o interesse antigo que tinha pelo DNA. Junto com outros pesquisadores, ela desenvolveu uma técnica para contar quantas moléculas de DNA existem na amostra. Quanto mais avançado o protozoário está em seu ciclo de vida, mais moléculas de DNA ele tem. Dessa forma, a cientista conseguia determinar se os plasmódios estavam na mesma fase ou não. Drogas contra a malária que empregam esse técnica estão sendo testadas em fase pré-clínica – isto é, ainda não começaram a ser aplicadas em humanos.
Durante toda sua carreira acadêmica, Desirée trabalhou com diferentes técnicas de biologia molecular – além de ter criado uma inédita. Isso chamou a atenção da equipe de pesquisa e desenvolvimento (P&D) do Grupo Boticário, que a contratou como pesquisadora da empresa. Por lá, ela já investigou a criação de peles sintéticas e trabalhou até no desenvolvimento de órgãos em forma de chip.
(Por “chip”, entenda: trata-se de uma plaquinha que reúne células de vários órgãos em um lugar só. Assim é possível testar se um cosmético é alergênico para a pele ou para o olho ao mesmo tempo).
Tanto a pele sintética quanto os chips são técnicas alternativas que eliminaram os testes em animais. Desirée ainda faz pesquisas para avaliar o impacto dos produtos na vida marinha. Como alguns compostos atravessam a barreira da pele e chegam à corrente sanguínea, eles também podem acabar indo para o esgoto por meio do xixi. É importante garantir que os as moléculas presentes nos cosméticos não causem nenhuma desregulação hormonal nos peixes. Visando compartilhar essas pesquisas com o público, Desirée também liderou o projeto Beleza Transparente, site que reúne os estudos desenvolvidos por ela e sua equipe.
“Sempre pensei em ser professora acadêmica, mas estou feliz na minha área hoje. É muito bom ver o meu trabalho refletindo na ponta da cadeia. Fazer o teste em laboratório e depois ver uma legenda no rótulo do produto contando o que ele faz. Motiva muito a equipe”, conta a pesquisadora. Hoje, Desirée é gerente de segurança de produtos e métodos alternativos do Grupo Boticário.