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Por dentro do limbo

Mahvish Khan entrou em Guantánamo como intérprete. Ao sair, conhecia como poucos os bastidores da prisão mais polêmica do planeta

Por Da Redação Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 31 out 2016, 18h51 - Publicado em 22 jan 2011, 22h00

Eduardo Szklarz

Guantánamo parece estar finalmente com os dias contados. Até o fechamento dessa edição, o novo presidente dos EUA, Barack Obama, prometia o fim da prisão, erguida num enclave americano em Cuba. Desde que passou a abrigar suspeitos de terrorismo, em 2002, o centro recebe críticas de organizações de direitos humanos por ser praticamente um limbo – onde detentos vagam por anos sem direito a informação ou julgamento, muitas vezes submetidos a tortura. Além dos próprios presos e de advogados, poucos chegaram a conhecer essa realidade de perto. Mahvish Khan, americana filha de afegãos, conseguiu. Em 2005, então aluna de direito, ela se ofereceu para servir como intérprete nas conversas entre presos afegãos – que não entendiam inglês – e seus advogados – que não falavam pachto, idioma dos clientes. “Visitei dezenas de prisioneiros”, diz Mahvish. “Muitos nunca tinham sido acusados de nenhum crime e viviam ali sob regras absurdas, em um ambiente de violência e humilhação.” A experiência de Mahvish gerou o livro My Guantanamo Diary (“Meu Diário de Guantánamo”, sem tradução no Brasil) – um relato inédito, já que jornalistas não têm acesso aos presos de Guantánamo. Em entrevista à SUPER, Mahvish fala como é o mostrengo por dentro – e sobre o futuro de quem vive lá.


Por que você foi a Guantánamo?

Meu interesse começou em 2005 na faculdade de direito, quando eu estudava os estatutos federais sobre tortura. Percebi como Washington tinha burlado a Constituição americana para criar um campo de detenção militar na baía de Guantánamo, em Cuba [cujo controle territorial passou aos EUA em 1903]. Lá os prisioneiros poderiam ficar indefinidamente sem nunca ser acusados. Senti uma indignação crescente por ver o quão criminoso e medieval tudo isso era. E que Guantánamo não é nada mais do que um buraco negro sem lei onde prisioneiros são escondidos do mundo – sem voz, sem acusação e sem uma audiência imparcial.

Como conseguiu entrar na prisão ?

Busquei os casos mais importantes relacionados a prisioneiros de Guantánamo e entrei em contato com os advogados responsáveis por eles. Eu queria participar como jornalista e advogada. Quando soube que nenhum deles falava pachto, a língua predominante no Afeganistão, eu me ofereci como intérprete e fui aceita para trabalhar com advogados defensores. Na minha primeira visita à base, em janeiro de 2006, tive muito medo. Esperava encontrar um terrorista, um membro da Al Qaeda ou do Talibã. Temia que os prisioneiros nem ao menos olhassem para mim porque sou mulher. Mas tudo o que eu havia escutado sobre “os piores entre os piores” não se confirmou.

Por que não se confirmou?

A primeira visita que fiz, por exemplo, foi ao prisioneiro número 1154. Ele parecia tão nervoso quanto eu. Seu nome era Ali Shah Mousovi, um pediatra de 43 anos que havia trabalhado para a ONU em apoio ao governo democrático de Hamid Karzai. Ele era um muçulmano xiita perseguido pelo Talibã [milícia sunita] e, mesmo assim, os EUA suspeitavam que ele tinha ligação com os talibãs. Nunca houve sequer uma acusação formal contra Ali Shah, que só foi libertado 3 anos depois. O segundo preso que visitei foi Haji Nusrat Khan, um paraplégico de 80 anos que tinha sofrido dois derrames 15 anos antes de ser preso. Foi levado a Guantánamo de maca, e o Departamento de Defesa americano afirma que ele lutava no campo de batalha. Apesar de imóveis, suas pernas foram acorrentadas ao chão. Os afegãos são pessoas extremamente orgulhosas; quando Nusrat suplicou dizendo que não queria morrer naquela prisão, não pude fazer nada a não ser chorar.

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Mas você não acredita que possa haver suspeitos realmente culpados em Guantánamo?

