Tudo sobre minha mãe
A pessoa mais importante da sua vida trouxe você ao mundo, secou suas lágrimas e criou você, mas pode ter tido pouca influência sobre quem você é
Aos poucos, a barriga vai ficando grande e rígida. A pele se estica e racha. A coluna enverga: o quadril caminha para trás, os ombros caem. Dentro do corpo, o volume de sangue aumenta até ficar 50% maior. Para dar conta de tanto líquido, o coração passa a bater acelerado. Devagarzinho, uma força enorme vai empurrando órgãos internos: estômago, intestino e bexiga ficam atrofiados e desregulados. Manchas na pele, retenção de líquido, prisão de ventre. Depois de nove meses, o resultado. De dentro desse corpo adoentado nasce uma criança. Com ela, vem ao mundo uma mãe – a pessoa mais importante que o bebê conhecerá na vida. Você pode agradecê-la por tê-lo dado à luz. Mas, talvez, ela não tenha nada a ver com o que você é hoje.
Ninguém duvida que a mãe influencie a vida dos filhos. Basta olhar ao redor: pais gentis e inteligentes costumam ter filhos gentis e inteligentes. Filhos de mães abusivas muitas vezes repetem o padrão na hora de educar os filhos. Tudo indica que a maneira como foram criadas deixa marcas na vida das pessoas. E essa crença é reforçada pela psicologia. A mais importante das teorias psicológicas surgiu com o segundo austríaco mais famoso do mundo, Sigmund Freud. Ele também acreditava que a personalidade dos filhos é formada pelos pais.
As suposições do austríaco são muitas, e ele mesmo não parou de reescrevê-las até sua morte, em 1939. O que não muda muito é a ideia de que o desenvolvimento da personalidade passa por diversas fases na infância – focadas em rituais como a amamentação, o uso do penico, a descoberta dos órgãos sexuais. Se os pais atrapalharem a passagem dessas fases, a criança pode se tornar um adulto compulsivo ou imaturo ou agressivo… e por aí vai. Todas as fases descritas por Freud podem ser observadas em crianças pequenas, mas os indícios científicos de que elas sejam determinantes para a personalidade na vida adulta são frágeis. Por isso, o pai da psicanálise tem apanhado bastante.
“Hoje, Freud raramente é estudado nos departamentos de psicologia das grandes universidades. Você vai encontrá-lo mais nas aulas de história ou de literatura”, diz Paul Bloom, professor de psicologia da Universidade Yale. Realmente, antes de Freud, o papel dos pais era muito diferente. Uma mãe dos tempos das cavernas estava preocupada apenas em fazer o filho sobreviver à infância. Da Idade Média ao século 18, o filho era considerado posse dos pais e podia ser ignorado e maltratado a valer. Até o século 20, os pais eram aconselhados a não demonstrar amor pelos rebentos. É duro dizer isso, mas acreditar que tudo o que sua mãe fez quando você era criança influenciou no que você é hoje é coisa apenas do nosso tempo.
Onde foi que eu errei?
Mamãe mentiu para você. Ela deve ter falado que gosta de todos os irmãos da mesma maneira, mas não é bem assim. Toda mãe tem seu filho favorito – e trata cada irmão de maneira diferente. Um estudo que hoje já se tornou clássico, feito pelo biólogo americano Frank Sulloway em 1996, mostra que 66% dos pais admitem que preferem um filho a outro. E outra pesquisa confirma: 87% das mães reconhecem que amam mais o caçula.
Mas, antes que você passe a odiar seu irmãozinho, é preciso entender que nem sempre é a ordem de nascença que cria o favoritismo. Mães tratam os filhos de maneiras diferentes porque eles são diferentes. “As atitudes dos pais vão de acordo com a personalidade que a criança tem de nascença”, diz Viviane Feldens, doutora em psicologia. Imagine uma mãe com dois filhos: um retraído e outro impetuoso. É provável que o filho acanhado receba incentivos para se tornar mais extrovertido, mas que o filho destemido conviva com uma mãe que o impede de fazer as coisas. Foram educados de maneiras opostas, apesar de ter os mesmos pais.
Nesse caso, o temperamento inato da criança determinou como ela foi educada. Em outros, como no do aprendizado da linguagem, a educação que o filho recebe fica em primeiro plano. Foi ao observar essas questões que os psicólogos do século 20 elaboraram a pergunta tão temida por quem estuda personalidade: o que influencia mais, a genética ou o ambiente? Boa parte dos psicólogos e cientistas prefere a resposta salomônica: “50% DNA, 50% ambiente”. Ok, a genética é fornecida totalmente pelos pais. Mas e esse “ambiente”, do que se trata?
Vai brincar lá fora, vai
Em 1931, numa época em que a ética não era grande empecilho para desenvolver a ciência, um casal de psicólogos americanos decidiu testar o que influenciava mais uma criança: os genes ou a educação. Para fazer isso, adotaram uma bebê chimpanzé, Gua, que foi criada da mesma maneira que seu filho humano recém-nascido, Donald. Durante quase dois anos, Gua e Donald faziam tudo igual. E, para desespero dos pais, Gua aprendia tudo sempre muito mais rapidamente. Ela usou talheres primeiro, ajudava a se vestir com mais facilidade e começou a avisar os pais que precisava do penico antes de Donald. E o mais bizarro: ensinou o irmão a falar macaquês. Com quase 2 anos, numa idade em que as crianças já têm um vocabulário (humano) de 50 palavras, Donald ficava no “uh-uh, uh-uh”. O que esse estudo nos diz? (Não. Donald não era menos favorecido no quesito inteligência. Quando adulto, ele se formou em Medicina em Harvard.) O experimento mostra que, apesar dos genes humanos, Donald estava agindo sob a influência da irmã macaca. Mas a pergunta central aí é outra: por que o menininho estava se adaptando aos hábitos do chimpanzé e não aos dos pais?
