Olfato: O sentido da vida
O homem raramente percebe quando valem os seus 25 milhões de células olfativas. Mas o cheiro está em tudo: no amor, no apetite, nas melhores lembranças. Todo odor provoca sentimentos
Lúcia Helena de Oliveira
Um simples aspirar e basta — qualquer cheiro é suficiente para despertar fome, provocar atração ou repulsa, trazer de volta cenas do passado. Cheirar é se emocionar sempre. Mas na maioria das vezes isso é tão sutil que não se dá importância e se acaba torcendo o nariz para o olfato — o mais primitivo e intrigante dos sentidos, e com certeza o menos conhecido pela ciência. Poucos percebem que, num mundo onde quase tudo tem odor, é esse sentido que decifra as mensagens químicas — das quais freqüentemente depende a própria sobrevivência — passadas pelos animais, vegetais, minerais e objetos manufaturados.
Além disso, é graças ao olfato, um aliado do paladar, que se sentem as diferenças de sabores, o que faz toda a diferença quando se está resfriado.
Para a maioria das espécies animais, o olfato é uma questão de vida ou morte. As gazelas são um exemplo: ao sentir o cheiro do leão ou de outro carnívoro feroz, saem correndo antes do ataque. Já entre os ratos, o olfato exerce um papel mais sofisticado: se uma rata é fecundada por um membro de sua própria família, aborta imediatamente ao sentir o odor de um rato estranho, com o qual se acasalará logo em seguida — como se tivesse consciência de que a mistura dos genes garante uma prole mais saudável.
Apesar de tudo, a função do olfato foi perdendo importância no decorrer da evolução das espécies. Os primeiros seres, que viviam nas profundezas dos oceanos, certamente só possuíam esse sentido, com o qual localizavam a comida, descobriam os parentes e evitavam os inimigos. O cérebro tinha apenas centros olfativos, que interpretavam os odores, e centros motores, que controlavam os movimentos. Quanto mais as espécies foram evoluindo, diminuía o tamanho da área cerebral especializada no olfato, chamada rinencéfalo, que cedeu espaço para outras estruturas especializadas. No homem, por exemplo, uma área do rinencéfalo foi ocupada pelo uncus, a parte do cérebro que controla as reações motoras do organismo diante das emoções, como tremer de medo.
No final das contas, o nariz do homem acabou perdendo para qualquer focinho de animal. No ser humano, as células olfativas cobrem uma área de 10 centímetros quadrados do nariz; já no cachorro, essas células ocupam 25 centímetros quadrados; e no tubarão, 60. Enquanto o homem, para perceber o cheiro do ácido acético — presente no vinagre — precisa de 500 milhões de moléculas dessa substância por metro cúbico de ar, o cão pode sentir o mesmo cheiro com apenas 200 mil moléculas.
Esse número de moléculas pode parecer imenso, mas é um nada perto da quantidade de substâncias odoríferas que as coisas exalam a todo instante. Uma pessoa produz cerca de meio litro de suor por dia; desse volume, apenas uma fração mínima passa pela sola do sapato. Mesmo assim, a cada passo deixa-se no chão cerca de 250 mil moléculas de ácido butírico, um dos componentes do suor. Com apenas um milésimo dessa quantidade, um cão poderia sentir seu cheiro — eis por que ele consegue farejar um rastro, mesmo quando a pessoa já passou há algum tempo e muitas das moléculas de seu suor se evaporaram.
Para que algo tenha cheiro é necessário que seja volátil, ou seja, que solte moléculas gasosas. E, no caso, justiça se faça ao nariz humano: apesar de menos equipado, entre todos os mamíferos, sua capacidade é maior do que se imagina. Segundo o otorrino Paulo Augusto de Lima Pontes, professor da Escola Paulista de Medicina, basta que apenas dez moléculas alcancem a câmara olfativa do nariz para que determinado odor seja sentido. “Todo o processo”, ele explica, “não leva mais que um décimo de segundo.” Tamanha rapidez não significa que tudo seja simples. A olfação é tão complexa que só no século passado foram formuladas cerca de quarenta teorias diferentes a respeito de seu funcionamento. No século passado, também se acreditava que existiam aromas básicos, que formariam todos os odores conhecidos, da mesma maneira como as cores primárias compõem as demais cores. Se fosse assim, as moléculas de uma rosa dentro da câmara olfativa acionariam células receptoras especializadas em aromas florais. Mas como o dono do nariz saberia a diferença entre o perfume da rosa e o do jasmim? Hoje em dia, os cientistas pensam que um determinado odor seria reconhecido no cérebro pela combinação dos tipos de receptores que estimulariam, e pela quantidade e intensidade desses estímulos. A variedade de odores que um nariz pode reconhecer é colossal. “Cada pessoa”, diz o professor Pontes, “tem aproximadamente 25 milhões de receptores olfativos e todos eles podem ser diferentes entre si.”
