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Como o comércio se dá bem

Não existe mercadoria sem juros. O que há são juros pré-fixados. E essa armadilha fica mais perigosa justamente quando os juros da Selic estão altos, como agora. Entenda

Por Maurício Horta
Atualizado em 31 out 2016, 18h59 - Publicado em 17 dez 2015, 12h30
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  • Edição: Alexandre Versignassi

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    Crediário de loja é algo tão brasileiro quanto jabuticaba, saci-pererê, despachante e brigadeiro. E é tão irresistível quanto este último. Você não pode pagar? Tudo bem. Leva mesmo assim, em suaves prestações. O preço final pode até estar inflado. Mas ok. O que importa é que as parcelas “caibam no bolso”.

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    A história do crediário se confunde com a história do varejo no Brasil. Na década de 1950, quando o sistema bancário era incipiente e os cartões de crédito nem existiam por aqui, quem não tivesse dinheiro para pagar à vista já podia cadastrar-se na loja e pagar sua compra mensalmente no carnê, sem banco. Deu mais certo do que a encomenda. Primeiro, porque a maioria pagava mesmo em dia. Segundo, porque, conforme a clientela voltava para honrar suas prestações, aproveitava e comprava mais mercadorias.

    Nisso, o modelo virou padrão no território nacional. Mas só aqui. Tente abrir um crediário fora do Brasil – o vendedor vai olhar para você com uma cara de interrogação. Afinal, quem fornece o crédito para as compras no resto do mundo não é a loja, mas o banco. Se quiser parcelar, que o faça no cartão de crédito, pagando juros. No Brasil, não. As décadas de inflação e de instabilidade econômica mantiveram o grosso da população sem conta bancária. Mesmo no final do século 20, com comerciais da American Express e do Diner¿s Club pipocando na televisão, o único crédito a que a maioria tinha acesso mesmo era o da loja. “A minha felicidade é um crediário nas Casas Bahia”, diziam os Mamonas. O verso aludia, de certa forma, à precariedade do sistema financeiro nacional – ainda que por vias tortas, já que o alvo da piada era outra precariedade: a do sujeito que não podia ter cartão de crédito, só carnê.

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    E era isso mesmo. As lojas, na prática, tinham se transformado em bancos populares de crédito direto ao consumidor. Não fossem pelos carnês, poucos teriam meios para comprar móveis e eletrodomésticos. O problema é que a cultura da loja-banco contribuiu para outra anomalia. Vamos ver.

    No século 21, com os cartões de crédito já bem popularizados, as lojas começaram a parcelar os pagamentos em várias vezes “sem juros”. O novo normal não era apenas parcelar, mas fazê-lo sem cobrar nada, com a comodidade do cartão de crédito.

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    Só tem uma coisa: isso não existe. Parcelamento sem juros é algo tão nonsense para a economia quanto uma ação sem a respectiva reação é para a física. Matematicamente, a soma de parcelas “sem juros” é igual ao preço à vista. Ok. Na aparência, então, os juros seriam de fato zero. Mas isso não faz sentido do ponto de vista econômico. Ao deixar de receber o valor inteiro à vista, o lojista assume três novos custos. O primeiro é o custo de oportunidade – ao vender a prazo, o vendedor perde a chance de investir o dinheiro do pagamento à vista e, assim, ganhar juros.

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    Para que valha a pena receber a prazo, ele precisa embutir esses juros no preço “sem juros”. O segundo custo é a inflação –  o vendedor inclui no preço a depreciação do poder de compra ao longo dos meses em que se pagarão as parcelas. O terceiro é administrativo. Quando a venda é feita no crediário da loja, somam-se ao preço os custos dos funcionários dedicados à abertura de crédito e da consulta a uma empresa de proteção ao crédito para verificar a condição do cliente de honrar os pagamentos. Já na compra parcelada com o cartão, o lojista paga taxas administrativas –  algo entre 2,5% e 4,5% do valor final – e ainda precisa esperar o dinheiro cair no caixa.

