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O rolezinho e a desumanização dos pobres

Como uma reação histérica colocou adolescentes entediados no centro do debate político nacional - sem que eles tivessem nada a ver com isso

Por Da Redação Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 31 out 2016, 18h52 - Publicado em 29 jun 2014, 22h00

Leandro Beguoci*

O rolezinho virou o assunto do verão de 2014. O fato de jovens entediados se encontrarem em shoppings não é novo. Novo mesmo é o jeito como os jovens viraram coadjuvantes da própria história que criaram. Foram desumanizados. Um arrastão de palavras de ordem, à direita e à esquerda, tomou conta do debate. De repente, festas de funk ostentação viraram manifestações contra a civilização ocidental e as reações negativas a elas, uma prova irrefutável do apartheid brasileiro. À direita, o discurso não era menos radical: aquilo era baderna, arrastão, e deveria ser coibido a borrachadas pela PM.

O fato mesmo é que ninguém tem ideia do que esses jovens pensam, mas todo mundo acha que sabe o que eles deveriam pensar. E os sujeitos do rolezinho se tornaram categorias para defender posições no debate histérico que vem se desenhando para este ano eleitoral. E isso acontece, também, porque a periferia ainda é pouco conhecida nos bairros ricos – um Cazaquistão que fala português.

Os shoppings dos rolezinhos são espaços privados e bem organizados no meio de áreas violentas e pobres. Eles são frequentados tanto por jovens querendo se divertir quanto por famílias que querem levar a avó para comer no McDonalds. Há poucos espaços e muitos grupos distintos querendo usá-los. Para complicar, em áreas muito violentas, todo mundo é uma ameaça. Quando algo sai do escopo, a primeira reação é apelar para a força. Os policiais, então, agem como de costume: na base da força bruta. Eles se comportam como uma frente de segurança preventiva, a mando de uma organização privada, para reprimir pessoas que não cometeram nenhum crime. E praticam descalabros. Há o caso, bizarro, do menino que foi comprar uma aliança e acabou multado e agredido.

Para começar a entender tudo isso, precisamos ir a fundo – e aos bairros distantes do centro de São Paulo. Quando surgiram as primeiras notícias sobre os rolezinhos, eu mesmo fiz uma viagem particular pelo tempo. Aqueles adolescentes eram uma versão mais numerosa dos meus amigos de Caieiras – a cidade onde cresci, nos anos 90, na periferia da Grande São Paulo. Para nós, um shopping era o máximo a que se podia aspirar. Mas há algumas diferenças ao longo dessas duas décadas.

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Uma é a internet. Ela deu visibilidade e tamanho a esses encontros, que sempre aconteceram. A outra é o crescimento da classe C, que levou os shoppings até as periferias da cidade. Só por esses fatores, podemos descartar as teses extremadas da esquerda e da direita.

Primeiro, não se trata de marginais, como gostaria a direita. Segundo, é difícil ver protesto político, como imagina a esquerda. Que protesto pode existir na vontade de usar um tênis de mil reais? Ou de “invadir” um espaço que esses jovens frequentam desde sempre, em grupos menores? Além disso, é complicado taxar de elitismo ações de pessoas da periferia contra pessoas da periferia.

Talvez os problemas com o rolezinho passem por outras chaves, para abrir novas portas. A primeira é etária. Jovens vão sempre desafiar os pais, os adultos, quem quer que seja. Outra é a que abre as portas da diversidade da periferia. Pesquisas mostram que quem mora no limite de uma favela, mas não no seu coração, quer distância das pessoas que vivem nas áreas mais pobres da comunidade. É o preconceito e a diferenciação dentro da mesma classe social. Os vendedores desses shoppings da periferia, tão pobres quantos os seus clientes, torcem o nariz para aquelas pessoas que são tão próximas, mas de quem eles gostariam de manter distância. Além isso, os adolescentes do rolezinho também querem se distinguir – mas dos colegas de bairro que não têm um boné caro. A reação aos rolezinhos, por outro lado, conta uma história bem mais simples. É sobre o momento em que vivemos. Quando a notícia da diversão de multidões de adolescentes chegou ao lado privilegiado das pontes dos rios Tietê e Pinheiros, acabou filtrada pelas lentes do debate radical que tomou conta do país.

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A micareta de roupas caras é engolida por um campeonato nacional de associação livre, em que cada lado atribui um valor a esses encontros de acordo com a conjuntura política. O fenômeno deixa de ser analisado em si, e passa a servir de arma numa briga maior. Esses jovens se tornam aríetes de uma luta da qual eles não têm a menor ideia de que estão participando.

No fundo, não há razão para idolatrar ou demonizar os rolezinhos. Talvez haja furtos, e não há nada que a polícia possa fazer senão impedi-los. Mas também não faz sentido receber os rolezinhos a pancadas de cassetete, como vem acontecendo, ou tentar se apropriar deles para defender causas que são estranhas aos jovens da periferia de São Paulo. Os rolezinhos são o que são. E merecem estudos, debates e reflexões mais lúcidos do que vêm merecendo até agora.

Porque há uma série de questões que estão em aberto e precisam ser respondidas: como a diferenciação social acontece dentro dos bairros da periferia? Como o consumo e a ostentação se tornaram sinônimo de diversão? Qual o limite dos espaços públicos e privados? E, claro, como lidar com multidões que, no fim das contas, só querem mesmo paquerar e driblar o tédio?

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*Leandro Beguoci é jornalista e editor do site Oene, onde este artigo foi originalmente publicado, numa versão estendida.

Foto: thinkstockphotos.com

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