Todo esse equipamento está pronto para entrar em ação assim que se nasce — enquanto os demais sentidos só vão funcionar perfeitamente depois de alguns dias de vida. Observando o comportamento dos bebês, os cientistas concluíram que a partir da primeira semana eles já reconhecem o odor da mãe. Todas as pessoas, por sinal, têm um cheiro próprio, uma espécie de combinação final de todas as substâncias odoríferas liberadas através da pele. Não se sabe ainda se o cheiro de cada um é de fato uma marca registrada tão particular como uma impressão digital. É provável que sim.
Os adultos também reconhecem o odor de outras pessoas. Cientistas italianos descobriram que um dos primeiros sinais do final de um romance é quando um dos parceiros passa a não suportar o cheiro do outro — um cheiro, aliás, sutil, embaçado por perfumes e desodorantes, e que portanto necessita de muita intimidade para ser captado pelo nariz humano. Nos animais a relação olfato-sexo é absoluta. É pelo cheiro que os machos da quase totalidade das espécies ficam sabendo que uma fêmea está no cio. Nesse sistema de informação, as mariposas parecem imbatíveis: um macho pode sentir o cheiro de uma fêmea a 2 quilômetros de distância.
Se os seres humanos não precisam se cheirar uns aos outros para reconhecer quem é homem e quem é mulher, certamente precisam do olfato para experimentar a atração sexual, embora isso não seja consciente. Sexo sem cheiro também dá prazer, mas nem tanto, descobriram recentemente cientistas norte-americanos. Numa pesquisa, eles verificaram que uma de cada quatro pessoas com anosmia — perda total de olfato — tem problemas de desempenho sexual.
Não se sabe quantos brasileiros sofrem de perda parcial ou total do olfato, mas quando o problema ocorre quem mais reclama são as donas de casa. Elas percebem que não têm mais olfato quando deixam o feijão ou o café queimar. As donas de casa, ao menos, reclamam da falta de capacidade de sentir odores. Mas muitas pessoas que perdem o olfato não sabem que o perderam. “Quem vai aos consultórios porque perdeu o olfato”, conta o alergista Fábio Morato Castro, de São Paulo, “geralmente reclama de que não sente mais o gosto da comida.”
A perda de olfato, além de estar associada à depressão, pode levar à desnutrição. É lógico. O nariz é o grande responsável pelo apetite: qualquer pessoa, sem perceber, cheira melhor quanto mais perto da hora de comer, o que faz com que sinta o aroma da comida de longe. Quando isso acontece, o cérebro manda o estômago produzir sucos gástricos. As glândulas salivares, então, entram em ação: fica-se literalmente com água na boca.
Metade do sabor é cheiro. As papilas gustativas da língua, que sentem o gosto das coisas, identificam apenas quatro sabores básicos: amargo, azedo, doce e salgado. A diferença entre um pudim de leite e um copo de vinho, por exemplo, é dada pelo cheiro de cada um. Afinal, uma pessoa cheira o ar quando aspira e quando expira. Quando se expira, o fluxo de ar, que passa pela garganta, capta moléculas odoríferas do alimento que está sendo mastigado. Essas moléculas alcançam assim a câmara olfativa; o cérebro, então, soma as informações das papilas gustativas com as do olfato e o resultado é o paladar. Por isso, quando se está gripado e a câmara olfativa fica cheia de muco, impedindo que as moléculas entrem em contato com os receptores, não se sente direito o gosto das coisas.
O odor é tão importante para o sabor que as indústrias de alimentos investem milhões nos chamados aromatizantes artificiais. Hoje já existem mais de dez mil aromatizantes — cada um o resultado da combinação de duzentas a trezentas moléculas de substâncias diferentes. O aroma artificial de morango, que existe desde a década de 60, consumiu exatamente vinte anos de pesquisas. Algumas vezes os aromatizantes artificiais são muito mais caros que os naturais. O aroma artificial de baunilha é cerca de duzentas vezes mais caro que a baunilha natural. Apesar disso, a indústria prefere o aromatizante porque tem o odor dez vezes mais forte, garantindo um sabor muito mais acentuado de baunilha.
Todos conhecem a chatice de não sentir o sabor e o cheiro das coisas, quando se fica resfriado. Mas, quando a causa é uma alergia, a recuperação pode levar anos. “A cura, de certa forma, é fácil”, diz o doutor Fábio Castro. “Na maioria dos casos basta afastar a causa da alergia. Se for impossível o afastamento — por exemplo, se for alergia à grama, não podemos proibir a pessoa de passar na frente de praças —, recorremos a antialérgicos.” A cura depende de se descobrir a causa da alergia — o que às vezes leva tempo.
O nariz, afinal, é vítima de muitas alergias — algumas causadas por fatores que o atacam diretamente. “Muitas vezes”, explica o alergista Laércio José Zuppi, “os próprios medicamentos para gripes e rinites irritam a mucosa olfativa, levando a uma perda temporária do olfato. A poluição, cada vez maior nas grandes cidades também ajuda a enfraquecer o olfato. Em certos casos, os danos à mucosa são irreversíveis: mesmo recuperado da alergia, o paciente não volta a sentir bem os odores.
