A salvação da lavoura
A loja virtual da Apple salvou a indústria da música dela mesma. E a empresa ainda teve que convencer as gravadoras de que o iTunes representava o futuro
Pedro Burgos
O iPod era mais bonito, útil e fácil de usar do que qualquer tocador de MP3 disponível no mercado em 2001. Mas, sozinho, poderia ter sido superado pelo tempo, pelas imitações ou pela reação da concorrência. Se o produto vingou e se tornou tão influente, é por outro motivo bem menos lembrado: o iTunes.
O software que deu origem ao iTunes, o Sound Jam, foi comprado de uma pequena empresa, a Cassady & Greene, no início de 2001. A Apple retirou as gordurinhas e deixou a interface extremamente simples. O objetivo era facilitar a vida do consumidor: bastava colocar um CD no computador, ele convertia para MP3 e sincronizava sua coleção com o iPod. Mas isso foi só um pedaço da história. Por que esse processo complicado de comprar um CD para converter? Melhor ter um MP3 direto. Mas, em 2001, os lugares onde era possível comprar música eram rudimentares, com acervos limitados e os arquivos tinham diversas proteções contra a cópia.
Naquele momento, era terrivelmente difícil lidar com MP3 e a velocidade de conexão não ajudava. A maior parte das pessoas não sabia da existência desses programas de trocas de arquivos. Mesmo assim, o download mostrou uma tendência: uma enorme parte dos consumidores estava interessada em escolher as músicas que queria e achava caro demais pagar o preço de um disco inteiro por uma ou duas faixas que interessavam. Era necessário um novo modelo de distribuição.
Executivos ignorantes
As gravadoras não entendiam o novo mercado. Segundo Jobs, os executivos que controlavam a venda de música eram “ignorantes” alheios à tecnologia, avessos até a e-mails. Na época do iPod, eles faziam experiências toscas com um modelo de “assinatura” de catálogo. Você pagava por mês e podia ouvir quantas músicas quisesse, mas uma vez que parasse todos os seus arquivos sumiam. Já viu um modelo de aluguel de LPs dar certo em algum lugar? Pois então.
As primeiras conversas de Jobs com as gravadoras foram infrutíferas. Mas a Apple persistiu. Uma das qualidades menos mencionadas sobre o executivo é sua habilidade em lidar com os homens de negócios das outras empresas. Toda a sua habilidade foi posta à prova nos 18 meses de negociação que levaram à criação da loja do iTunes, em 2003, e a sua compatibilidade com o Windows, para aumentar o público em potencial. Como não gostava de entregar um produto incompleto, ele só abriu a loja quando todas as grandes gravadoras aceitaram entrar na dança, e 200 mil músicas estavam disponíveis para download ao preço de US$ 0,99 cada uma.
As vendas do iPod, que até então eram boas, mas ainda não tinham chegado ao primeiro milhão, decolaram a partir daí. Porque Jobs fez um acordo bastante interessante para as gravadoras e sua própria empresa: as músicas não podiam ser copiadas para outros computadores (ou distribuídas na rede) e o formato seria exclusivo do iPod. Menos de um ano depois, a loja do iTunes comemorava os 100 milhões de downloads e o aparelho da Apple dominava 84% do mercado de tocadores de música. Agora sim a revolução na música estava completa.
Em 2008, o iTunes viraria a maior loja de música dos Estados Unidos, deixando para trás a onipresente rede de mercados WalMart. As gravadoras passaram a entender o modelo. Assim, o iTunes salvava a indústria da música dela mesma, criando várias formas de fazer com que o consumidor gastasse dinheiro com seu artista favorito.
Novo desafio
O grande problema da Apple agora é reproduzir este modelo para o conteúdo em vídeo, coisa que ela tenta desde 2005. O serviço já é bom: hoje, é possível assistir a um episódio de uma série de TV em alta definição apenas um dia depois de ele ir ao ar ou assinar uma temporada inteira: o computador faz o download assim que o capítulo está disponível. Mas, diferentemente do iTunes, ele não é a principal loja do mercado.
Com preços melhores e mais acordos de distribuição, a Apple também quer mudar radicalmente o mercado de vídeo e diminuir a pirataria. O grande concorrente é a Amazon, que começou a fazer seu próprio tablet. A briga vai ser boa. E os consumidores acabam ganhando no final.
Mercado difícil
Por que a App Store brasileira não é como a dos outros países?
Se nos Estados Unidos o iTunes já é sinônimo da lojinhas de músicas, vídeos e aplicativos, para nós, brasileiros, o nome costuma se referir ao programa terrivelmente pesado que habita os computadores de quem precisa sincronizar arquivos com as iCoisas. Mas por que o Brasil, um enorme mercado, não tem os mesmos direitos que, digamos, o México? A situação é diferente para cada mídia. No caso de música, em que o entendimento seria teoricamente mais fácil (ouvimos muitos dos artistas que os americanos ouvem), a dificuldade é fechar acordos com as gravadoras daqui, ainda mais resistentes a mudanças do que as de outros países. No caso dos vídeos, os estúdios têm medo de brigar com as fortes empresas de TV a cabo. A liberação do iTunes permitiria que os fãs das séries vissem um episódio antes de ele ir ao ar na nossa TV, diminuindo a vantagem de assinar um canal. Para despertar o interesse do brasileiro, seria preciso acrescentar legendas, por exemplo, e há dúvidas de quanto estaríamos dispostos a pagar por esse tipo de conteúdo – o mundo conhece o Brasil como o paraíso da pirataria.