O bicho que pega dentro da cadeia
A rebelião de prisioneiros na Bangu 1 do filme aconteceu também na de verdade, com Beira-Mar de protagonista. E deixou claro: nossas prisões são frágeis demais para a elite do crime
Texto Guilherme Felitti
O agente penitenciário avisa aos colegas que vai fazer a vistoria. Contrariando as normas de segurança, deixa o pesado portão de ferro aberto, com as chaves na fechadura, para entrar na galeria com 12 celas.
Ao encontrar um grupo de presos, cita um suposto acordo e entrega sua arma. Sob a liderança do traficante Beirada, a rebelião começa. O grupo invade a galeria de outra facção, executa seus rivais e queima os corpos. O Bope é chamado, as negociações começam, a cadeia é invadida e a partir daí a história do Coronel Nascimento começa a mudar. A cena que abre Tropa de Elite 2 é uma referência à realidade do sistema prisional carioca – claro, com suas devidas licenças ficcionais.
Replicada em estúdio, a cadeia do filme é uma reprodução de Bangu 1, detenção de segurança máxima inaugurada no Rio de Janeiro em 1988 com o nome de Penitenciária Laércio da Costa Pellegrino. Para abrigar os criminosos mais perigosos da cidade, Bangu 1 foi cons-truída com paredes de concreto revestidas com placas de metal e adotou hábitos duros, mas hoje amplamente difundidos, como impedir a abertura da porta de metal que dá acesso às celas sem que a anterior esteja fechada. Dentre as 25 unidades que compõem o Complexo Penitenciário de Bangu, Bangu 1 é a menor em capacidade: abriga, no máximo, 48 presos dispostos em 4 galerias. Situação rara no Rio, cujo sistema prisional tem um déficit de cerca de 500 vagas, cada presidiário de Bangu tem sua cela individual. Ali está a nata do crime carioca. E, junto com os bandidos, estão as facções que eles comandam.
O motim de Tropa de Elite 2 tem inspiração na rebelião mais famosa da penitenciária: em setembro de 2002, com a conivência de funcionários que fizeram vista grossa para as armas e, assim como no filme, quebraram as regras sobre a abertura dos portões, Fernandinho Beira-Mar e outros presos ligados ao Comando Vermelho (CV) invadiram uma galeria vizinha, ocupada pela facção Amigos dos Amigos (ADA), grupo criminoso rival nascido como uma dissidência do Comando Vermelho. A rebelião durou 23 horas e só terminou com rivais espancados, baleados e carbonizados, inclusive o fundador e chefão da ADA, Ernaldo Pinto de Medeiros, conhecido como Uê.
Inspiração para compor o ativista ficcional Diogo Fraga, o deputado Marcelo Freixo foi chamado para ajudar nas negociações daquele ano, mas esclarece que o Bope não chegou a participar delas. “Não houve ninguém morto entre os reféns e nem durante a invasão. Eu negociei e realmente houve a cena do colete [no filme, Fraga rejeita o colete em nome da confiança dos presos]. Além disso, na hierarquia militar do Bope, um capitão nunca desobedeceria ao coronel, como acontece no filme”, diz o deputado.
O levante comandado por Beira-Mar contra Uê e seus comparsas não é o único envolvendo diferentes facções dentro de presídios. A mistura sem critério de facções rivais culminou na chacina da Casa de Custódia de Benfica, em 2004, quando o Comando Vermelho matou 30 presos, muitos de grupos rivais, após uma tentativa frustrada de fuga. Foi a partir da chacina em Benfica que ganhou força a distribuição de presos pelas cadeias do estado baseada na facção às quais pertencem. “O sistema penitenciário todo só opera por facção hoje. Não existe nenhuma outra separação”, explica Freixo, citando a ficha que a Secretaria de Administração Penitenciária do Rio de Janeiro (Seap) envia às delegacias com as vagas disponíveis. O papel timbrado da Seap diz “que as vagas para o CV são tantas, para a ADA são tantas e para o Terceiro Comando são tantas”, segundo o deputado.
A capitulação do sistema prisional ao modelo criminal, como forma de administrar conflitos potenciais, começa na hora em que policiais prendem o suspeito. Ele informa a qual facção pertence logo que chega à delegacia ou à casa de custódia. Se não tem uma, a divisão é feita geograficamente, e o suspeito passa a pertencer, automaticamente, à facção que domina a região onde mora. Quando uma vaga para seu perfil é aberta no sistema prisional, ele é transferido. Se há um engano, a Seap devolve o preso. “Questão de segurança”, define o delegado da Polícia Civil Orlando Zaccone.
A divisão levou o sistema prisional carioca a dedicar “prisões exclusivas” a cada uma das facções, além de gerenciar alguns presídios com diferentes grupos criminosos, mas sem contato entre si. Essa separação “reduz o potencial de conflito interno na comunidade carcerária ao evitar que rivalidades externas ao sistema penitenciário sejam levadas para o convívio entre os presos”, explica o coordenador do Laboratório de Análise da Violência da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj), João Trajano Sento-Sé.