Honestamente, não penso que todos os detidos sejam santos. Creio que há terroristas lá dentro, como Khaled Sheikh Mohammad, o suposto mentor dos atentados do 11 de Setembro. Mas também acho que a maioria dos detidos está em Guantánamo por um erro. As dezenas de prisioneiros que conheci nunca foram acusadas de nada criminoso. Além disso, os advogados trabalhando em nome de detidos de Guantánamo não defendem que todos devam ser libertados; na verdade, eles buscam restabelecer o direito dessas pessoas de ser formalmente acusadas e receber um julgamento livre e imparcial.


Se a maioria dos presos é de inocentes, como eles foram parar lá?

Militares americanos ofereceram até US$ 25 mil no Afeganistão por um membro da Al Qaeda ou do Talibã. É uma enorme quantia num país em que um cidadão comum ganhou em 2006 cerca de 80 centavos por dia (ou US$ 300 por ano). Seria preciso trabalhar 83 anos para juntá-la. Assim, o programa de recompensa estimulou muita gente a entregar outras pessoas por dinheiro. O Afeganistão também é um país marcado por feudos políticos, étnicos, tribais, geográficos e religiosos. Adicionar dinheiro a essa mistura foi desastroso. Mas o maior erro dos militares americanos foi não investigar as alegações feitas pelos moradores. Isso criou um mercado negro em que pessoas entregavam seus inimigos.

Quantas prisões as recompensas geraram?

Depois que a Associated Press demandou o Departamento de Defesa com base na Lei de Liberdade de Informação [em 2005], os militares liberaram documentos importantes relacionados aos detidos. Após analisá-los, a Seton Hall University concluiu que 86% dos prisioneiros de Guantánamo foram capturados numa época em que os afegãos se beneficiavam das recompensas. Apenas 5% deles estão lá como resultado direto da inteligência dos EUA.


Como é o tratamento dado aos prisioneiros?

A maioria fica presa sozinha em celas de concreto de 2,10 x 2,40 m – o tamanho de um colchão king-size. Ali ficam a cama, o banheiro e a pia. Eles comem e rezam sozinhos. Muitos não veem a luz do Sol durante meses, porque só podem sair por uma hora ou menos por dia, no meio da noite. Vários são submetidos a buscas nas cavidades do corpo [por drogas e armas] na frente dos outros. São até 15 buscas desse tipo em um só dia. Recebem uma muda de roupa a cada semana. Como em geral são muito religiosos, acabam lavando as roupas na pia e colocando peças úmidas – assim podem rezar limpos. Também são confinados sob frio ou calor extremos. Quem faz greve de fome leva gás de pimenta e é forçado a comer. Sem falar das humilhações sexuais que sofriam.

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De que tipo?

Haji Nusrat foi forçado a se despir na frente de guardas mulheres e foi espancado até quebrarem seu braço. O dr. Ali Shah e outros presos foram despidos e levados como gado, arrastados e cuspidos.

O que mais a chocou entre o que você viu lá?

Os maiores absurdos foram as regras militares. Eu costumava levar flores aos presos. Sem ver flores por 6 anos, eles ficavam extasiados ao tocá-las e cheirá-las, mas logo os militares declararam que aquilo era contrabando. Também me obrigaram a retirar grampos do cabelo temendo que os presos pudessem abrir as algemas com eles. Isso era um absurdo. Se conseguissem abri-las, poderiam apenas correr em direção à porta trancada da cela, dentro de outro compartimento fechado… de uma base militar numa ilha. Outro absurdo: fui ao dentista antes de uma visita e tinha extrações dentárias em minha bolsa. Elas logo foram declaradas contrabando, como se meu dentista tivesse codificado mensagens do inimigo em meus dentes. Os militares também disseram aos detidos que seus advogados eram gays ou judeus e que não poderiam merecer confiança.

Obama diz que pretende fechar Guantánamo. O que deve acontecer com os prisioneiros?

