A ciência contra a birra
Entenda por que as crianças reagem de forma explosiva quando ouvem "não" – e aprenda a controlar esses ataques de fúria com a ajuda da neuropediatria
Não importa de onde você venha: se existem crianças lá, elas fazem birra. Pode ser o filho de um feirante brasileiro, de um lorde inglês ou um pequeno candidato ao posto de Dalai Lama, no Tibete – todos são capazes de se jogar no chão, berrando e esmurrando o piso, diante de fatos triviais como a recusa do pai em comprar um brinquedo ou a interrupção da diversão com os coleguinhas na hora de tomar banho.
Se você se pergunta por que coisas tão corriqueiras têm o poder de tirar os pequenos do sério – e, com eles, você – saiba que a explicação está no desenvolvimento incompleto de nosso cérebro quando nascemos. É a mesma razão pela qual os filhotes humanos dependem tanto dos pais durante a infância e a adolescência. Em formação, volta e meia o cérebro dos pequenos “dá curto”.
Uma das áreas que não nascem prontas é a parte superior da massa cinzenta – o neocórtex. Essa região, a mais recente a se desenvolver do ponto de vista evolutivo, é responsável por capacidades como reflexão, planejamento, imaginação, pensamento analítico e solução de problemas, e corresponde a 76% do cérebro.
“As crianças nascem com muitas áreas sem a camada de gordura que reveste os axônios, responsáveis pela transmissão dos sinais cerebrais entre as células nervosas”, explica o neuropediatra Mauro Muszkat, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). É como se um lustre viesse da fábrica com todas as lâmpadas, mas, em parte delas, faltassem os fios que permitem que elas acendam (não se preocupe, mais tarde, por volta dos seis anos de idade, tudo se iluminará). Na ausência de conexões neuronais adequadas nos primeiros quatro anos, a atividade mais intensa acontece nas partes inferiores – que surgiram antes na evolução do Homo sapiens.
São as áreas que os cientistas apelidaram de cérebros reptiliano e mamífero. O primeiro é a parte mais profunda e antiga do cérebro humano, pouco modificada pela evolução. Para se ter uma ideia, ela é basicamente igual em todos os vertebrados – o elo perdido entre aquele bebê da propaganda de fraldas e uma lagartixa. Regula funções básicas relacionadas à sobrevivência, como fome, respiração e digestão. E reações instintivas de defesa e ataque, ligadas ao sentido de autopreservação da espécie e à defesa territorial.
Já o cérebro mamífero é equipado com habilidades para a convivência e a construção de relações sociais. Também conhecido como cérebro emocional, inclui o sistema límbico, estrutura que desperta emoções fortes, como raiva, medo e estresse associado à separação. Enquanto a parte mais primitiva do cérebro já vem bem desenvolvida desde o nascimento, a parte superior – nosso cérebro racional, composto pelo neocórtex e em particular pelos lobos frontais, que comanda o pensamento racional, a capacidade de solucionar problemas, criatividade e imaginação – só atinge sua plena maturidade por volta dos 25 anos de idade.
“É uma das últimas partes do cérebro a se desenvolver, e permanece em constante construção durante os primeiros anos da vida”, diz o pediatra e psiquiatra Daniel Siegel em seu livro The Whole Brain Child (algo como “O cérebro integral do bebê”), sem tradução no Brasil. Por isso, alguns comportamentos que queremos que nossas crianças demonstrem são praticamente impossíveis para elas. “A habilidade de tomar decisões equilibradas, controle emocional, ética e capacidade de prever as consequências de seus atos dependem de uma parte do cérebro que ainda está em formação, e que não está disponível para elas todo o tempo”, afirma Siegel, que também é pesquisador na Universidade da Califórnia.
Cérebros em fúria
Uma crise de birra significa que um de três alarmes – raiva, medo ou temor da separação – foi acionado na parte inferior, mais primitiva, do cérebro infantil. Esses sistemas, que fazem, por exemplo, com que o bebê se sinta terrivelmente inseguro ao menor afastamento dos pais, ou se assuste e chore diante de um barulho, foram originalmente desenvolvidos para proteger os filhotes de situações perigosas, como ser devorados por um predador.
“No mundo moderno, os estímulos para acionar os sistemas de medo ou raiva podem ser você saindo do quarto, uma porta batendo ou um coleguinha pegando um brinquedo dele”, diz a psicóloga Margot Sunderland, autora do livro The Science of Parenting (que poderia ser traduzido como “A Ciência da criação de filhos”), sem edição no Brasil.
“Sem o auxílio da parte superior do cérebro para racionalizar e se acalmar, o resultado é que a criança fica superexcitada, com altos níveis de substâncias químicas associadas ao estresse percorrendo seu corpo e cérebro”, afirma Sunderland, diretora de educação e treinamento no Centre for Child Mental Health, em Londres.
Nessas situações, a amígdala, uma das regiões da parte inferior do cérebro, normalmente disparada em situações de perigo, bloqueia as conexões da parte racional com a parte mais instintiva.
“É como se um portãozinho de segurança fosse colocado na base de uma escada, tornando o acesso ao cérebro superior inalcançável”, diz Daniel Siegel. Ou seja: não bastasse o cérebro ainda estar em construção, quando os pequenos estão sob forte estresse, algumas áreas dele ficam inacessíveis às crianças pequenas durante o momento da birra. E aí, mesmo sendo muito bem educada, fica difícil se controlar.