Nascido no final dos anos 70, o Comando Vermelho tem “exclusividade” nas Cadeias Públicas Paulo Roberto da Rocha, Jorge Santana e Cotrim Neto e nas penitenciárias Gabriel Castilho e Vicente Piragibe.
Presos ligados ao Amigos dos Amigos ocupam o Presídio João Carlos da Silva e a Penitenciária Jonas Lopes de Carvalho, enquanto restou ao Terceiro Comando a Cadeia Pública Pedro Melo. Há também presídios dedicados a ex-policiais envolvidos com as milícias, como é o caso da Penitenciária Alfredo Tranjan, conhecida como Bangu 2.
Já os Presídios Ary Franco e Evaristo de Mo-raes são dominados pelo “Seguro”: nascido como uma divisão dentro dos presídios para onde eram levados os ameaçados de morte por outros detentos, como estupradores e pedófilos, o Seguro passou a abrigar aqueles que não são mais aceitos pelas organizações criminosas. Ele virou, nas palavras de Zaccone, “um grande balaio de gatos”.
O aumento do poder das milícias do Rio vem inflando o número de presos ligados ao Seguro de tal forma que esse grupo já é hoje maior que o Comando Vermelho. Essa é uma tendência que, nos próximos anos, também deverá se refletir nos presídios, argumenta Zaccone. De tão popular, o Seguro já criou divisões internas: para que não haja identificação com estupradores e pedófilos, presos de áreas de milícia ou renegados por suas facções criaram o chamado “Povo de Israel” (uma referência ao fato de os judeus terem passado a maior parte de sua existência sem um país próprio).
Por fim, há os presídios mistos, como o Instituto Penal Plácido Sá Carvalho e Bangu 1, onde presos ligados às 3 principais facções ficam isolados em diferentes galerias e alternam horários para atividades, como o banho de sol. Por enquanto, tem funcionado, mas não se sabe até quando por causa de outros tantos funcionários corruptos ou tensões irremediáveis.
Mas de uma coisa dá para ter certeza: é impossível que um dia todos os brasileiros estejam detidos em prisões, como faz pensar a conta do Deputado Fraga. Na ficção, ele argumenta que, mantidos os atuais ritmos de crescimento da população brasileira e do número de presos, em 2083 todos os brasileiros estarão confinados em presídios. Claro que isso foi só um exagero dramático. Mas nem como drama os números se mantêm de pé.
Marcelo Freixo fez a conta original. Ele diz ter tomado como base para o cálculo um crescimento anual de 10% na população carcerária brasileira, comparado ao aumento anual de 1,4% da população. Ele usou dados de 2006, primeiro ano de seu mandato, quando a população carcerária aumentou 11% em relação ao ano anterior.
Nos anos seguintes, porém, a taxa de crescimento dos presos caiu pela metade, segundo o Ministério da Justiça. De 2007 em diante, a população carcerária no Brasil cresceu, em média, 5,6% ao ano. Se atualizarmos o cálculo de Freixo (e, consequentemente, de Fraga) com essa nova média, a população brasileira estaria presa em sua totalidade perto de 2160, quando atingisse cerca de 1,5 bilhão de pessoas.
Mas isso também não passa de uma brincadeira matemática. Hoje há quase 500 mil presos no Brasil. Dá 0,2% da população. Nos EUA, o país que mais prende e arrebenta no mundo, são 0,65% (2 milhões de presos). Ou seja: dificilmente chegaremos a essa proporção. Menos, Fraga, menos.
A cadeia vista de perto
A penitenciária de segurança máxima Laércio da Costa Pellegrino, a famosa Bangu 1, hospeda alguns dos mais importantes chefões da bandidagem carioca. Veja abaixo dados sobre ela e sobre as cadeias do Rio e do Brasil
• Capacidade: 48 presos / Eles pertencem às principais facções criminosas do estado, como o Comando Vermelho e a Amigos dos Amigos (ADA)
• No Rio de Janeiro: 23 158 presos No final do ano passado / ranking nacional de presos 1º São Paulo 2º Minas Gerais 3º Rio Grande do Sul 4º Rio de Janeiro
• No Brasil: 473 626 presosem 2009 0,2% população
A lotação nem sempre é respeitada. Em março deste ano, 70 pessoas do presídio Frei Caneca foram transferidas para Bangu 1.
A penitenciária foi alvo de sucessivas rebeliões em 2002. A mais famosa, retratada no filme, deixou 4 mortos e teve a ajuda de agentes penitenciários corruptos.
Em 2007, a situação não havia mudado. Estudos têm mostrado que falta muito para o presídio ser, de fato, de segurança máxima. Faltam até detectores de metais na cadeia.
Entre seus ex-inquilinos mais famosos está Fernandinho Beira-Mar, hoje em presídio federal.
Neste ano, 5 traficantes de classe média presos em operação da Polícia Federal foram parar no presídio.
Filme
No filme, Mathias desafia o Coronel Nascimento, atira, mata o bandido e salva o refém, ligado à defesa dos direitos humanos. Na dura hierarquia militar do Bope, uma indisciplina assim não aconteceria.
Fraga “calcula” que um dia todos os brasileiros estarão presos. Na vida real, estamos bem distantes dos países que mais prendem, como os EUA, que têm 0,65% de sua população atrás das grades.