Conservantes de alimentos podem causar alergias a longo prazo, que por sua vez podem causar a anosmia. Os medicamentos, porém, encabeçam os fatores que provocam esse tipo de problema, em especial os remédios para hipertensos, os diuréticos e o ácido acetilsalicílico, o mais popular analgésico.
Mas a maior causa de perda de olfato são os acidentes. Calcula-se que uma entre cada quinze pessoas com traumatismo craniano passa a viver num mundo inodoro. No caminho dos nervos que levam a mensagem olfativa ao cérebro, existe uma lâmina cheia de furinhos, o osso etnóide, que pela fragilidade e localização — abaixo do crânio — está sujeita a rachar em acidentes. “Se apenas um lado da lâmina é danificado, muitas vezes a pessoa nem sente que perdeu o olfato, porque um único lado sadio da cavidade nasal basta para que se tenha a sensação de cheiro”, explica o neurologista Luiz Celso Vilanova, da Escola Paulista de Medicina. Outros problemas neurológicos, como tumores, podem causar a perda da sensação de odor. Mas nesses casos os sintomas são tão graves, como fortes dores de cabeça, que a pessoa nem sequer percebe que não sente mais cheiros.
Pesquisas norte-americanas sugerem que a capacidade de cheirar se desgasta com o tempo, mesmo quando o indivíduo é são: um quarto das pessoas entre 65 e 75 anos tem dificuldade em identificar odores; com mais de oitenta anos, quase cem por cento têm o mesmo problema. Em qualquer idade, as mulheres têm melhor olfato que os homens — com exceção das grávidas. No começo da gestação, a hipófise pode inchar o suficiente para comprimir os nervos do olfato que passam pelo crânio. “Em conseqüência”, conta o ginecologista Nicolau Caivano, “muitas gestantes ou deixam de sentir cheiros ou passam a sentir cheiros que nem existem”. Daí com certeza vem a lenda de que as grávidas têm olfato mais apurado.
Uma das funções mais importantes e mais conhecidas do olfato é estimular a memória. Pessoas com problemas olfativos às vezes não conseguem evocar situações com facilidade. A ciência não sabe explicar essa relação. Supõe-se que, para reconhecer qualquer coisa, o cérebro puxe de seu arquivo um fato do passado. De outro modo, apenas registraria odores, sem saber exatamente do que são. Assim, diante de uma flor, talvez a mente produza associações com momentos do passado — uma brincadeira de criança num jardim ou um passeio com a namorada num parque. Pois, se não bastasse tudo o mais, o olfato é também, misteriosamente, o mais nostálgico dos sentidos.
Para saber mais
(SUPER número 10, ano 7)
(SUPER número 5, ano 11)
Como fazemos para cheirar bem
Os odores são sentidos na chamada área olfativa da cavidade nasal. Trata-se de uma câmara situada num lugar pouco acessível, na parte mais alta e funda do nariz, longe do fluxo do ar que respiramos. Existe um motivo para isso: se as células olfativas, que são muito sensíveis, ficassem demasiado expostas ao ar, acabariam danificadas pela poeira e o sobe-desce da temperatura.
Por causa dessa localização, ocorre um fenômeno estranho: quando se respira normalmente não se sente cheiro algum. Mas, quando um odor qualquer existe no ar numa concentração relativamente alta, algumas poucas moléculas odoríferas podem alcançar a câmara. Diante dessa sensação ainda imprecisa, o cérebro ordena uma segunda aspiração mais forte — para provocar o que os cientistas chamam turbilhão de ar dentro do nariz, capaz de carregar as moléculas para a câmara olfativa. Tudo isso acontece num relance e sem que a pessoa se dê conta.
Na câmara, as moléculas são atraídas para a mucosa amarela formada pelas células olfativas, também chamadas de receptores. No lado externo, um receptor possui cílios microscópicos cobertos por uma fina camada de muco, no lado interno, ele se prolonga sob a forma de um nervo. Durante muito tempo, acreditou-se que os aromas eram reconhecidos graças a reações químicas entre as moléculas odoríferas e o muco. Tais reações seriam sentidas pelos cílios dos receptores, que as transformariam em estímulos nervosos.
“Hoje se sabe que o processo não é químico, mas físico”, explica o professor Paulo Pontes. “Os receptores avaliam o peso e os prótons liberados pelas moléculas odoríferas e, a partir disso, engatilham um certo estímulo.” O muco, por sua vez, serve para proteger os receptores, e também para diluir e expulsar da câmara olfativa as moléculas do odor.
Os impulsos dos receptores são ondas elétricas que percorrem os nervos até o bulbo olfativo, uma estrutura logo abaixo da parte frontal do cérebro. O bulbo mantém uma espécie de linha direta com o sistema nervoso central: nele se dará a sinapse ou conexão com o cérebro. Até aí, tudo bem. Mas a ciência ainda fareja explicações para a questão de como o cérebro identifica um odor.