Trabalho em equipe
Até os quatro anos, essa falta de sintonia na cabeça dos pequenos tem um agravante: nessa idade, os dois hemisférios cerebrais ainda não trabalham de forma totalmente integrada. Se você já conviveu com uma criança pequena – seja seu filho, sobrinho ou aquele menino barulhento do apartamento de cima –, deve ter percebido que até essa idade as crises de fúria parecem nunca ter fim. Nessa fase, ainda não há fibras mielinizadas suficientes no corpo caloso, que conecta os dois hemisférios cerebrais.
Como Tico e Teco ainda não se conhecem muito bem, falta um trabalho em equipe que é crucial para um comportamento equilibrado. Enquanto o lado esquerdo é responsável pelo pensamento lógico, linear e pela linguagem, o direito é intuitivo, emocional e não-verbal. Quando esse último trabalha sozinho, somos dominados por sensações físicas e emoções.
É mais ou menos o que acontece com as crianças de menos de quatro anos, nas quais esse lado do cérebro é dominante. Elas ainda não têm a habilidade de recorrer à lógica e às palavras para expressar seus sentimentos e vivem completamente no presente. “Por isso são capazes de deixar tudo para se ajoelhar e observar com toda a atenção uma joaninha atravessar a calçada, sem se preocupar se estão atrasadas”, diz o Siegel. É essa inundação emocional também que explica a choradeira desproporcional do pequeno simplesmente porque você não deixou que ele mexesse num objeto na casa que vocês foram visitar.
Driblando o choro
Mas, se não dá para evitar as birras, é possível pelo menos contorná-las. O truque: tentar ajudar o bebê a integrar melhor as diferentes partes do cérebro, com a lógica do lado esquerdo do cérebro ajudando a controlar as emoções do lado direito, e a parte superior permitindo racionalizar e analisar as reações instintivas e viscerais da parte inferior. Como acontece com os adultos (pelo menos é o que esperamos).
Por isso, segundo o pediatra Daniel Siegel, no auge da crise da criança, quando o hemisfério direito está predominante, o melhor é abordá-la de forma emocional. Para isso, quando começar a birra, abrace-a, use expressões faciais empáticas e um tom de voz carinhoso. Traduza em palavras os sentimentos que ela própria não consegue descrever – já que seu hemisfério esquerdo, responsável pela linguagem, não está no comando.
Diga frases como: “Eu entendo que você ficou muito chateado porque seu coleguinha teve de ir embora. É muito chato quando isso acontece”. Isso vai acalmá-la. Depois, ajude-a a retomar a conexão com o hemisfério esquerdo, pedindo que ela mesma recorra à linguagem para explicar por que ficou chateada e propondo alternativas para resolver o problema. Pode dizer algo como: “O que você acha que a gente pode fazer para ficar divertido de novo? Do que nós dois poderíamos brincar?”.
Como até os quatro anos de idade a atividade no hemisfério esquerdo – responsável pelo pensamento lógico – é limitada, não surtirá nenhum efeito argumentar com a criança. Nem gaste seu latim explicando por que você não pode comprar aquele brinquedo agora. Mesmo que você seja muito didático, as probabilidades de que ela entenda são pequenas. Como não existe uma percepção clara de linearidade e passagem do tempo, tampouco adiantará prometer para depois. O modo mais rápido de acabar com a birra, sugerem os especialistas, é atrair a atenção da criança para outra coisa, seja mostrando outro objeto interessante ou fazendo algo inusitado para distrair a criança do motivo da crise. Vale mostrar o elevador do shopping ou convidá-la para um passeio na escada rolante.
Outra estratégia para evitar os acessos de manha é tentar ajudar a criança a acessar a parte superior do cérebro, em vez de atiçar a parte inferior, mais reativa e instintiva. Para isso, ao vê-la tentar pegar um enfeite de vidro na sala, em vez de gritar “não” e impedi-la – o que pode provocar uma reação furiosa –, proponha algo que a obrigará a considerar um plano e fazer uma escolha, atividades relacionadas à parte superior do cérebro. “Vamos brincar lá fora? O que você acha que poderíamos fazer?”.
E se nada disso funcionar, você ainda tem uma opção: colocar a criança para correr. É sério. A atividade física pode alterar a química cerebral. Para evitar que os hormônios ligados ao estresse assumam o comando, convide-a para correr no jardim ou brincar de não deixar o balão cair – e veja como ela muda de astral.
Paz e amor em família
Outra dica valiosa para evitar birras e diminuir a quantidade delas a longo prazo: controle-se você também. O neuropediatra Mauro Muzkat, da Unifesp, alerta que o estado emocional dos pais tem grande impacto sobre o comportamento dos filhos e o nível de excitação da criança. “Graças aos neurônios-espelho, as crianças reproduzem desde as expressões até as sensações dos pais”, diz ele. “Se a criança está tensa, os pais não devem entrar no mesmo circuito reativo. Isso só vai pôr mais lenha na fogueira”, afirma.
Se, ao contrário, você conseguir manter uma boa atitude cada vez que um novo acesso de fúria da criança acontecer, terá boas chances de ajudá-la a programar seu cérebro para ficar mais calma também a longo prazo. Afinal, pesquisas revelaram que o cérebro é plástico, moldável. Ou seja: as dicas aqui valem para os momentos de birra, mas poderão surtir efeitos positivos durante todo o resto da vida da criança.
Para saber mais
The Whole Brain Child
Daniel J. Siegel, The Random House, 2011