A resposta: talvez outras pessoas, que não os pais, sejam mais importantes no desenvolvimento da criança. Por que tantos pais flamenguistas não conseguem evitar que seus filhos virem pequenos vascaínos? Por que filhos de pais imigrantes adquirem sempre o sotaque dos amiguinhos nativos, não o dos pais? Tudo indica que os amigos têm mais importância na formação dos filhos do que se imagina.
Toda mãe tem um filho favorito. E, em 87% dos casos, o queridinho é o caçula
A defensora da teoria “amigos são tudo” é a psicóloga americana Judith Harris. Para ela, os pais têm quase nenhuma influência no desenvolvimento do filho. E ela tem bons argumentos. Um deles parte de uma das maiores pesquisas já feitas com filhos adotivos. Há mais de três décadas, a Universidade do Texas vem acompanhando o desenvolvimento de 700 filhos adotados e suas famílias (biológicas e não) para medir fatores como inteligência, autoestima e ajustamento. Os resultados mostraram que, quando adultas, as crianças adotadas eram muito mais parecidas com seus pais biológicos do que com os pais adotivos. Em outras palavras, a criação de casa tinha deixado poucas marcas permanentes.
Para Judith, a única marca indelével trazida pelo ambiente vem dos amigos. A explicação é biológica. Durante milhões de anos de evolução, a nossa sobrevivência dependeu da capacidade de viver em grupo: aprendemos a agir, falar e nos comportar com as pessoas ao nosso redor. Aí é que está o pulo do gato: a criança reconhece como “grupo” as pessoas da mesma idade e nicho que ela – e não os pais. Por isso Donald começou a imitar sua irmã macaca e ignorou a mãe. Por isso, a criança torce pelo time, fala a língua e desenvolve a personalidade parecida com a dos amiguinhos.
Trancamos no porão?
Já que a educação dos pais não interfere no desenvolvimento dos filhos, não é preciso tratá-los com carinho e amor, certo? Errado. Peguemos o caso de Joseph Fritzl, o segundo austríaco mais infame do mundo. Ele trancou a filha durante 24 anos no porão, abusou dela e teve sete filhos frutos do incesto. A filha de Fritzl dificilmente voltará a ser uma pessoa normal – e não é pela falta de amigos. Um experimento feito com filhotes de macacos Rhesus que sofreram abusos e foram negligenciados pelas mães mostrou que maus-tratos deixam sequelas cerebrais permanentes. Ou seja, quem sofre abusos na infância não produz serotonina em níveis normais, e vira um adulto deprimido, e agressivo, que possivelmente também abusará dos filhos. É um caso inegável da mãe determinando a vida dos filhos. E há outros.
Religião, valores, habilidades artísticas ou esportivas, escolha da profissão: tudo isso pode ser influenciado pelos pais, porque são aspectos ensinados quase exclusivamente dentro do ambiente familiar. “Quando os pais escolhem a escola onde vão matricular os filhos, já decidem também que tipo de amigo as crianças vão ter”, diz Viviane Feldens. Quer dizer, decidem que tipo de amigo vai interferir na personalidade. É com a mãe também que a criança aprende a se socializar. São essas as referências que ela vai levar na hora de fazer as primeiras amizades. E, como se tudo isso já não fosse o suficiente, as mães ainda carregam o enorme fardo de ser a pessoa mais importante na vida dos seus filhos. Numa pesquisa feita em 2008 pela Editora Abril, com 1.600 jovens de todo o País, as mães foram apontadas como a pessoa mais amada por 92% deles. (Os pais amargaram um distante terceiro lugar, com 59%, atrás até de irmãos e irmãs.) Pois é, mesmo se ela não tiver influência alguma na sua vida, mãe continua insubstituível.
Mãe só tem muitas
Em diferentes épocas e lugares, pessoas tentaram explicar como se forma a personalidade
Sem traumas
Na maioria das sociedades tribais não há a noção de que a mãe é essencial para formar a personalidade de ninguém. Nas tribos amazônicas, por exemplo, quem educa as crianças são os seus irmãos ou seus primos mais velhos.
Freud explica
Ele realmente tentou explicar tudo. Para Freud, a simples presença dos pais já tem consequências sobre a formação do filho. Os desejos e sonhos que a mãe projeta sobre ele e a maneira como ela o trata definem a pessoa que ele será.
Folha em branco
O grupo de psicólogos behavioristas achava ser possível moldar a personalidade da criança em qualquer direção – bastaria que os pais recompensassem os comportamentos desejados. Funciona com alguns hábitos, mas não para formar a mente.
Estimulante
Hoje, sabe-se que a mente do bebê é tudo menos folha em branco. Ele percebe o mundo ao redor, reconhece pessoas e nasce com traços de personalidade já perceptíveis. Por isso, cabe à mãe estimular esse cérebro em formação.
Diga-me com quem andas
Para a psicóloga americana Judith Harris, são os amigos que formam a personalidade da criança. A mãe interfere nesse processo só ao escolher em que escola e bairro a criança vai crescer.