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    Além disso, não receber o dinheiro à vista significa menos capital de giro. Se a empresa ficar com o caixa vazio, vai precisar recorrer a empréstimos ou pagar uma taxa para o adiantamento do dinheiro. Tudo isso precisa entrar no preço final – de outra forma, o comerciante ficaria no prejuízo. “Encontramos tudo parcelado em 10, 12 vezes iguais. Mas nada é parcelado sem juros, diz Maria Inês Dolci, advogada especialista em direitos do consumidor. “Eles já vêm embutidos no preço.”

    Na prática, uma compra sem juros é simplesmente uma compra com juros pré-fixados. E tem uma ironia aí: quanto mais altos os juros estiverem, maior será a oferta de “sem juros”. É que, quando os juros estão bem altos, o mercado começa a antecipar o ponto de inflexão, o momento em que os juros vão baixar. Então fica mais vantajoso vender um carro em 80 vezes com os juros “travados” no patamar de 2015 do que cobrar juros pós-fixados, que tendem a cair no longuíssimo prazo.

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    Vamos ver agora como funcionam esses juros pré-fixados. Suponhamos que uma loja venda um celular a R$ 1.000 em dez parcelas de R$ 100 “sem juros”. Se estiverem embutidos nesse parcelamento os juros básicos da economia – a Selic -, deveríamos ter um valor à vista de R$ 918,54. Se colocarmos um custo administrativo de 5%, chegaremos a R$ 872,61, contra os R$ 1.000 iniciais. Convenhamos: R$ 127, 39 seriam um belo desconto.

    O único jeito de consegui-lo seria bater o pé e exigir o pagamento à vista. Mas não é tão simples: a loja geralmente cobra os juros no pagamento à vista, de modo que fazer a compra sem dividir em parcelas se torne algo desvantajoso para você. Desse jeito, fica bem mais fácil a loja vender com juros pré-fixados, e ganhar um extra com eles. Nem parece loja. Parece banco. Para todos os efeitos, as lojas viraram bancos mesmo – instituições que ganham dinheiro vendendo dinheiro, comercializando crédito.

    Isso funciona porque a preocupação do consumidor brasileiro não é com o valor final do produto. Segundo uma pesquisa do SPC, 61% dos usuários de cartão de crédito consideram que o mais importante na hora da compra é a parcela caber no bolso. Ele não se importa com juros implícitos, que vão empobrecê-lo. Nem dá bola para os juros explícitos, do cartão e do cheque especial, que podem imergi-lo na inadimplência. Mas nada disso chega a ser surpresa. Não num país que acaba ele mesmo de perder seu selo de bom pagador. O país da próxima página.

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    VENHA GASTAR DINHEIRO À TOA

    As ferramentas do comércio para convencer você a abrir a carteira sem pensar:

    Garantia estendida
    Não é uma “garantia”. É um serviço de manutenção que você paga com anos de antecedência – e sem saber se vai usar. Provavelmente não vai. Tanto que a margem de lucro de quem vende garantia estendida chega facilmente a 100%, segundo um estudo da Universidade Penn State, nos EUA.

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    Só os 10 primeiros
    Ao baixar o preço de um número limitado de peças, o vendedor atrai consumidores – só para descobrirem que essas peças acabaram. Montadoras que anunciam carros a preços baixos, mas que só valem para meia dúzia de unidades, são mestres nisso.

    70% de desconto
    É a isca preferida das lojas de roupa. O lojista anuncia uma redução – com o detalhe de que vale para poucos modelos, que estão sempre misturados a outros de preço integral.

    Black Fraude
    O “Black Friday” – dia seguinte ao de Ação de Graças – é o de maiores descontos nos EUA. No Brasil, varejistas decidiram fazer igual, mas diferente. Muitos criam promoções falsas: aumentam os preços nos dias anteriores e depois baixam para o valor original. Aí fica fácil dar 50%, 60% de “desconto”.

    Leia mais:
    Como os bancos se dão bem
    Como o governo se dá bem

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