É a mãe!
O insulto típico trata de atribuir ao ofendido alguma qualidade reconhecidamente negativa.
Cláudio Moreno
Embora possamos insultar os outros com gestos e atitudes, o genuíno, o bom insulto é sempre verbal. Para molestar o ouvinte o máximo possível, dispomos de palavras humilhantes, que equivalem a projéteis sonoros. É isso que nos diferencia das outras espécies. Os outros animais só podem manifestar sua ira e seu repúdio com agressões físicas como o coice e a dentada. Os símios, mais evoluídos, já fazem caretas, uivam e guincham com escárnio. O macaco bugio, ao jogar excremento fresco sobre seu desafeto, é o que mais perto chega do homem, pois nele já percebemos aquela intenção simbólica que caracteriza o insulto. Para a espécie humana, no entanto, o verdadeiro insulto nasceu quando nosso bisavô troglodita deixou cair o porrete e a pedra que trazia nas mãos e experimentou atingir seu oponente com alguma palavra bem cabeluda, vendo, com satisfação, que isso deixava o ouvinte furioso e, muitas vezes, mais abatido do que se tivesse levado uma porretada. Estava aberto o campo para a experimentação.
Essa evolução da agressão física para a verbal está manifesta na história do próprio vocábulo “insulto”. Em latim, insultare significava, literalmente, “atacar, acometer alguém, pular sobre ele”. O ataque era físico, sem palavras (a não ser, talvez, por algum grito de entusiasmo). Com o tempo, esse verbo, irmão de saltare, de onde derivaram “assalto” e “salteador”, evoluiu para seu sentido atual, de um ataque puramente verbal.
O insulto típico trata de atribuir ao ofendido alguma qualidade reconhecidamente negativa. Na nossa cultura, as áreas mais exploradas são a pouca inteligência (burro, lorpa, estúpido, tolo, bocó, coió), a sanidade mental (louco, maluco, tantã), a prática de atos condenáveis (ladrão, vigarista, corrupto) e o comportamento sexual tido como censurável (puta, veado, broxa). Como o insulto reflete as crenças de uma comunidade em um determinado momento, é natural que de uma região para outra ou de uma época para outra haja divergências sobre o que é insultuoso.
Da imensa lista de vocábulos que podem ser proferidos com intenção (e efeito!) insultuosa, destacamos alguns que têm uma história parecida: nasceram sem malícia, mas terminaram fazendo parte das ofensas mais comuns do nosso idioma.
Idiota
Quase cinco séculos antes de Cristo, o estadista e general grego Péricles (495–429 a.C.) classificou de idiotes (de idios: “separado”, “privado”) os cidadãos que se ocupavam exclusivamente com seus assuntos particulares e não se envolviam com os problemas de Atenas. A participação nas decisões coletivas era a essência da democracia ateniense. Os que desertavam desse dever cívico eram, muito naturalmente, olhados com desprezo e o vocábulo logo passou a ser usado como insulto. Além de designar os maus cidadãos, idiotes terminou englobando também a idéia de alienação do mundo concreto e real. Quando chegou a Roma, que trataria de difundi-lo pela Europa, o termo “idiota” já estava ligado, como hoje, à ignorância ou à debilidade mental.
Imbecil
No sentido original que tinha no latim, o vocábulo imbecillis significava “fraco”, “frágil”. A decisão de um juiz, o estado de espírito de um governante, uma mulher, uma criança pequena, a saúde de um cidadão – tudo isso poderia ser qualificado de imbecil, nesse sentido primitivo do termo. Até mesmo a terra estéril, sem força, podia ser imbecil. Pouco a pouco, a partir do século XVI, a palavra vai-se limitando a indicar a “fraqueza da inteligência”, embora Molière, em Escola de Mulheres (1662), ainda use o termo com o antigo significado de fraqueza: “Nada há de mais fraco ou imbecil”, diz ele das mulheres, e não é à sua inteligência que ele está se referindo, mas à suposta fragilidade do sexo feminino.
Cretino
Veio de “cristão”. Em certos vales isolados dos Alpes suíços, na Idade Média, a ausência de iodo na comida fez surgir muitos indivíduos deformados, com inteligência reduzida, quase anões, mirrados, pálidos e com a pele murcha. Para que a população os tratasse com compaixão, os padres da região lembravam que essas infelizes criaturas também eram filhos de Deus, eram “cristãos” – em francês, chrétien; no dialeto da região, cretin. A partir do século XIX, tornou-se uma das formas preferidas de insultar a inteligência alheia.
Canalha
O insulto preferido de Nelson Rodrigues veio do italiano canaglia, literalmente “cachorrada” (de cane, “cão”) e designava, no seu sentido primitivo, a plebe, a ralé – aquilo que o Quico, do seriado de TV Chaves, chama de “gentalha”. Hoje o termo perdeu o seu valor coletivo e passou a ser um insulto individual, tendo adquirido o sentido de “sujeito vil, traiçoeiro, sem princípios e sem caráter”.
Boçal
Na América Espanhola e no Brasil, assim era chamado o escravo recém-chegado da África que só falava sua língua nativa. Como não entendia (ou fingia não entender) o português, era menor o seu valor como mercadoria no nefando comércio de escravos, já que não podia ser instruído em ofícios ou atividades mais complexas. Alguns dicionários registram o uso do termo também com relação a animais não adestrados. Desse sentido inicial passou a ser um dos insultos mais pesados da nossa língua, significando “ignorante”, “estúpido”.
Besta
Os animais de carga constituem uma fonte abundante de palavras insultuosas. Para chamar alguém de grosseiro ou ignorante, acrescentando aquele toque ofensivo indispensável ao bom insulto, servem tanto os genéricos (besta, quadrúpede, cavalgadura), quanto os mais específicos (asno, burro, mula, jerico, jumento, cavalo). Se alguns desses vocábulos terminaram perdendo sua força agressiva pelo uso continuado, nosso idioma deu-nos várias maneiras de recuperar seu vigor inicial: “besta quadrada”, “pedaço de asno”, “besta galega”.
Otário
Consta que esse termo nos veio através do lunfardo (a língua da malandragem de Buenos Aires). É mais um insulto extraído do mundo animal: os otários são os lobos e os leões-marinhos, primos da morsa, da foca e do elefante-marinho. Como todos os seus parentes, são animais pouco ágeis, extremamente lentos, com uma inegável aparência de tolos – daí o seu aproveitamento como ofensa.