Já imaginou viver em um mundo onde desmembrar um adolescente é prática comum? Assim é a realidade no mundo de Fragmentados (Ed. Novo Conceito, 368 págs.), primeiro livro da série homônima de Neal Shusterman. Esse é um livro para quem gosta de uma história intrigante e um cenário distópico, cheio de discussões atuais.
Depois da Guerra de Heartland, um conflito longo e sangrento entre os pró-vida (contra o aborto) e os pró-escolha (a favor do aborto), foi feita uma emenda na Constituição a fim de acabar com os desentendimentos entre os dois grupos. Essa emenda foi chamada de “Lei da vida” e dava aos pais o direito de fragmentar seus filhos depois de terem completado 13 anos.
“A Lei da Vida declara que a vida humana não pode ser tocada desde o momento da concepção até que a criança chegue à idade de 13 anos.”
Isso significa que, dos 13 aos 17 anos, os adolescentes estão à mercê dessa lei. Se, nesse intervalo, os pais decidirem que não querem mais a criança, têm o direito de mandá-la para um dos Campos de Colheita, locais onde os jovens são fragmentados.
O que é ser fragmentado? É ter todo seu corpo dividido cirurgicamente, com todos os órgãos e membros retirados e distribuídos para pessoas que precisam de transplante. É um meio de “abortar” a criança – mas, dentro dessa concepção, ela continuaria viva. Essa sociedade acredita que esses fragmentários, mesmo divididos, estão conscientes e ajudando os doentes ao doarem as suas mãos, braços e pernas aos hospitais.
Mas falhas acontecem nesse sistema e percebemos isso a partir do ponto de vista das personagens que narram a história: três adolescentes que recebem ordem de fragmentação e tentam escapar desse destino horripilante. O romance é sempre narrado em terceira pessoa e intercala as perspectivas dos personagens, deixando a leitura dinâmica e dando abertura para vários questionamentos.
Dentre os três, começamos a história com Connor, um jovem de 17 anos que sempre foi muito bagunceiro e se metia em encrencas, mas que, um dia, acabou descobrindo por acaso a ordem de sua fragmentação, junto de um cartão de férias para os pais e seu irmão mais novo. Ele decide fugir antes que chegue o dia dos policiais juvenis baterem em sua casa.
Depois dele, somos apresentados a Risa, uma órfã que vive na casa estatal e que, apesar de ser estudiosa e talentosa, acaba não se destacando em nada. Por isso, o governo acha melhor mandá-la para a fragmentação e não gastar mais dinheiro com a sua estadia.
Por último, temos Lev, um menino de 13 anos que é o décimo filho de uma família religiosa. Como a família sempre doa tudo à Igreja, por que não doaria 10% dos filhos? Sob essa lógica, Lev é escolhido para ser “doado”. Ele é considerado (e se autoconsidera) um dízimo e, por isso, vê a fragmentação como um ato de bondade, um jeito de se doar a Deus e ajudar os doentes.
Os três adolescentes acabam se encontrando inesperadamente durante a trama e, juntos, tentam fugir da fragmentação até completarem 18 anos, quando não puderem mais ser fragmentados.
O autor possui uma escrita viciante e que, a cada capítulo, faz você querer saber o que de fato aconteceu com os personagens. Além disso, o cenário que presenciamos durante a leitura é aterrorizante e revoltante. Os personagens são muito bem construídos e, a cada capítulo, percebemos o seu amadurecimento, junto de todas as emoções que envolvem um fragmentário: o medo, a raiva e a dor.
O mais importante é que, mesmo dentro da categoria de ficção, o livro chega longe de ser algo surreal. Os assuntos tratados dentro da trama são tão atuais quanto uma distopia pode revelar, e vários questionamentos são levantados. O aborto, o sistema falho e a injustiça são todos temas tratados com brilhantismo e que servem como pano de fundo interessante para a leitura.