Guantánamo erodiu a imagem dos EUA. Ao fechá-la, Obama poderá romper de forma decisiva com a era Bush e enviar um sinal de boa vontade aos líderes mundiais que pediram por isso. Mas a tarefa de limpar a sujeira de Bush é difícil. Obama terá de enfrentar os vários desafios jurídicos e diplomáticos relacionados com o fechamento. Como lidar com as provas obtidas sob tortura? Podemos encontrar asilo político para os prisioneiros cujo país de origem talvez os torture ainda mais? São problemas que a equipe de Obama está tentando resolver.

O que fazer com os que são perigosos?

No seu auge, Guantánamo tinha cerca de 775 presos. [Hoje tem menos de 250.] Dos 775, só 20% foram acusados de algo criminoso. Com relação ao resto, é presunçoso chamá-los de perigosos. É estranho até mesmo chamá-los de inocentes. Inocentes de quê? A maioria (cerca de 500) foi solta sem acusação, tão repentinamente quanto foi presa. Acredito que veremos julgamentos públicos para os poucos que de fato são terroristas. Os demais serão mandados a seus países sem nunca ter sido acusados.

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Os EUA revogaram seu acesso privilegiado a Guantánamo em 2006, depois que você escreveu uma reportagem para o Washington Post. Por quê?

O Departamento de Defesa diz que criei uma ameaça à base com a reportagem, porque publiquei a foto de um comboio militar e de um nascer do Sol sobre as colinas de Guantánamo. Acho que fizeram isso porque agi como jornalista e gerei publicidade negativa. Meu acesso foi restaurado meses depois, quando o Washington Post me ofereceu seus advogados.


E como fez para publicar o livro?

Presume-se que cada palavra dita em minha presença por um preso de Guantánamo seja confidencial. Todas as notas que tomei sobre os diálogos e as descrições físicas durante aqueles encontros foram entregues a um grupo de censores do Departamento de Defesa. Tudo o que foi carimbado como “não confidencial” está publicado no livro. O resto, infelizmente, não pude publicar.


A vida em Guantánamo

O isolamento, a ausência de direitos e as humilhações já levaram muitos presos à tentativa de suicídio. Conheça a rotina da prisão, como descrita pelos detentos a Mahvish Khan

A base

Só quem tem permissão do Departamento de Defesa americano entra em Guantánamo. A base é dividida em dois lados. Num deles está a prisão. No outro, advogados se hospedam em quartos com 4 beliches, por US$ 20 a noite. Eles têm TV a cabo, internet, cozinha e uma cafeteria Starbucks.

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Restrições

Os prisioneiros ficam em celas individuais de 2,10 x 2,40 m, sem comunicação e sem direito a uma audiência imparcial. Muitos deles passam meses sem ver a luz do Sol. Cada cela tem um Alcorão (livro sagrado do islã) e uma seta com os dizeres “Meca – 12 793 km”, para que os presos possam rezar na direção certa.


Tortura

Uma técnica comum é a waterboarding (ou tortura chinesa da água). O torturador joga água sobre o nariz e a boca da vítima, que fica deitada de barriga para cima. Outra prática é colocar um pano molhado sobre a boca da vítima e jogar água por cima do tecido, o que dá a sensação de um afogamento.

Suicídios

Depois que 3 presos se enforcaram em junho de 2006, aparentemente usando roupas e lençóis, os guardas tentam ao máximo evitar que outros presos façam o mesmo. Um deles, Jumah al-Dossary, do Bahrein, sobreviveu a 8 tentativas de suicídio desde que foi levado a Guantánamo, em 2002.

Mahvish Khan

• É americana, filha de imigrantes afegãos e tem 30 anos.

• Mora com o marido em San Diego, na Califórnia, e está grávida de 4 meses.

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• No livro My Guantanamo Diary, ela traça perfis de presos que visitou no centro de detenção, em Cuba. “Queria que eles fossem humanizados e tivessem o direito de falar, coisa que todos os supostos estupradores e assassinos dos EUA têm”, diz.

• O livro foi bem recebido pela crítica americana e até por alguns guardas de Guantánamo. Um deles lhe pediu um exemplar autografado.

• Teve a vida investigada durante 6 meses pelo governo dos EUA para conseguir acesso à prisão. Desde janeiro de 2006, viajou até lá mais de 30 vezes. Também visitou alguns ex-detentos na casa deles no Afeganistão.

• Quando tem tempo livre, gosta de pintar, cozinhar e praticar esgrima.

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